Animal (30/03/2014)
Nunca fui dos automóveis. Aprendi a dirigir aos 35 anos. Até hoje não reconheço marcas nem modelos. Quando me dizem “atrás do Palio prata” ou “do lado do Fiesta”, fico com cara de imbecil, sem ter ideia de como se possam traduzir visualmente tais nomes. Quando eu era menino, brincava com ferros dos postes do telégrafo à guisa de trens (meu pai era telegrafista e agente postal: o material de manutenção das linhas ficava estocado no almoxarifado que era parte do nosso sobrado de morada), nunca com carrinhos de plástico (nós não tínhamos brinquedos comprados em lojas, exceto algumas bonecas que pertenciam a minhas irmãs e com as quais não se esperava que os meninos brincassem — e nós não fazíamos o que não era esperado: transformávamos os frascos de perfume vazios em bonecos que representavam adultos, não em bebês equivalentes aos das meninas). O carro era algo ausente das nossas fantasias. Em Santo Amaro podiam-se contar nos dedos os automóveis existentes na cidade. Um era do padre Fenelon, outro de dr. Clóvis, um terceiro era de dr. Sérgio — sendo que seu Pedro Azevedo chegou a ter mais de um: ele alugava para viagens a Oliveira, a Feira, mesmo a Salvador. As ruas eram cortadas pelos bondes e tróleis puxados a burro, da Companhia Trilhos Urbanos, mas carros rarissimamente interrompiam nossas rodas de conversa, brinquedo e samba de meio de rua.
Gosto de dirigir por razões semelhantes às dos bofinhos que passam a ter dinheiro para comprar carro. Mas sou muito diferente deles. Na madrugada, vivo como uma brincadeira o gozo do veículo em movimento acionado por uma pressão do meu pé. Nunca tive foi a paixão do carro, aquele anseio de domínio e destreza. Meu pai nunca sequer pareceu sonhar em dirigir. Acho mesmo que entrei num automóvel bem tarde em minha vida. Não foi na primeira infância. Meu padrinho era um doutor preto que tinha ido viver em São Paulo e, por isso, nem estava presente ao meu batismo, tendo sido representado por Vivaldo, um mulato gordo, surdo e genial. Esse padrinho “por representação” foi meu padrinho sempre, mesmo quando o padrinho oficial veio de Sampa, com uma mulher branca e cheio de referências sofisticadas, reconhecendo trechos de Donizeti na música da novena. Vivaldo tinha uma moto e, bem mais tarde, comprou um carro. Sou tão distante dos caras que ganharam carro aos 18 anos que os vejo como se fossem outra espécie animal. As moças que dirigem desde adolescentes e, portanto, exibem muito mais desembaraço ao volante do que eu jamais terei são motivo de fascinado espanto.
Mas não sou uma grande piada como motorista. Apaixonado pelas regras de trânsito, sou um amador sóbrio e não muito ridículo ao volante. Tenho, é verdade, cada vez maior preguiça de fazer manobras para estacionar. Mas não vivo provocando buzinaços por onde passo. Apenas acolhi com mais do que mera naturalidade as observações de Lévi-Strauss sobre o brinquedão de Benz. Em meio à amargura cética com que o antropólogo vê o progresso de que o Ocidente se orgulha, aparece a definição: o carro é um animal do qual somos apenas o sistema nervoso central (ou pelo menos era nessa forma que a ideia reaparecia numa canção prosaica — tipo “Base de Guantânamo” ou “O império da lei” — que quase completei em 1972).
Pois bem. Na semana passada, eu, com dor na lombar por causa de uma hérnia de disco, dirigi do Leblon a Ipanema para ver minha fisioterapeuta. Atravessei aquela ponte de Dudu Paes no Jardim de Alá e peguei a Redentor. Parei na esquina da Garcia D’Ávila, rua onde eu ia dobrar: um ônibus vinha da Lagoa, e essa rua é preferencial. O motorista, no entanto, freou o ônibus e acenou me dando passagem. Fui retirando o pé do freio e pondo-o no acelerador, enquanto girava o volante à direita. Antes que esses movimentos se realizassem (em conjunto com minha virada de cabeça para o lado aonde eu estava indo), ouvi batidas fortes na lataria. Uma senhora que estava vindo pela Garcia fora atingida pelo meu carro. Este estava em velocidade lentíssima e em fração de segundo me dei conta da situação. A senhora estava indignada, com razão: não se pode fazer um auto andar sem antes olhar o que poderá estar no caminho para onde se o leva. Não houve dano físico. Ela me chamou de maluco e eu pedi perdão. Mas deprimi. Tomei a decisão de nunca mais dirigir, odiei a existência dos automóveis, senti minha velhice como um déficit de reflexos, pensei em Lévi-Strauss. Mas voltei a dirigir logo que deixei a fisio. Continuei triste. Olhei com compaixão a cara de Cabral confrontado aos bandidos. Quem é contra as UPPs? E pensei com piedade em Dilma, sozinha diante da barafunda da compra de Pasadena.
Caetano Veloso.
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