Um Índio (Caetano Veloso)

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul na América num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos palavras alma cor em gesto em cheiro em sombra em luz em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá fará não sei dizer assim de um modo explícito
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio

© 1976 Ed. Gapa / Warner Chappell - Álbum Doces Bárbaros - Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Gal Costa. Interpretada por Maria Bethânia. Gravada por Caetano Veloso no álbum Bicho (1977). 

Comentário do autor: "Essa canção me deixa orgulhoso por eu ter posto na letra o nome de Bruce Lee, naquela altura, e rimando com Muhammad Ali, Peri, Filhos de Ghandi. Para mim, isso vale a música." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

"Um Índio, por exemplo, é exatamente uma coisa que fui cantando, de madrugada, e iam saindo aquelas frases compridas e eu ia curtindo o gosto delas, curtindo aquela retórica. Vi o parentesco dela com uma música do Chico Buarque, Rosa dos Ventos; fiquei vendo as proparoxítonas, mas ia saindo, naturalmente, com aquela curtição da emoção". (Caetano Veloso em entrevista a Gilberto Galvão, s/d).

“A maioria das vezes faço, ao mesmo tempo, letra e música, e é assim que gosto. Por um período muito grande, fiquei sem escrever, sem anotar e nem rever as letras. Um Índio, que tem uma letra enorme, só fui escrever quando tive de mandar para a gravadora, pois fiz cantando. Fiquei tanto tempo sem escrever que, um dia, o psicanalista Luiz Alberto Pi foi na minha casa, para deixar um recibo, e descobri que eu não tinha nenhum papel e nem lápis. A última vez que entrou papel lá em casa foi quando a Dedé estava trabalhando na produção de “Maiakovski”. O psicanalista ficou tão impressionado que me mandou de presente um caderno, um estojo com lápis, caneta e borracha”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).

"A música me veio num nascer de manhã insone, no apartamentinho em que eu vivia com Dedé e Moreno no final da praia do Leblon. Eu adoro "Tristes trópicos". É um belo livro. E me fascina a luz que o Marechal Rondon pôs sobre o mundo indígena. Eu tinha ido a Brasília porque um amigo me chamou para ver algo que ele achava impressionante e que dizia respeito à presença de extraterrestres entre nós. Fomos no breu da noite para uma zona deserta do cerrado. Tudo resultou em frustração. Não tanto para mim, que não sinto atração por médiuns que falam com alienígenas. Tinha havido alguma luz, um iô-iô luminoso desses que são vendidos na frente do Duomo de Milão, e um papo evidentemente falso com o médium. Esqueci o assunto. Quando fiz a canção, uma semana depois, não estava nem me lembrando disso. Me dei conta quando, o dia já claro, a música estava pronta. Tomei susto. Sempre me comoveu a celebração do 2 de julho na Bahia: há uma procissão com a imagem de um índio e uma índia (em Santo Amaro, só a índia), chamados "os Caboclos". É uma parada grande, com bandas marciais de escolas. É a festa da Independência na Bahia: Dom Pedro deu o grito às margens do Ipiranga, mas na Bahia houve guerra — e só vencemos em julho do ano seguinte. Os caboclos têm uma capela no largo da Lapinha, em Salvador. Só saem de lá no 2 de julho. O índio, ou caboclo, também esteve presente no primeiro candomblé de que tomei conhecimento: Edith do Prato recebia Sultão das Matas. No Recôncavo, os candomblés de caboclo são numerosos. Gosto muito de ler Eduardo Viveiros de Castro, mas não tenho essa visão antropológica como parâmetro para definir meus pensamentos a respeito de política. Mas pensar a tradição romântica do índio como símbolo nacional num tempo de crescimento populacional das nações indígenas que falam outra língua que não o português, ver lideranças indígenas ganharem protagonismo político, tudo isso mexe com minha alma. Tenho muito orgulho de que Viveiros e Déborah Danowski tenham citado a frase mais radical da minha canção no livro "Há mundo por vir?": "Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias". Adoro o refrão, com Mohamed Ali e Bruce Lee, Peri e os Filhos de Ghandi. Zé Agrippino, que não gostava de quase nada, gostava de "virá que eu vi". Vejo Sultão das Matas em Ali e a origem asiática dos povos americanos em Bruce Lee. Os Filhos de Ghandi, asiático mais escuro, são os pretos da Bahia. Sou preto. Sou português. Sou índio quando leio "Metafísicas canibais". Amo o texto de Montaigne sobre nós. Fiz a música para os Doces Bárbaros, decididamente para Bethânia cantar. Gravei depois meio em reggae. É coisa demais para eu pensar. Peça para eu parar." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2020).

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