Alegria, Alegria (Caetano Veloso)
Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço, sem documento
Eu vou
Eu tomo uma Coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do brasil
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não, por que não
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço, sem documento
Eu vou
Eu tomo uma Coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do brasil
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não, por que não
© 1967 Ed. Musiclave - Compacto simples - Caetano Veloso.
Comentário do autor: "Tendo assumido a tarefa que Gil tão claramente delineara, decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução. No meu apartamentinho do Solar da Fossa, comecei a compor uma canção que eu desejava que fosse fácil de apreender por parte dos espectadores do festival e, ao mesmo tempo, caracterizasse de modo inequívoco a nova atitude que queríamos inaugurar. "Paisagem útil" não me parecia preencher esses dois requisitos. Era bom que a nova canção fosse, como aquela, uma marcha de Carnaval transformada, mas não uma arrastada e errática marcha-rancho. Tinha que ser uma marchinha alegre, de algum modo contaminada pelo pop internacional, e trazendo na letra algum toque crítico-amoroso sobre o mundo onde esse pop se dava. Lembrei de uma canção que eu tinha feito dois anos antes na Bahia para um show que me tinham proposto fazer na Boate Anjo Azul, requintado antro de artistas e intelectuais de Salvador, e que era uma sátira sobre os jovens alienados da cidade, intitulada "Clever boy samba". O show nunca aconteceu, mas a canção, diferentemente das outras que eu fazia então, era cheia de referências a lugares badalados da cidade (um deles era a porta da loja O Adamastor, assim chamada não por causa do monstro do poema épico de Camões, mas por ser o nome do seu proprietário, seu Adamastor Rocha, pai de Glauber), as gírias da moda, a trechos de canções americanas e a estrelas do cinema europeu, no intuito claro de criar empatia fácil (mas, eu tinha certeza, surpreendente) com a plateia sofisticada do Anjo Azul. Rapidamente compreendi que, se o tom de mera sátira devia ser subvertido, o esquema de retrato, na primeira pessoa, de um jovem típico da época andando pelas ruas da cidade (o Rio, agora), com fortes sugestões visuais, criadas, se possível, pela simples menção de nomes de produtos, personalidades, lugares e funções - pois esse era o esquema de "Clever boy samba" -, devia ser mantido pois era o ideal para os novos propósitos. À medida que a canção avançava, eu percebia que, como no caso de "Paisagem útil", havia a distância necessária para a crítica - para mim, uma condição de liberdade -, mas havia a alegria imediata da fruição das coisas. Essa consciência da alegria assim situada me levou a eleger como título (sem, contudo, incluir na canção) o bordão "alegria, alegria!", que o animador de TV Chacrinha emprestara do bom cantor de samba-jazz em vias de aderir a um comercialismo vulgar (mas nem por isso menos delicioso) Wilson Simonal. [...] "Alegria, alegria", seu bordão da temporada (ele lançou muitos que entraram na linguagem cotidiana), se tornou o título dessa minha canção projetada para ser um mero abre-alas mas que se tornou o sucesso mais amplo e mais perene entre todas as minhas composições." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).
"Quando eu escrevi Alegria, Alegria eu não pensava nem um pouco em mim. Aquilo não era eu, era uma observação de fora, como um repórter, de toda uma coisa que havia na época, o garotão que bebia Coca-Cola e via televisão. Isso não era eu nem um pouco, eu nem bebia Coca-Cola naquela época, detestava. Pois a Nara Leão quando ouviu me disse que era a minha cara. E eu achei absurdo. Hoje eu concordo com ela. Realmente é a minha cara." (Caetano Veloso para O Globo, 1982).
"Alegria, alegria" é a chamada música psicodélica, porém não sei o que é música psicodélica, e não acredito que nenhuma música possa ter um poder psicodélico sobre uma pessoa." (Entrevista ao Jornal do Brasil, 1968).
"Eu me emociono com uma coisa e penso: vou fazer uma música sobre isso, sobre um cara andando numa cidade grande, vendo revistas, vendo as coisas, pensei nisso. Depois fui escolhendo os elementos que compõem essa coisa (estou contando mesmo uma coisa que fiz recentemente, é a música Alegria, alegria), fui pensando em alguns elementos de letra que dessem bem a imagem do assunto que eu queria tratar e, aos poucos, fui pensando na música como um tema alegre, do cara andando na rua e vendo as coisas, revistas coloridas, Copacabana, uma coisa que fosse alegre e estivesse habitada por um som muito atual, um som meio elétrico, meio beat, meio pop, como o que a letra tem, que é a coisa atual da revista, fotografia de Claudia Cardinale, guerras, toda a festa do mundo moderno, festa estranha. Pensei no assunto, vim pensando na rua, cheguei em casa, comecei a pensar na letra, à noite fiquei fazendo até a madrugada. Aí fiz a melodia toda e a primeira parte da letra. No outro dia, fiz a segunda parte." (Depoimento a José Eduardo Homem de Mello, s/d).