Chorar (08/12/2013)

Justo quando estou mais propenso a chorar do que a sorrir, reaparece a piada de Verissimo sobre a guerra entre comunistas e homossexuais. Adoro o poder de síntese desse autor e seu modo desencanado de chegar a frases conclusivas realmente engraçadas. Como sou barroco e tive minha fase de revolta contra a ditadura do modelo americano de prosa direta, máscula e breve, admiro quem exibe com espontaneidade tais virtudes, diferentemente daqueles que se espremem forçadamente em sentenças-resumo. Assim, Verissimo me dá, sempre me deu, prazer de ler. Claro que prefiro, de longe, sua piada que diz, em artigo sobre a beleza feminina relativamente à nacionalidade, que “a Itália é o único país em que as mulheres competem com a polícia” (cito de memória). Mas a do enfrentamento entre gays e comunas me fascina. Desta vez ele fala como quem atribui a observação a outras pessoas. Pode ser, mas para mim a ideia é dele. Fascina-me porque, embora, identificado com os homossexuais, logo pense que estaria do lado deles caso tal guerra se declarasse, perguntas de difícil resposta surgem em minha mente. Primeiro: como pensar em Visconti, Pasolini e Foucault — além de tantos veados comunistas que conheço pessoalmente? Depois: dever-se-ia (que o próprio Verissimo e toda uma corte de escritores e leitores de jornal me perdoem a mesóclise, que amo) levar o termo “homossexual” para sua acepção mais abrangente, considerando igualmente veados e lésbicas? Mas principalmente a pergunta pelo motivo central: será que isso vem das perseguições a gays nas nações-terror que o comunismo urdiu no século XX?

Eu próprio estaria entre aqueles que, desde muito cedo, tingiram de defesa dos homossexuais suas desconfianças a respeito de Uniões Soviéticas, Chinas Maoístas e Cubas. O chamado “pecadão” realmente tomou conta da cabeça de indivíduos e grupos autoritários de todos os matizes, tendo Hitler dizimado a SA paganista e fortemente homossexual que ele próprio apoiara a princípio (e o clima na Itália de Mussolini pode ser sentido no filme “Um dia muito especial”, de Ettore Scola). Claro que já ouvi de colegas esquerdistas na faculdade que o homossexualismo (assim como a tolerância com o adultério feminino) era um aspecto da decadência burguesa. Mas hoje observo mais Olavo de Carvalho (assim como outras figuras da extrema direita) apontando a defesa das atividades homoeróticas como parte essencial da política das esquerdas. Talvez Niemeyer (a quem Burle Marx, ainda nos anos 1990, chamava de “típico garoto de praia carioca”) fosse desses comunistas que não consideravam a homossexualidade aceitável (como o Graciliano das memórias do cárcere — aliás nisso defendido por Olavo de Carvalho).

Mas minha vontade de chorar ficou muito mais aguda com as notícias, chegadas a mim quase simultaneamente, das mortes de Nelson Mandela e Fauzi Arap. Fauzi foi um dos maiores atores que vi em cena. Assisti a “Os pequenos burgueses” na montagem do Oficina e fiquei apaixonado pela sua arte. Depois, por causa de sua colaboração constante e duradoura com Bethânia, conheci a pessoa extraordinariamente polida e sensível que ele era. Só de pensar em Mandela meus olhos se encheram de lágrimas: a admiração pela dignidade de sua pessoa, que conseguiu atravessar a necessidade da violência, a amargura de uma longa prisão que se prometera perpétua, a cara dos ex-inimigos, tudo, e chegar até cada um de nós com limpidez imaculada. Já Fauzi me fez chorar copiosamente, sozinho e em silêncio. É um tanto terapêutico contá-lo aqui, assim de público. Extravaso — e sinto que rendo uma indiscreta homenagem a um artista tão extremamente discreto. A aura de santo que ambos tinham não era uma ilusão.

Li palavras revoltadas de rebeldes e esquerdistas diante da unanimidade de Mandela. Tal como a aprovação das manifestações de junho, a louvação ao líder sul-africano soou para muitos como um meio de negar os aspectos de luta e violência de sua trajetória. Mas vamos com calma. Os EUA de Reagan podem tê-lo considerado um terrorista, mas isso não quer dizer que jornais liberais o fizessem, muito menos que políticos do PSDB brasileiro estivessem sequer perto de apoiar a política de apartheid. E Mandela superar a sede de vingança e saber dialogar tem valor absoluto. Não vamos agora querer reduzir sua amplidão a estreitezas ideológicas. Isso empobreceria sua memória não menos que a sanitização da imprensa coxinha. Nesse mundo mau, Mandela foi um farol. Sua luz nasce do realismo corajoso com que se via como homem, da dignidade que pôde imprimir à condição humana. Condição que era vista com olhar místico e mansamente angustiado pelo nosso amado Fauzi.

Caetano Veloso.

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