Cidades e canções (06/04/2014)

Será que Dilma confundiu o “Samba do avião” com o “Samba de Orly”? João Santana é que não pode ter sido. Quanta confusão! A Bahia tá viva ainda lá. Fui fazer uma palestra musicada em Salvador, para o pessoal do Projeto Axé. Essa organização se dedica à educação dos meninos e meninas de rua de Salvador. “De rua”, aliás, é uma caracterização que os dirigentes do Axé não aprovam. Eles vêm realizando um trabalho importante na Bahia há quase 25 anos. Discípulo de Anísio Teixeira e de Paulo Freire, Cesare Rocco tem encontrado, com sua admirável turma de colaboradores, meios de estimular uma garotada arrancada da desesperança a desejar crescer intelectual, afetiva e moralmente. A “aula” que eu me comprometi a dar era sobre Caymmi. Melhor assunto não há. Levei meu violão e cantei algumas das muitas canções que sei desse autor (antigamente eu tinha a ilusão de que sabia todas: ele não tem um repertório muito extenso, tendo sempre preferido concentrar-se na qualidade, ou melhor, na necessidade do aparecimento de certas canções). Foi uma ida relâmpago a minha terra. Antes eu tinha estado em Belém, uma das cidades mais bonitas e condutoras da imagem que o Brasil faz de si mesmo. Ao menos através de mim.

O voo do Rio a Belém dura três horas e meia. Na noite da minha ida houve um atraso de quatro horas, acho que devido ao acidente com o avião que pousou sem trem de aterrissagem em Brasília. O Galeão não está nada parecido com o samba de Tom (onde ele usa o verbo “aterrar”, como em Portugal, coisa de que gosto muito, mas teve gente que quis traduzir para “pousar”, que nem fica bem na métrica da melodia — e Dilma comprou essa versão), de modo que ficar quatro horas lá não foi propriamente reconfortante. Sou, suponho, o exato oposto de Karim Aïnouz, para quem o paraíso é o aeroporto de Frankfurt e que adora conexões de voo longas. Poucos sabem, mas foi Caymmi quem pôs letra na introdução do “Samba do avião”. Aliás, nem me referi a isso em minha fala, que foi improvisada e cheia de anedotas, mas muito ambiciosa. “A Bahia tá viva ainda lá”, a propósito, é também de Caymmi: do samba “Adalgisa”, uma dessas joias caymmianas que a gente quase não consegue distinguir dos cantos tradicionais e anônimos.

A ida a Belém teve profundo significado para mim. Há uma canção que fala no Pará em “Abraçaço” e até agora nenhum eco me tinha chegado desde Belém: seja por comentários de amigos de lá, seja traduzido em convite para apresentações, nada. A canção, chamada “O império da lei”, é, aos meu olhos, um monstrengo que me saiu, irrecacavelmente, quando assisti a “Receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”. A expressão que lhe dá título é um chavão dos liberais que descrevem as conquistas do Ocidente moderno. Toda a letra se aferra a um prosaísmo semelhante àquele de “A base de Guantánamo”, só que sem a mesma coesão e qualidade desta. A melodia lamentosa, em tom menor, da segunda parte me foi inspirada pela cena do filme em que, num comício, Dona Onete canta um carimbó. Não pela música que ela cantava, mas pelo sentimento que resultava da combinação das cenas com o canto dela. Pois bem, para minha surpresa, em todos os lugares do Brasil por onde passei com o show do “Abraçaço” a plateia cantava comigo esse trecho, o que me comovia. O show em Belém era num clube luso, muito simpático, mas parecia que na plateia não estariam as pessoas que em geral cantam: gente jovem e conhecedora do “Abraçaço”. Bem, entrei no palco satisfeito com o que tinha visto de Belém durante a tarde (as praças, as ruas com mangueiras, a cara das pessoas, o açaí sem xarope de guaraná, o Ver-o-Peso e a Feliz Lusitânia, tudo em bom estado, muito limpo e mantendo uma dignidade de causar inveja em qualquer Salvador): se o público mostrasse apenas impaciência e desconhecimento, eu não me queixaria nem intimamente. Mas foi o contrário. Cantaram “Abraçaço”, “Um comunista”, “Odeio”, tudo, e, mais que tudo, a segunda parte de “O império da lei”, que pela primeira vez deixei toda para a assistência. Peguei um ita no norte. Chorei. A Bahia de ACM Neto (calçadões na Barra e recapeamentos) me pareceu muito melhor. Tomara que a ambição política de Grampinho se traduza em limpeza total e diária da areia do Porto da Barra (da praia e do fundo), qualquer coisa assim grande, que traga de volta o orgulho da população. Isso pode mudar muita coisa. As cidades brasileiras ficaram feias com o êxodo rural e o crescimento urbano. Parece insuperável? Espero o destino grandioso. O que vi em Belém (a música que fiz com Donato na cabeça) dá confiança. Porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há.

Caetano Veloso.

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