Diapasão (23/03/2014)

Na noite de 31 de março para primeiro de abril de 1964 eu estava numa reunião para preparar os cursos do método de alfabetização Paulo Freire, num salão da faculdade de Economia da UFBA. Uns colegas chegaram de fora dizendo que parássemos tudo e voltássemos para nossas casas: um golpe estava em curso. Eles estavam muito bem informados e pareciam muito pessimistas. À minha pergunta sobre se não haveria resistência um deles disse que não acreditava e acrescentou que achava que os militares de direita (sim, é preciso lembrar que não o eram — nem o são — todos) tomariam o poder e ficariam lá por uns dez anos. Hoje a previsão parecerá otimista, já que o governo militar durou o dobro disso.

Em meu livro “Verdade tropical” conto essa noite e os dias e anos que se seguiram. O crítico literário Roberto Schwarz escreveu em seu artigo sobre esse livro que eu, que me sentia envolvido pelo entusiasmo esquerdista que precedeu 1964, terminei por aprovar ou aplaudir a ditadura em nome de algumas superstições a respeito do Brasil. Não me lembro de ter escrito algo que significasse isso. Mas não reli o livro desde que o artigo foi publicado. Um dia pretendo estudar e escrever algo longo, que não caberia aqui. Posso adiantar que nunca senti aprovação íntima ao governo militar que veio em seguida ao golpe civil e fardado de março/abril. Ao contrário, a repulsa pelo Estado autoritário, a simpatia pelos ideais de justiça social e, finalmente, minha prisão e exílio (uma experiência que quase não fui capaz de suportar) me predispuseram a odiar todas as feições daqueles anos, tendo de fazer sempre grande esforço para entender seu significado — e pesar seu valor — de modo mais corajosamente realista. Acabo de ler os dois volumes do “Getúlio” de Lira Neto e estou na parte final de “Ditadura à brasileira”, de Marco Antonio Villa. Faz alguns anos, li a série de livros de Elio Gaspari sobre o assunto. Desta última quero reler muitos capítulos. Sempre me esforçando para pôr os acontecimentos que vivi na perspectiva de uma visão mais abrangente da História do Brasil. As fantasias míticas de um destino grandioso para nosso povo estão presentes na construção, sempre falha, da estrutura dessa visão. Desse ponto de vista, todos os acontecimentos são aproveitáveis em algum nível. Claro que maluquices desse tipo também acontecem em Hegel e no que há de Hegel em Marx e nos marxistas. Atentar para uma mitologia que, de cara, não merece respeito científico é bom exercício para quem quer saber o que é mesmo que há. As ideias críticas muito negativas sobre o nosso país são igualmente fortes em mim, o que não cria apenas uma tendência bipolar. Os pesadelos são igualmente desrespeitados. As visões desencantadas, pedestres, também são bem-vindas — na verdade, são a base permanente sobre a qual esses temperos fortes são lançados.

O que não pude deixar de contar a quem me lesse é que vi que a ilusão de que o povo brasileiro se levantaria pelo igualitarismo era nada mais que uma ilusão. Meus amigos da esquerda em 1963 não estavam menos enganados do que os promotores da chamada “intentona” de 1935. Somos um povo que, tal como nas outras nações latino-americanas, precisou de líderes patriarcais e soube, no máximo, animá-los a tomar medidas populistas que fizessem andar os direitos dos trabalhadores, tudo isso num diapasão nitidamente conservador. Ou que pode ser chamado de conservador se apreciado por um ouvido esquerdista.

Outro dia recebi uma carta de leitor, assinada por um homem que serviu na Força Aérea, influenciado pelo pai, um militar que o ensinou a ser anticomunista visceral. Ele diz que esse ódio nasceu em seu pai por causa dos militares mortos por colegas comunistas enquanto dormiam, no levante de 35. (Essa versão foi utilizada por Vargas para justificar a virada autoritária, mas não há prova de que seja verídica.) O mesmo missivista diz que se lembra com clareza de me ouvir dizer numa entrevista que eu tinha “uma aversão quase sexual ao socialismo”. Eu nunca disse isso. A carta dele era de identificação por causa da influência da figura paterna. Fiquei tocado. Ele conta que há agora o temor de nova ameaça comunista. Sei que não há. E não quero que haja uma reação como se houvesse. Nada de querer interromper esse primeiro período respeitavelmente longo de democracia em nossa história. Sinto que mudanças estão em curso. Acho que o Quinto Império de Vieira me dá mais luz para entendê-las do que a ditadura do proletariado. Prefiro dizer agora, como tropicalista, que o eurocentrismo racista de Marx e Engels comentado por Rodrigo Constantino merece minha atenção. E talvez a da esquerda crítica.

Caetano Veloso.

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