Gás (30/06/2013)

É quinta-feira. Sentei-me aqui para escrever e, antes que eu abrisse o computador, Neide, minha empregada, veio até a porta do meu quarto e me perguntou se eu sabia que ia haver uma greve geral na segunda-feira. O filho dela tinha telefonado: “Vai parar tudo”. Saio com amigos adorados. Nosso plano é ir ver o show do grande Pedro Miranda no centro da cidade. No carro, meus amigos me contam que estavam na manifestação da quinta passada. Com restos de entusiasmo e cargas de ansiedade, eles narram o que tiveram de enfrentar. São muito mais jovens do que eu e, na marcha, estavam com amigos de sua idade. No fim da Avenida Presidente Vargas, já perto do “Piranhão” (que é um velho apelido que o prédio da prefeitura tem, dizem que tanto pelo histórico da área em que foi construído quanto pela sua atual ocupação), na linha de frente da passeata, meus amigos observam que, em meio a tantos grupos diferentes e reivindicações variadas, a caminhada nem segue em frente nem decide dispersar-se: os caminhantes apenas param por ali. A chegada ao Piranhão era, parece, a meta. Meus amigos são um casal. Ele comenta o quanto ficou impressionado com um grupo representativo do movimento negro, formado de habitantes da Baixada, cujos cartazes exibiam estatísticas sobre a posição de desvantagem em que vivem os negros no Brasil. Ela reclama de ainda estar mal da garganta por causa do gás lacrimogêneo. Ambos descrevem as cenas que viram com muita vivacidade, ainda sob a pressão dos acontecimentos.

Como a multidão estava ordeira e não os imprensasse — permitindo, portanto, que eles vissem os outros manifestantes que estavam no abre-alas — estão seguros de que não houve nenhum gesto que detonasse o começo da agressividade policial. Bombas de gás e tiros cuja natureza eles não podiam no momento definir assustaram a multidão. Mas não houve pânico, a ordem “não corre” sendo espalhada com firmeza e rapidez. A essa altura, temperamentos mais combativos queriam enfrentar a força policial e atacar o Piranhão. Impressionou meu amigo que o grupo de negros — que, além dos cartazes, exibiam marra de rappers e panos amarrados no rosto que deixavam apenas os olhos à mostra — tenha sido firme em dissuadir de praticar qualquer tipo de violência aqueles que tendiam a fazê-lo. Andando, meus amigos começaram a voltar, buscando uma rua lateral pela qual fazer a aglomeração escoar, no que foram seguidos pelos que vinham atrás. Para espanto deles (e de todos) uma parede de policiais com escudos e bombas de gás fechava a saída no outro extremo da rua. O gás e o medo faziam muitos quererem livrar-se da emboscada. O risco de pânico e de pisoteamento os angustiou. Mas a discreta palavra de ordem “não corre” virou um grito uníssono e intenso, que deu calma e coragem para que se fizesse o equilíbrio possível entre recuar e enfrentar os policiais.

Eles tinham visto muitos manifestantes prenderem seus cartazes nas grades do Campo de Santana (os policiais, a essa altura, os tinham enxotado até a altura da Central do Brasil e do prédio do antigo Ministério da Guerra — e assim o nomeio aqui porque foi assim que meu amigo, tão moço ainda, se referiu ao Palácio Duque de Caxias). Eles tinham achado bonita a improvisada exposição. Agora, em seu caminho de volta, viam que alguns baderneiros lhe tinham ateado fogo. Essa definição de baderneiros vinha, na conversa, temperada de perguntas não feitas. A atitude de tentar invadir a prefeitura, segundo eles viram, foi posterior e não anterior à ofensiva policial. Além disso, como explicar o cerco ao conjunto dos manifestantes quando estes tentaram sair por uma rua lateral? E, pior, como justificar — sobretudo quando o que eles viram foi a ausência da polícia em cenas de arruaça — a invasão da Lapa, para onde muitos grupos que tinham participado da passeata tinham ido? Relembro aqui a narração de outro amigo, um americano que vive no Rio, do horror que foi ficar acuado no restaurante Nova Capela. Confirmando o que me disseram meus amigos brasileiros, o americano contou que a Lapa ficou como uma praça de guerra, com bombas sendo jogadas para afugentar as pessoas. Todos se perguntam: qual a lógica da ação policial? Como Beltrame tem planejado a segurança nesses dias exuberantes e complexos? Que ideia fazem do que vem se passando as autoridades? A correria no Congresso e os pactos de Dilma estão em sintonia rítmica com os eventos? Meus amigos me dizem que viram nas redes sociais discussões por causa do boato de greve geral. O filho da minha empregada já a tinha como certa. No carro, recebemos mensagem de Pedro Miranda: cancelado o show. Nova marcha no centro da cidade.

Caetano Veloso.

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