Lendo (04/08/2013)

Em “Billie Holiday e a biografia de uma canção” — livro que ganhei de presente em João Pessoa —, David Margolick observa que “Depois de um ciclo inicial de popularidade, “Strange fruit” caiu em desuso por muitos anos, vítima do conservadorismo de uma era, do idealismo e da esperança de outra e da desilusão de uma terceira.” Reconheci o retrato dos anos 1950, 1960/70 e 1980. Devo ao ator Echio Reis e ao diretor teatral João Augusto Azevedo o contato com a arte de Billie Holiday.

Amante da bossa nova de João Gilberto, cheguei a Salvador, vindo de Santo Amaro, em 1960. Eu gostava de Dolores Duran, Nora Ney e Maysa. Tinha ficado maravilhado com Ella Fitzgerald. Echio e João Augusto me mostraram um leque variado de estilos que enriqueceu minha sensibilidade. Entre Chet Baker e Ray Charles, Thelonius Monk e David Brubeck, Billie surgiu como um universo estilístico à parte. Dentro desse universo, “Strange fruit” era um caso especial. Não parecia uma canção de jazz. Tinha mais parentesco com as canções de Kurt Weil para a “Ópera dos três vinténs” de Brecht, que eu já conhecia da montagem de Martim Gonçalves para a Escola de Teatro. Billie me hipnotizava. E “Strange fruit” me despertava pela sua diferença. Eu mal começava a entender alguma coisa das letras em inglês. As boas Emiliana e Celeste Aída, do Severino Vieira, tinham compensado o que o curso ginasial ficara me devendo, mas ainda hoje tenho dificuldades de entender inglês cantado. Echio me trazia algumas letras escritas. E me contava histórias das canções. Explicou-me a estranheza de “Strange fruit”. Eu ficava mais e mais impressionado com ela. E a cantava com erros. Foi assim que a cantei no teatro Vila Velha, no meu show solo, intitulado “Cavaleiro”, em 1965. Li agora que Nina Simone a gravou nesse mesmo ano.

Nando Barros, o único colega de sala no clássico que falava inglês, andava com uma moça americana, preta, que tinha vindo numa missão do Peace Corps. Acho que ela foi a primeira pessoa de quem ouvi que o racismo aqui era pior do que nos EUA. Essa observação me impressionou muito, e quando ouvi, muitos anos mais tarde, opinião semelhante dos lábios de Abdias do Nascimento, já conhecia a complicada reação que isso provocava em mim: um misto de excitação curiosa (pela consciência de que estava diante de algo inusitado, que exigia novos esforços mentais) e amargura profunda. “Strange fruit” falava dos linchamentos de negros no Sul dos Estados Unidos e, na minha lembrança, Nando foi ao teatro com essa garota preta americana. Já disse que cometia erros (de pronúncia e de entendimento das palavras). Mas a cena era bonita. João Augusto nos ajudou (a mim e a Duda Machado, que tinha escrito e estava dirigindo o show para mim) a iluminar as cenas em que Dedé, então minha namorada, se metamorfoseava em Diadorim, cangaceiro, Carlitos... A roupa dela era toda cáqui, com blusa e saia-calça: com posturas, gestos e a iluminação, ela mudava de figura a cada música. Em “Strange fruit”, se não estou delirando, ela punha uma flor onde Billie punha a famosa gardênia. A imagem composta por Dedé de um lado, sob uma luz roxa que fazia seu traje parecer um vestido noturno, eu do outro, cantando, e a escuridão. É gozado pensar no provincianismo de vanguarda (como dizia Décio Pignatari) que devia ser essa cena teatralmente presunçosa (mas bem-acabada) em que um cantor praticamente desconhecido (e despreparado), numa cidade de província brasileira (e a de maior população negra do país), cantava a canção que as eras obsoletavam. Eu sentiria vergonha de ouvir como soava esse canto, mas não posso deixar de me orgulhar de ter cantado essa canção quando ela estava ainda soterrada sob os conservadores anos 1950 e às vésperas de sumir sob a maré de protestos que ia se formar. A gravação de Nina não nos era conhecida (talvez nem tivesse ainda sido feita).

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Tanto em “Os batalhadores brasileiros”, de Jessé Souza, quanto em “Sociedade fissurada”, de Marcia Tiburi e Andrea Costa Dias, encontro, além de muito no que pensar, a conjunção “posto que” no sentido explicativo, como no “Soneto de fidelidade” de Vinicius. Sinal de que esse sentido (que a nossos ouvidos parece mesmo ser o que indica a expressão) já entrou, no português brasileiro, para a norma culta. Bem, tendo se tornado tão popular por causa do verso de Vinicius, essa acepção já tem cidadania oficial. Mas poesia, a gente pensa, é algo mais livre e menos responsável. Quando entra em textos teóricos é que a coisa pegou mesmo. (Posto que seja bobagem pensar que poesia é algo irresponsável, já que a poesia é, na verdade, mais rigorosa; sendo a prosa, como diz o poeta, poesia mal escrita.)

Caetano Veloso.

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