O cu do mundo (23/02/2014)
“A mais triste nação/ Na época mais podre/ Compõe-se de possíveis/ Grupos de linchadores” — escrevi numa canção dos anos 1990, creio que do álbum “Circuladô”. Eu estava assustado com uma notícia de linchamento vinda da Bahia. A canção me veio à mente agora por causa da imagem do garoto atado ao poste no Flamengo. Essa imagem nos diz muito sobre nossa condição atual — e sobre nossa história toda. Muitas outras ocorrências de justiçamento foram noticiadas recentemente. Suponho que pela primeira vez vêm à tona reações de aplauso público a atos dessa natureza em áreas da sociedade onde outrora o decoro exigia ao menos fingimento de desaprovação.
Ao ouvir, nos anos 1970, em Lagos, na Nigéria, Abdias do Nascimento dizer que a situação racial brasileira era pior do que o então vigente apartheid da África do Sul — com a explicação de que lá as coisas eram abertas, enquanto no Brasil o racismo era dissimulado — eu disse a amigos: o mínimo que eu exijo é que um racista se sinta obrigado a fingir que não o é. Mas a verdade é que eu me interessava (desde bem antes disso) numa racialização ostensiva da discussão política brasileira. Os erros que aparecessem no caminho podiam ser tomados como dores do crescimento. Só era e é preciso que não se joguem fora tesouros nossos, desfazendo irremediavelmente o que nos servirá de musculatura social para cumprir um destino digno. Num momento de tanta complexidade instável, de esboços de mudanças de monta — e de tantas situações dramáticas —, não temos muito como ver nas exibições de crueldade em redes sociais e em noticiários de televisão sinais de crescimento. Assim como uma declaração racista deve ser, em primeira instância, rejeitada veementemente, sem muito espaço para reconhecimento de seu potencial dialético, assim também as expressões de apoio aos “justiceiros” do Flamengo e outros, seja na internet, seja na fala de uma apresentadora de telejornal, devem encontrar firme rechaço.
A canção a que me referi no começo deste artigo se chama “O cu do mundo”. Ela diz:
“O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu do mundo, esse nosso sítio) / O crime estúpido, o criminoso só/ Substantivo, comum/ O fruto espúrio reluz/ À subsombra desumana dos linchadores.” O criminoso só, substantivo, comum, o fruto espúrio — reluz à subsombra desumana dos linchadores. Que a voz destes — e dos que os apoiam — seja agora tão audível é sinal de que certos aspectos de nossas entranhas estão à mostra. O que pode significar oportunidade de superação de mazelas. Mas a imagem do menino preso ao poste por uma corrente — e a fala fascista de quem apoia seus torturadores — só tem conseguido me inspirar desesperança.
Meu amigo Fernando Barros, que foi meu colega no segundo ciclo do secundário, me contou — agora mesmo, na Bahia — que, tendo encontrado com o professor Agostinho da Silva em Portugal, no período do governo Collor, descreveu a sensação de descrença no nosso país que a situação política produzia (ele tinha votado em Lula e deplorava que, finda a ditadura, estivéssemos onde estávamos). O professor, numa tirada desaforada bem ao seu estilo, respondeu: “O futuro do Brasil é tão grandioso que não há abismo em que caiba”. Fernando reproduzia o adorável sotaque lusitano de Agostinho. Ele se lembrou da frase exatamente por estarmos falando dos horrores a que temos assistido. Ele não é um sebastianista nem creio que tenha a inocência de tomar as palavras do professor ao pé da letra (embora não haja propriamente outro modo de tomá-las). O que pensei, mesmo, foi que nada responde ao descalabro social que essas histórias sugerem senão algo tão afrontosamente sonhado e formulado. E senti que as palavras de Agostinho da Silva devem tornar-se uma espécie de oração para cada um de nós. Temos de repetir “O futuro do Brasil é tão grandioso que não há abismo em que caiba” — e ir aprendendo a agir baseados nisso.
Os dois rapazes que soltaram o rojão na Central estavam, um de calças jeans desbotadas e camisa cinza, o outro de bermuda preta e camisa também cinza — e não se dizem black blocs: por que tantos na imprensa quiseram fazer esse resumo sem fundamento? Por que facilitar julgamentos simplistas? A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores. Vamos repetir mais uma vez: o futuro do Brasil é tão grandioso que não há abismo em que caiba. É um exorcismo? Um mantra? Um ritual obsessivo-compulsivo? Seja como for, é a única palavra poética que se contrapõe à aparentemente incontornável caracterização de “cu do mundo” (que inclui “abismo” e “cabimento”).
Caetano Veloso.
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