Percebes? (05/05/2013)

É o contrário do que senti ao ler Agustina Bessa-Luís. Toda a densidade da vida luso-brasileira se vê negada. Diante da TV, assistindo a um filme português no Canal Brasil, me deparei com uma experiência que já conhecia de antes mas que pensei que tivesse esquecido. O filme era falado em português europeu e estava legendado em português brasileiro. Foi vendo uma obra de Manuel de Oliveira no cinema que eu tinha passado pela mesma situação. Revivendo-a ao assistir televisão, pensei com mais convencimento que, dado o fato de os brasileiros em geral terem dificuldade de entender a fala lusitana, deve ser aceitável que filmes portugueses passem com legendas no Brasil.

Isso não é uma constatação que me traga alegria. Enchi-me de felicidade quando, por exemplo, ouvi José Saramago falar numa entrevista dada a um programa daqui e me pareceu que qualquer brasileiro o pudesse entender. (O mesmo, aliás, se dá no filme sobre Bessa-Luís que pode ser visto no YouTube: a fala da grande escritora é clara e pode ser entendida do Oiapoque ao Chuí.) Já no documentário que foi feito sobre Saramago e sua mulher, Pilar, o mesmo processo de legendas que me exasperou foi utilizado. Ocorreu-me que é impensável que filmes ingleses precisem ser legendados nos Estados Unidos ou no Canadá — ou que filmes espanhóis exijam subtítulos na Argentina ou no México. O caso do Brasil é diferente. Os portugueses veem novelas brasileiras na TV e ouvem música popular brasileira desde sempre. Quando eu era criança, em Santo Amaro, ouviam-se fados no rádio, e Ester de Abreu era uma estrela da Rádio Nacional. Eu próprio gostava de tentar imitar a pronúncia lusitana em shows amadores no Ginásio Teodoro Sampaio. Havia a força da colônia portuguesa no Rio. Mas há já décadas que os brasileiros perderam contato com o linguajar luso. Não me consta que em Portugal os filmes brasileiros tenham tido a receptividade que as novelas e as canções têm. Nem mesmo fenômenos como “Cidade de Deus” ou “Pixote”. Mas os portugueses mantêm contato com nosso modo de falar.

Há uma evidente razão para que o português brasileiro seja mais inteligível a ouvidos lusitanos do que o português europeu a nossos ouvidos: nós pronunciamos as vogais das palavras. Quando cheguei a Portugal, na fase inicial do nosso exílio durante a ditadura, Gil e eu fomos, com Roberto Pinho, amigo conhecedor e amante da cultura portuguesa, a Évora. Ele era apaixonado por essa cidade do Alentejo e queria que nós a conhecêssemos. Andamos pelas ruas e praças dessa bela cidade e, a certa altura, um jovem local, louro e bonito, com cabelos mais longos do que a maioria dos jovens portugueses de então, mostrou-se curioso a nosso respeito. Entramos num bar para tomar refrigerante, e ele, conversando conosco, nos dizia que entendia muito bem o nosso espanhol. Insisti em que nós falávamos português, mas ele não ficou convencido. Eram as vogais. Se alguém pronunciar todas (mas todas mesmo) as vogais das palavras portuguesas à espanhola (ou seja, com os és átonos finais soando ê e os ós átonos finais soando ô, ao invés dos respectivos i e u de nossa fala) nós entenderemos tudo. Já se alguém pronunciar todas as palavras espanholas com os sons do português brasileiro, ou seja, os jotas soando j, os tês e dês palatalizados diante da vogal i, os esses intervocálicos soando z, etc., um ouvinte de língua espanhola não entenderia nada. O português brasileiro está para o português lusitano um pouco como o espanhol está para o português em geral.

Mas há o fator exposição, que contribui para que os portugueses, que ouvem canções brasileiras desde os anos 1930 ou 40 do século passado (e mesmo antes) e veem novelas brasileiras desde que a TV Globo modernizou o gênero nos anos 1970, entendam as formas sintáticas usuais no Brasil, além das gírias e expressões do português americano. Não nos adestramos para ouvir o português europeu. E falta-nos o midatlantic que está esboçado na fala de Saramago e de Agustina.

Muito se deve ao poder que cerca as outras duas grandes línguas europeias que se transplantaram para as Américas: o inglês e o espanhol. Vendo essas legendas que, pelo mero fato de estarem ali, gritam que não nos entendemos — e, o que é pior, não sendo nem mesmo legendas que reproduzem o que está sendo dito pelos atores lusos (com o que nos familiarizaríamos com a sintaxe e o vocabulário deles), mas “traduções” para a sintaxe e o vocabulário nossos (por exemplo: “Percebes?” vem legendado como “Você está entendendo?”), sentimos nossa impotência histórica, nossa irrelevância política. Notamos que é demasiado o que tem que ser feito. E assim parece que nada faremos.

Caetano Veloso.

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