Radical (16/03/2014)
Acabei de ler o segundo volume do “Getúlio” de Lira Neto. Muitas vezes me lembrei de meu pai na casa da Rua Direita. Todo o período do imediato pós-guerra, quando eu comecei a me entender por gente, ecoava nas conversas dele, num retrato de Roosevelt que ele manteve na parede por alguns anos, nas capas das revistas velhas que ficavam num baú na cafua. As reticências de meu pai quando se falava em Getúlio. Parece-me que ouço sua voz em todas as apreciações que se assumem (ou se pretendem) equilibradas. Meu pai viveu até os 82 anos, mas morreu antes de eu ter passado a ler jornal com assiduidade. Tenho nostalgia de conversas que não tive com ele, muita curiosidade de saber com mais precisão como era seu pensamento político. Isso importa muito. Meu pai era cuidadoso ao falar sobre a União Soviética e sobre Stalin. É óbvio que uma crítica ao stalinismo já circulava mesmo entre grupos mais à esquerda (e ele tinha uma maioria de amigos progressistas). Caso contrário ele não faria as considerações que fazia a respeito do ditador. As primeiras palavras que ouvi a respeito da opressão na União Soviética sob Stalin não foram pronunciadas depois das revelações de Kruschev: foram as palavras de meu pai numa sala em que uma foto de Roosevelt era mantida em louvor da (ele dizia com claridade a palavra) democracia.
Ouvi-o contar sobre alguns camaradas dele que, tendo aderido ao integralismo, o convidavam a entrar na corrente dos camisas-verdes. Em Santo Amaro houve um bom número de integralistas (li no Lira Neto que, no país, esses passavam do milhão): famílias muito católicas aderiram, um ou outro comerciante ou profissional liberal. Meu pai citava — com o tom da voz pedindo discrição — os nomes. Ele dizia: aquilo nunca me atraiu. E ria, como que procurando a memória íntima da recusa, que ia além da aproximação entre ele e a esquerda. Ele parecia se perguntar como é que tinha percebido algo indesejável naquele movimento, algo de que ele agora tinha plena consciência mas que, na sua mocidade, só pôde ser captado por uma intuição pessoal. Essas coisas eu ouvia quando já estava com meus 9 anos — e, repetidamente, depois, na minha adolescência —, mas a primeira atitude dele que revelou um sentimento político claro se deu quando eu ainda tinha uns 7. Uma professora do primário, pessoa de quem eu gostava muito, tinha dito na sala que os comunistas eram seres terríveis. Contei à mesa, e meu pai fez uma cara séria, quase zangada. Meio supondo que eu não entenderia bem o que ele estava dizendo, afirmou com intensa emoção que os comunistas eram pessoas, em geral inteligentes, que pretendiam mudar o mundo para que houvesse justiça, que queriam uma vida melhor para os trabalhadores. E terminou com a frase que nunca me abandonou: piores do que os comunistas são os anticomunistas.
Observo que muitos têm inclinações ideológicas na esteira das tendências paternas. É o meu caso. Claro que conheço muitos que formam sua opinião contra a posição dos pais. Não foi, no entanto, o que aconteceu comigo. Essa identificação com uma escolha política tão nuançada e mesmo imprecisa me levou a ter, com relação à própria inspiração que a gerou, uma curiosidade crítica quase obsessiva. Penso em meu pai como um homem admirável pela retidão, pela honestidade com que trabalhou no Departamento dos Correios e Telégrafos, pela sabedoria com que acolheu a originalidade pessoal de cada filho — e, por último mas nada menos importante — pelo fato de ele ter mantido fidelidade conjugal num ambiente em que os homens casados se gabavam de ter amantes. Mas vejo-o também como um representante típico do funcionalismo público. Esse “típico” aqui não deve absolutamente ser tomado como uma automática visão do servidor público como um aproveitador encostado, o ponto de força dos elos do fisiologismo político. Meu pai era o contrário de um encostado. Amava sua função. Sentia-se mais estimulado a trabalhar pelo fato de saber-se realizando um serviço público do que podem sentir-se muitos competitivos homens de negócios. Mas os ares do fisiologismo entravam pela porta da frente de nossa casa — sem que meu pai jamais tivesse tirado proveito disso. Ele queria bem a pessoas que tinham ligações políticas oportunistas. Mas sempre se manteve a uma distância saudável dos grupos de força. Rejeitava o autoritarismo getulista mas nunca apoiou a UDN (ele dizia que teria tudo para fazê-lo, mas respeitava mais as conquistas de Getúlio). Posso imaginá-lo crítico de Lula e do PT, sem aderir nem às oposições conservadoras nem às revolucionário-românticas. Classe média-média do interior. Mas radical. Daí imagino que venho.
Caetano Veloso.
© Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações.