Superstição (26/01/2014)
Vi “A grande beleza” numa “sala de arte” da Universidade Federal da Bahia e fiquei quase o tempo todo emocionado com as imagens de Roma e a língua italiana ecoando no cinema. Era como retomar a minha vida. Eu vi “La dolce vita” umas dez vezes no cine Tupy, na Baixa do Sapateiro, quando eu mal tinha me mudado de Santo Amaro para Salvador. Anos depois, ouvindo de Bernardo Bertolucci, em Londres, que a língua italiana não era apropriada para o cinema, reagi quase indignado: ouvir pessoas falando italiano num filme fazia com que as imagens ficassem visualmente mais bonitas e o ritmo de seu fluxo mais interessante. Hoje encontro vários jovens para quem as imagens e situações cinematográficas perdem todo o sentido se não vêm acompanhadas da língua inglesa. Eu próprio às vezes me surpreendi estranhando sequências fílmicas só porque os atores falavam russo ou parse. Mesmo o francês e o italiano, tão frequentes nos filmes que vi em minha juventude, já chegaram, em tempos mais recentes, a retirar a credibilidade das histórias que as imagens tentavam contar. Às vezes, diante da TV ligada no Telecine Cult, me vi estranhando cenas só por não serem acompanhadas dos sons da língua dos cinco olhos. Quase me identifiquei com o americano médio, que não consegue ver filmes legendados. E agora quase digo que é felizmente que, embora fale inglês, não acho fácil entender o inglês falado. Vi filmes franceses e italianos (além, é claro, de russos, gregos, turcos, iranianos, chineses, coreanos e japoneses — além de pelo menos um tailandês) nos últimos anos. Mas a frequência (e a competência em manter fórmulas eficientes) do cinema de Hollywood tem dominado tanto que sempre foi com algum estranhamento que os absorvi.
“A grande beleza” me trouxe de volta ao prazer imediato do filme falado em italiano. Me lembro de amar as falas nos filmes de Fellini, mesmo dubladas (há uma cena em “O cinema falado” na qual faço Dedé dizer que aquilo é “tudo fora de sinc, mas tem magia”, algo assim). A semelhança buscada e conseguida por Paolo Sorrentino com o mundo felliniano (freiras onipresentes, cardeais mundanos que frustram expectativas de orientação espiritual do protagonista, santos grotescos mas reais e festas de aristocratas e burgueses entediados) proporcionou uma verdadeira atualização da experiência de assistir a um novo filme de Fellini, mantendo toda a atmosfera daqueles que o mestre criou a partir dos anos 1950 do século passado, só que com smart- phones, Instagram e música eletrônica. Talvez eu não tenha conseguido gostar da fala final do protagonista, mas o tom de comédia melancólica, de farsa amarga, e a cor das paredes de Roma me trouxeram de volta ao encantamento de seguir diálogos em italiano com todo o coração.
E é mais do que significativo que isso me tenha acontecido estando eu na Bahia.
Meus 18 anos. Um futuro para além de Hollywood e dos então apenas intuídos cinco olhos (eis um tema atual que me obsessiona). Um eco do neorrealismo visto em Santo Amaro. Um amor intenso pela imagem em movimento embalada pelos sons. Não se pode imaginar o quanto sentir renascer tudo isso em mim é importante. Salvador parece que foi destruída. Prédios feios e crack. Violência e vulgaridade. Mas não: ouvi as palavras italianas com sotaque napolitano e romano adornando imagens misteriosas e a esperança se renovou. O filme parece aquele gafanhotinho verde que pousou em mim no carnaval de 1972, quando voltei do exílio — e que tanto desgostou Roberto Schwarz. Sou incapaz de perceber como kitsch o episódio de “Verdade tropical”. E a visão do filme de Sorrentino me apareceu como um momento semelhante àquele. O que espero? O que quero com tudo isso? Com tantas canções feitas às pressas — exatamente como nosso grande mestre Dorival Caymmi desaconselhava que se fizesse — e tanto pensamento desorganizado? O que quero dizer? O que as forças que me interessam serão capazes de fazer surgir no mundo? Quão ridícula é minha superstição?
Acho que “O som ao redor” é um filme superior a “A grande beleza”. Mas só sei que, se ele fosse reconhecido na realidade do mainstream do cinema mundial (Oscar etc.), algo do que sonho estaria pondo a cabeça de fora. E só continuo sonhando assim porque vejo gafanhotinhos e um filme como “A grande beleza” em plena Bahia. Um dia desses, vou me sentar, parar para pensar e escrever longamente sobre o que está por trás do que estou querendo dizer aqui. Tenho que ter muita paciência comigo mesmo (sem falar nos malucos que escrevem na internet). Ter visto esse filme aqui agora (apesar do ar-condicionado criminoso) me leva até este estágio.
Caetano Veloso.
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