Vertentes (02/03/2014)

Li muito Olavo de Carvalho, tanto no GLOBO quanto em livros. Foi por intermédio de Stellinha Caymmi que entrei em contato com esse autor, bem antes de ele escrever neste jornal. Depois que ele se mudou para os EUA, passei a acompanhar em ritmo bem mais espaçado o desenvolvimento de sua posição intelectual. Mesmo assim, foi depois de ouvi-lo em alguns vídeos no YouTube (onde ele xinga esquerdistas usando palavrões abundantemente) que li o seu livro sobre Epicuro. Entrei na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia em 1963 — e saí em 1964: o golpe chamou para averiguações o único professor que parecia ter alguma energia mental, um lente de história da filosofia, um kantiano, abertamente homofóbico. O principal educador da casa, que lecionava metafísica, era um padre tomista que, dizem, intercedeu em defesa do kantiano quando este foi intimado. O padre virou o chefe da censura em Salvador (quando voltei de Londres, ele quis proibir a execução da canção “Nine out of ten”, porque desconhecia o significado da palavra “reggae” e desconfiava de que ela contivesse ameaças subversivas). Esse o ambiente acadêmico em que mal esbocei uma formação filosófica. Mesmo ali, eu era um aluno de nível baixo. Carlos Nelson Coutinho estudou lá, mas, centrando suas forças no autodidatismo, alcançou sólida formação acadêmica. Eu, bem, eu lia Sartre e me encantava com seu brilhantismo — sem que encontrasse meios de pôr o que lia dele em perspectiva com o que se ensinava na faculdade. Em suma: miolo mole.

Um domingo desses escrevi aqui: “Acho a proposta de Olavo de Carvalho de uma política para os liberais muito presa à ideia de que o comunismo é como o diabo incansavelmente tramando contra o bem. Há boas intenções nos liberais e há boas intenções nos socialistas e comunistas”. Logo vi uma entrevista em que ele falava de “boas intenções” — e pensei: “será que ele está se referindo ao que escrevi? Não. Ele não daria atenção”. Mas agora alguém me mandou aqui o link de um blogueiro em que Olavo é citado tendo escrito que se eu alardeasse as boas intenções liberais num jornal da Coreia do Norte, seria preso e fuzilado, enquanto no mundo liberal escrevo admitindo haver boas intenções no socialismo e sou publicado. Ele conclui que faço equivalerem-se, quanto à liberdade de expressão, as democracias liberais e as autocracias nascidas das revoluções comunistas. Não. Sou um teimoso inimigo de tais autocracias. O próprio Fidel já escreveu contra mim. Alardeio meu respeito e interesse pelo credo liberal desde sempre. O que não significa que eu ache que não se possa fazer críticas ao liberalismo. Tenho dificuldade é de entender como se desenvolveu o liberalismo de Olavo, que, até onde sei, já foi entusiasta de teocracias islâmicas (seja como for, há nostalgias teocráticas em seus escritos). Não tenho cultura filosófica para acompanhar os meandros de tal desenvolvimento. Mas posso dizer que o liberalismo parece servir a Olavo de arma contra todas as outras vertentes progressistas.

Tudo isso me veio à mente porque o blogueiro comentou esta resposta que dei a “El País”: “Sempre olhei com desconfiança a ligação automática entre artistas e esquerdas. Mas sempre estive mais para a esquerda. Aprendi com meu pai, que temia os anticomunistas por ter visto a ação de grupos fascistas nacionais nos anos 1930. Além disso, desejo que se superem as estruturas opressivas de todo tipo. Não tenho temperamento conservador. Mas desde o final dos anos 1960 me vi obrigado a pensar com mais responsabilidade sobre essas questões. E percebi que o pensamento conservador pode abordar muitas coisas que as esquerdas recalcam. Acho perigoso e empobrecedor que esquerdistas só leiam autores de esquerda.” O cara diz que forço uma isenção e mantenho a aprovação dos esquerdistas. Não. Sou de esquerda. Os dissidentes na União Soviética, na Coreia do Norte, em Cuba, são, para mim, em princípio, de esquerda.

Mais importante do que tudo isso é a notícia da morte e a avaliação da imensa grandeza de Paco de Lucía. Tive a honra de conhecer Paco de perto, na casa de Vinicius Cantuária. Sua música, sua colaboração com Camarón de la Isla, todo o flamenco, é coisa que paira acima das guerras de ideias. O flamenco, por intermédio de seus gênios, é a afirmação de um poder de outra natureza. O da criação artística num ambiente único de estímulo à originalidade individual. Paco foi o deus de uma tradição que se define mais como ela mesma a cada surgimento de uma personalidade artística rebelde. Sempre me impressionou esse modelo. Há o filme “Flamenco”, de Saura, que é uma obra-prima por captar, na melhor forma, exatamente isso.

Caetano Veloso.

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