1968 - Caetano Veloso - Disco Tropicalista


É o disco tropicalista de Caetano Veloso, lançado no início de 1968. Antes, em outubro de 1967, foi quando o movimento tomou forma: Caetano e Gil interpretaram as suas "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", respectivamente, no 3º Festival de Música Brasileira da Tv Record. Caetano com os Beat Boys, grupo argentino, e Gil com Os Mutantes. A partir disso, o cenário musical brasileiro passaria por transformações que influenciariam toda uma geração. Em entrevista para Ana de Oliveira, Caetano definiu o movimento bem moderno: "A Tropicália foi simplesmente um esforço no sentido de defender o que era essencial na Bossa Nova". O álbum tem arranjos de Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen.

Caetano: "Esse é histórico. É o primeiro LP tropicalista. Pensei que só tinha valor histórico, mas quando ouvi Gal cantar Tropicália (no show Plural), achei que a canção é viva. Tem muitas ideias, muitas sugestões. O uso de conjunto de rock com guitarra elétrica, as paródias, uma certa violência nas imagens das letras. O início da faixa Onde Andarás, uma parceria minha com Ferreira Gullar, parece com o Chet Baker. Depois imito o Orlando Silva e o Nelson Gonçalves. Em Paisagem Útil, eu imito também o Orlando Silva. A única música que o produtor Manuel Barembeim me indicou foi Clarice. Eu queria gravar Dora, de Dorival Caymmi. Aí o Gianfrancesco Guarnieri me disse que o disco todo era um golpe publicitário para lançar Clarice. O nome é bonito, o refrão é bonito, mas a canção é monstra. Um pedaço não tem nada a ver com o outro. Eu mesmo não sei mais cantar Clarice. E a capa desse tamaninho ficou muito mais bonita." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991). 

"Na contracapa do meu meu primeiro LP solo escrevi: "Quando a gente não tem vontade de ir para os States não tem jeito". Isso não era um desejo tentando ocultar-se numa negação. Era o reconhecimento consciente de uma espécie de dever que eu tinha preguiça de cumprir: sendo capaz de aprender inglês com facilidade, podendo planejar uma investida nesse sentido, eu me sentia totalmente inapetente, enfastiado com a perspectiva. Achava-me tímido e desestimulado". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).

“Não foi apressado pelo sucesso do festival, eu já tinha feito o compacto e fui fazendo as faixas para o LP. Eu próprio tinha pressa de realizar, mas não havia pressão alguma da gravadora. Eu tinha intuição de que tudo aquilo teria vigência naquela hora, eu não pensava naquilo como uma obra permanente. O mais importante era a intervenção naquele minuto”. (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).

"Meu primeiro disco tropicalista! Enquanto gravava Domingo, eu compus Paisagem útil e comecei a fazer Alegria, alegria, já estava voltado para o tropicalismo. Quando foi lançado, eu já estava em outra, com a cabeça no meu disco individual, que saiu em 1967. Comecei a andar com o Rogério Duarte e a gente só falava em música comercial, sambas-canções bregas e Roberto Carlos - sobretudo porque Bethânia nos chamou a atenção para o Roberto. Eu já andava por demais interessado em sair daquele cerco, daquele mundo da MPB dita de boa qualidade. Até hoje, na verdade, vivo esperneando para sair deste negócio, mas é difícil. Essas definições que o mercado preestabelece são terríveis. No disco que fiz com Jorge Mautner, gravamos uma canção que poderia perfeitamente tocar como brega, em rádio brega. Mas não toca, "porque nós não pertencemos ao universo brega". Como se você estivesse preso. Igual às grades em nossos prédios, que nos protegem dos favelados, e os blocos de cimento que os traficantes colocam para fechar a favela do resto da sociedade. O tropicalismo queria fazer misturas. Queríamos, sim, ouvir e curtir Roberto Carlos. Tínhamos acabado de descobrir os Beatles. Achávamos que a criação tinha que permitir as experiências, porque o grupo que fazia o que era considerado bom e de alto nível tinha, de uma certa forma, um "certificado de qualidade" que era prévio à experimentação da obra na vida real. Por causa dos Beatles, o rock'n'roll ganhou no mercado um status que não tinha antes. Era considerado meramente comercial, lixo, não chegava a preocupar. Elvis Presley, Bill Haley, ninguém se preocupava. Mas pelo fato dos Beatles terem feito um grupo, cantar em grupo – coisa de inglês, não eram tão individualistas quanto os americanos -, eles ganharam aquela respeitabilidade por parte dos americanos. A proximidade com a cultura erudita num europeu é automática. É diferente do americano. Logo estávamos percebendo a presença da música clássica européia - tradicional e de vanguarda - dialogando com o "lixo do lixo" que era o rock'n'roll. Os tropicalistas queriam furar o cerco que separava aquilo que era considerado respeitável, de boa qualidade, de bom gosto do resto da criação. Esse "resto" nem sempre era considerado pela turma com quem a gente convivia. Às vezes, tinha um iê-iê-iê de Roberto Carlos, que estava estourando entre as empregadas domésticas, mas a nossa turma de música popular não conseguia ver se aquilo tinha ou não força poética. E, às vezes, tinha muita força poética. Por outro lado, como cantor, o Roberto Carlos era muito bom; mas isto não podia nem ser dito naquela época. Era tabu. Queríamos furar aquilo, gostava de um samba-canção que a Lana Bittencourt cantava, mostrar a força poética que vinha de áreas "não tão respeitáveis". Não éramos acompanhadores do que se passava com o rock no mundo. Começamos a prestar atenção depois dos Beatles. Estávamos conscientes de que vivíamos um período de extrema violência, estávamos sob uma ditadura militar. De certa forma, achávamos toda essa atitude de um grupinho, em Ipanema, fazendo música boazinha, de boa qualidade, politicamente correta, dizendo as coisas certas a respeito do que deve ser dito e com um grau de sofisticação harmônica que não metesse vergonha para quem conhece o jazz pretensioso do beebop, multo pouco para nós, do movimento tropicalista. Não queríamos representar aquilo - que considerávamos a tradição de uma elite pequena e que queria permanecer pequena -, queríamos quebrar com aquilo e trazer uma forma de expressão artística na música popular que contivesse violência: atitude, poética e sonora, Eu, pessoalmente, saltei do disco Domingo, que é cool e bossa nova, para um disco exatamente anti-cool - apesar de defender o que havia de mais radical na opção cool. Um trecho do que escrevi na contracapa do disco diz assim: "quando a gente não tem nenhuma necessidade de ir para os states, não há mesmo mais esperança, eu gostaria de fazer uma canção de protesto, de estima e consideração, mas essa língua portuguesa me deixa louco-rouco, os acordes dissonantes já não bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez transatlântica, e, no entanto, ELE é um gênio. quem ousaria dedicar esse disco ao JOÃO GILBERTO?" Todo o texto é escrito com letras minúsculas, menos o "ele" e o nome do João. Em maiúsculas, como se fosse Deus mesmo. Esse disco contou com a participação do grupo Os Beat Boys, formado por músicos argentinos, que tocaram comigo no Festival da Canção, em Alegria, alegria: Marcelo, bateria; Maurício, guitarra; Toyo, teclados; e Willy, contrabaixo; além do Tony Osanah, que ficou no Brasil e está por aqui até hoje. Foram descobertos por Guilherme Araújo, tocando na boate O Beco. Tocaram comigo em Alegria, alegria, No dia que eu vim embora e Soy loco por ti, América. A canção Tropicália teve arranjos de Júlio Medaglia, Clarice também. Anunciação foi de Sandino Hohagen. O conjunto RC-7, do Roberto Carlos, tocou comigo em Superbacana. A faixa Eles foi arranjada e tocada pelos Mutantes. A produção do disco foi do Manuel Barenbein. Outro dia revi o produtor do disco, Manuel Barenbein, e fiquei muito feliz. Ele foi ver o meu show Noites do Norte, em São Paulo. Uma figura, o Barenbein; era muito magro naquela época; hoje está gordo. Continua trabalhando com produção de discos. Depois de viver muitos anos na Europa - França e Itália - está de volta ao Brasil. Ele é de uma época em que o produtor tinha muitos poderes. A gravadora o encarregava de "cuidar" daquele disco, e ao artista competia apenas gravar as faixas. Não podia, sequer, ver a mixagem e muito menos a masterização, que chamavam de corte. Nenhum artista acompanhava esse processo. Como aquele negócio do cinema, que os atores não podiam ver o copião, para não atrapalhar. Lembro-me de que não queria colocar Clarice no disco. Quem impôs a canção foi o Barenbein. Eu queria gravar Dora, de Caymmi, e chamei o Dori para tocar. Mas não rolou. Nessa época, os produtores eram funcionários das gravadoras, designados por elas para produzir os discos dos artistas por elas contratados. Contamos com músicos excelentes, como o baterista Dirceu, em algumas faixas. Um músico maravilhoso, espetacular mesmo, divino, já falecido. O Dirceu, inclusive, foi quem disse aquelas frases na introdução de Tropicália que está no disco." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).


Texto da contracapa

Que maravilhoso país o nosso, onde se pode contratar quarenta músicos para tocar em uníssono. 
(Miles Davis, durante uma gravação)
antes havia orlando silva & flautas e até mesmo no meio do meio dia. antes havia os prados e os bosques na gravura dos meus olhos. antes de ontem o céu estava muito azul e eu & ela passamos por baixo dêsse céu, ao mesmo tempo com mêdo dos cachorros e sem muita pressa  de chegar do lado de lá. 
do lado de cá não resta quase ninguém. apenas os sapatos polidos refletem os automóveis que, por sua vez, polidos, refletem os sapatos assim per omnia [expressão em latim que aqui significa "deste modo para sempre"] até que (por absoluta falta de vento) tudo sobre num redemoinho leve, me deixando entrever um resto de rosto ou outro, pedaços, amém. marina sabe a história do pelicano etc. etc. o peito aberto e rasgado etc. etc. mas que nada: quando a gente não tem nenhuma necessidade de ir para os states não há mesmo mais esperança. eu gostaria de fazer uma canção de protestos de estima e consideração, mas essa língua portuguêsa me deixa louco rouco. os acordes dissonantes já não bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez transatlântica. e no entanto Êle é um gênio: quem ousaria dedicar êste disco a João Gilberto? quantos anos você tem? como é que você se chama, quando é que você me ama, onde é que vamos morar? os automóveis parecem voar os automóveis parecem voar por cima (mas mais alto que o caravelle) dos telhados azuis de lisboa, dos teus olhos, dos mais incríveis umbigos de tôdas as mulheres em transe, dos teus cabelos cortados mais curtos que os meus, meu amor, porque eu não quero, porque eu não devo explicar absolutamente nada. 

Caetano Veloso. 
P.S.: Gil, hoje não tem sopa na varanda de Maria

Lista de Músicas

Lado 1

1 - Tropicália
(Caetano Veloso)

2 - Clarice
(Caetano Veloso, Capinan)

3 - No Dia Em Que Eu Vim-me Embora
(Caetano Veloso, Gilberto Gil)

4 - Alegria, Alegria
(Caetano Veloso)

5 - Onde Andarás
(Caetano Veloso, Ferreira Gullar)

6 - Anunciação
(Caetano Veloso, Rogério Duarte)

Lado 2

1 - Superbacana
(Caetano Veloso)

2 - Paisagem Útil
(Caetano Veloso)

3 - Clara
(Caetano Veloso)

4 - Soy Loco Por Ti, América
(Gilberto Gil, Capinam)

5 - Ave-Maria
(Caetano Veloso)

6 - Eles
(Caetano Veloso, Gilberto Gil)

Vamos às Letras.

1 - Tropicália (Caetano Veloso)

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés, os caminhões
Aponta contra os chapadões, meu nariz

Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país

Viva a bossa, sa, sa

Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão

O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga,
Estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente,
Feia e morta,
Estende a mão

Viva a mata, ta, ta

Viva a mulata, ta, ta, ta, ta

No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina

E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis

Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia

No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança a um samba de tamborim

Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele pões os olhos grandes sobre mim

Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça

Porém, o monumento
É bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Viva a banda, da, da
Carmen Miranda, da, da, da da

Comentário do autor: "As outras faixas desse disco, que eu levava em frente com ideias entusiasmadas e resultados depressivos, eram todas de composições novas. Uma delas tinha me levado ao auge da excitação no momento em que a concebi. Pensando num velho samba de Noel Rosa chamado “Coisas nossas", que enumerava cenas, personagens típicos e características culturais da vida brasileira, e os emoldurava com o refrão “O samba, a prontidão e outras bossas/ São nossas coisas/ São coisas nossas” (depois de abrir magnificamente com a linha “Queria ser pandeiro pra sentir o dia inteiro a sua mão na minha pele a batucar”), imaginei uma canção que tivesse temática e estrutura semelhantes, só que, como no caso de "Alegria , alegria" em relação a "Clever boy samba", não ficasse no tom simplesmente satírico e valesse por um retrato em movimento do Brasil de então. Com a mente numa velocidade estonteante, lembrei que Carmen Miranda rima com "A banda" (e eu já vinha fazia muito tempo pensando em bradar o nome ou brandir a imagem de Carmen Miranda), e imaginei colocar lado a lado imagens, ideias e entidades reveladoras da tragicomédia Brasil, da aventura a um tempo frustra e reluzente de ser brasileiro. A palavra bossa, que já estava no samba de Noel (anos 30), se impunha, naturalmente (era claro para mim que ela estaria, como em “Coisas nossas", no refrão da nova música), e sua rima com palhoça punha, mais do que a bossa nova, a TV do Fino da Bossa de Elis em confronto com uma população que mal deixava de ser rural. O Carnaval, o próprio movimento tropicalista (que então ainda não tinha esse ou qualquer outro nome) , a miséria e a opressão, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, tudo teria lugar ali - as palavras encontravam rimas; as ideias, contrastes e analogias; as imagens, espelhos, lentes e ângulos insuspeitados. Mas eu não queria que a nova canção fosse, como "Coisas nossas”, um mero inventário. Era preciso que um daqueles elementos — ou um outro em que não tinha ainda pensado - impusesse uma estrutura ao texto a ser cantado, de modo a manter um alto nível de tensão entre as abordagens que se sucederiam numa lista monstruosa. A ideia de Brasília fez meu coração disparar por provar-se imediatamente eficaz nesse sentido. Brasília, a capital-monumento, o sonho mágico transformado em experimento moderno quase desde o princípio, o centro do poder abominável dos ditadores militares. Decidi-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo.

Bem, pelo menos era assim que eu sentia as coisas no paroxismo da inspiração. A canção real que consegui fazer me entusiasma muito menos do que a imagem difusa que eu fazia dela quando ela era apenas uma possibilidade. Mas ela exerceu forte impacto no ambiente de música popular e em muitas cabeças interessantes do Brasil e rendeu estudos acadêmicos em que foi chamada repetidas vezes de “alegórica” . E conheceu considerável sucesso popular.

O arranjo dessa canção ficou a cargo de Júlio Medaglia. Eu tinha distribuído o repertório do disco entre os três maestros da "música nova” de São Paulo que se aproximaram de nós: Medaglia , Damiano Cozzela e Sandino Hohagen. Rogério Duprat - na verdade o mais interessante deles - chegara um pouco depois e, a partir de “Domingo no parque”, tinha ficado mais ligado a Gil. No dia da gravação da base orquestral dessa música que, apesar de ser para mim a mais representativa, era a única que não tinha título, o baterista Dirceu, que nada sabia sobre o que tratava a letra que só seria gravada depois, ao ouvir a introdução em que sons percussivos, cantos de pássaros e intervenções do naipe de metais se superpunham, lembrou-se da carta de Pero Vaz de Caminha descrevendo a paisagem brasileira no momento do descobrimento. A gravação que foi aproveitada contém o discurso que Dirceu improvisou de pura gozação, sem imaginar que já se estava gravando, e muito menos quão adequada era sua falação ao tema tratado na letra. “Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo o que nela se planta, tudo cresce e floresce, e”, numa referência ao técnico de som Rogério Gaos que comandava a mesa de gravação, “o Gaos da época gravou!”, ouve-se Dirceu dizer antes que eu entre com os primeiros versos instauradores do panorama em que se desenrolará a construção da visão algo cubista: 

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o Carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país.

A canção, longa, depois de passar pela imagem de uma “criança sorridente, feia e morta” que “estende a mão” de sobre os joelhos do “monumento”, por uma “piscina com água azul de Amaralina" e pelos “cinco mil alto-falantes” que “emitem acordes dissonantes” (sempre entrecortada por um refrão musicalmente fixo mas de letra variável, dando vivas a pares de rima primária e contigüidade desconcertante, como “Viva a bossa sa-sa/ Viva a palhoçaça-ça-ça-ça”, “Viva Maria iá-iá/ Viva a Bahia iá-iá-iá-iá”, “Viva Iracema ma-ma/ Viva Ipanema ma-ma-ma-ma"), termina por arrematar o grito de Roberto Carlos “que tudo o mais vá pro inferno” com um "Viva a Banda da-da/ Carmen Miranda da-da da-da!”. Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto, seguida da Banda de Chico e do nome de Carmen Miranda (cuja última sílaba repetida evocava o movimento dadá e, para mim, misturava seu nome ao de Dadá, a famosa companheira do cangaceiro Corisco, estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol), dava, de forma elíptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram poucos), uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira. Mas cada refrão tinha sua constelação de sugestões ou referências. Além da “bossa" noelina e nova e elisreginianamente televisiva colada à “palhoça”, temos o nome do filme Viva Maria, de Louis Malle (Brigitte Bardot era uma presença feminina muito mais constante em minha mente do que a de Marilyn, como já disse), um filme sobre mulheres e revolucionários na América Latina, seguido de “iá-iá”, que é o modo como os negros da Bahia (que é a palavra que se segue no refrão) sempre chamaram suas patroas ou donas, assim como toda mulher que lhes fosse superior, uma vez que é "mãe" em ioruba; depois o par “Iracema” (um anagrama de América, nome da índia que é a personagem central e título do belo romance oitocentista de José de Alencar) e “Ipanema" (palavra tupi que quer dizer “água ruim”, nome tornado mundialmente famoso por causa da “Garota de Ipanema”, de Jobim e Vinicius de Moraes) aproxima as duas praias, uma do Rio e a outra do Ceará, e as duas figuras femininas, uma do século xix, outra do século xx, uma índia, outra branca, uma dando nome a uma praia (a praia de Iracema, em Fortaleza, foi assim batizada em homenagem à personagem de Alencar , outra tomando de uma praia seu nome (a garota de Jobim e Moraes é uma homenagem deles a Ipanema). "Viva a mata ta-ta/ Viva a mulata ta-ta-ta-ta" é o menos polissêmico dos refrões, mas a polissemia dos outros não é o que justifica sua existência e posicionamento no corpo da canção. Observá-la é apenas um ato de curioso detalhismo a que me dou o direito, por entender que pode ser agradável para quem me leia descobrir algumas das causas das emoções ou sensações que a canção porventura tenha desencadeado. A "mata" e a "mulata", de qualquer modo, são duas entidades múltiplas e, posto que óbvias, misteriosas.

Seria necessária muita paciência (sobretudo do leitor) para estender esse tipo de mirada às estrofes, mais longas e não menos cheias de sugestões. Basta que se diga por agora que essa canção sem nome justificou para mim a existência do disco, do movimento e de minha considerável dedicação à profissão que ainda me parecia provisória: era o mais perto que eu pude chegar do que me foi sugerido por Terra em transe." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 

“O título surgiu porque o Luiz Carlos Barreto tinha visto uma exposição e achou que minha música tinha a ver com uma obra de Hélio Oiticica, insistiu muito, então eu topei e o pessoal da produção gostou. Eu acabei conhecendo o Oiticica, ele aprovou tudo que a gente estava fazendo e aí ficou o título, que virou apelido para tudo aquilo que se chamou de movimento”. (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).


2 - Clarice (Letra: Capinam, Música: Caetano Veloso)

Há muita gente apagada pelo tempo
Nos papéis desta lembrança que tão pouco me ficou
Igrejas brancas, luas claras nas varandas
Jardins de sonho e cirandas, foguetes claros no ar

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Clarice era morena como as manhãs são morenas
Era pequena no jeito de não ser quase ninguém
Andou conosco caminhos de frutas e passarinhos
Mas jamais quis se despir entre os meninos e os peixes
Entre os meninos e os peixes,
entre os meninos e os peixes do rio, do rio

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Tinha receio do frio, medo de assombração
Um corpo que não mostrava, feito de adivinhação
Os botões sempre fechados,
Clarice tinha o recato de convento e procissão

Eu pergunto o mistério
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Soldado fez continência, o coronel reverência
O padre fez penitência, três novenas e uma trezena
Mas Clarice era a inocência,
Nunca mostrou-se a ninguém
Fez-se modelo das lendas, fez-se modelo das lendas
Das lendas que nos contaram as avós

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Tem que um dia amanhecia e Clarice
Assistiu minha partida, chorando pediu lembrança
E vendo o barco se afastar de Amaralina
Desesperadamente linda, soluçando e lentamente

E lentamente despiu o corpo moreno
E entre todos os presentes, até que seu amor sumisse
Permaneceu no adeus chorando e nua
Para que a tivesse toda, todo o tempo que existisse

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração

Comentário de Caetano sobre Clarice Lispector: "O mistério, seu grande mistério (no qual Capinam deve ter pensado também — e não apenas no da Clarice de sua infância — quando escreveu aquela letra que eu musiquei mal — mas que não deixou de ter encanto assim mesmo — e que entrou no primeiro disco tropicalista como Pilatos no Credo) pode ser parcialmente desvelado ao se reconhecer em sua obra o panteísmo atingido a partir da formação judaica na língua de Camões (Spinoza) e a experiência entre os feios de Elizabeth Bishop e Ed Motta (o Brasil). [...] Musa, sim. Todos estivemos também fisicamente apaixonados por Clarice em algum momento de nossas vidas. Eu, sempre. Cantei o refrão de Capinam sobre o mistério sempre pensando nela, com saudade dela, com pena de ter me perdido dela." (Caetano Veloso. O Globo, 2011). 

Caetano Veloso nas bancas de revista em 1968.

3 - No Dia Em Que Eu Vim-me Embora (Caetano Veloso, Gilberto Gil)

No dia em que eu vim-me embora
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais

Mala de couro forrada com pano forte, brim cáqui
Minha avó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal

Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital


4 - Alegria, Alegria (Caetano Veloso)

Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço, sem documento
Eu vou

Eu tomo uma Coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do brasil

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não, por que não

Comentário do autor: "Tendo assumido a tarefa que Gil tão claramente delineara, decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução. No meu apartamentinho do Solar da Fossa, comecei a compor uma canção que eu desejava que fosse fácil de apreender por parte dos espectadores do festival e, ao mesmo tempo, caracterizasse de modo inequívoco a nova atitude que queríamos inaugurar. "Paisagem útil" não me parecia preencher esses dois requisitos. Era bom que a nova canção fosse, como aquela, uma marcha de Carnaval transformada, mas não uma  arrastada e errática marcha-rancho. Tinha que ser uma marchinha alegre, de algum modo contaminada pelo pop internacional, e trazendo na letra algum toque crítico-amoroso sobre o mundo onde esse pop se dava. Lembrei de uma canção que eu tinha feito dois anos antes na Bahia para um show que me tinham proposto fazer na Boate Anjo Azul, requintado antro de artistas e intelectuais de Salvador, e que era uma sátira sobre os jovens alienados da cidade, intitulada "Clever boy samba". O show nunca aconteceu, mas a canção, diferentemente das outras que eu fazia então, era cheia de referências a lugares badalados da cidade (um deles era a porta da loja O Adamastor, assim chamada não por causa do monstro do poema épico de Camões, mas por ser o nome do seu proprietário, seu Adamastor Rocha, pai de Glauber), as gírias da moda, a trechos de canções americanas e a estrelas do cinema europeu, no intuito claro de criar empatia fácil (mas, eu tinha certeza, surpreendente) com a plateia sofisticada do Anjo Azul. Rapidamente compreendi que, se o tom de mera sátira devia ser subvertido, o esquema de retrato, na primeira pessoa, de um jovem típico da época andando pelas ruas da cidade (o Rio, agora), com fortes sugestões visuais, criadas, se possível, pela simples menção de nomes de produtos, personalidades, lugares e funções - pois esse era o esquema de "Clever boy samba" -, devia ser mantido pois era o ideal para os novos propósitos. À medida que a canção avançava, eu percebia que, como no caso de "Paisagem útil", havia a distância necessária para a crítica - para mim, uma condição de liberdade -, mas havia a alegria imediata da fruição das coisas. Essa consciência da alegria assim situada me levou a eleger como título (sem, contudo, incluir na canção) o bordão "alegria, alegria!", que o animador de TV Chacrinha emprestara do bom cantor de samba-jazz em vias de aderir a um comercialismo vulgar (mas nem por isso menos delicioso) Wilson Simonal. [...] "Alegria, alegria", seu bordão da temporada (ele lançou muitos que entraram na linguagem cotidiana), se tornou o título dessa minha canção projetada para ser um mero abre-alas mas que se tornou o sucesso mais amplo e mais perene entre todas as minhas composições." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 

"Quando eu escrevi AlegriaAlegria eu não pensava nem um pouco em mim. Aquilo não era eu, era uma observação de fora, como um repórter, de toda uma coisa que havia na época, o garotão que bebia Coca-Cola e via televisão. Isso não era eu nem um pouco, eu nem bebia Coca-Cola naquela época, detestava. Pois a Nara Leão quando ouviu me disse que era a minha cara. E eu achei absurdo. Hoje eu concordo com ela. Realmente é a minha cara." (Caetano Veloso para O Globo, 1982).

"Alegria, alegria" é a chamada música psicodélica, porém não sei o que é música psicodélica, e não acredito que nenhuma música possa ter um poder psicodélico sobre uma pessoa." (Entrevista ao Jornal do Brasil, 1968).

"Eu me emociono com uma coisa e penso: vou fazer uma música sobre isso, sobre um cara andando numa cidade grande, vendo revistas, vendo as coisas, pensei nisso. Depois fui escolhendo os elementos que compõem essa coisa (estou contando mesmo uma coisa que fiz recentemente, é a música Alegria, alegria), fui pensando em alguns elementos de letra que dessem bem a imagem do assunto que eu queria tratar e, aos poucos, fui pensando na música como um tema alegre, do cara andando na rua e vendo as coisas, revistas coloridas, Copacabana, uma coisa que fosse alegre e estivesse habitada por um som muito atual, um som meio elétrico, meio beat, meio pop, como o que a letra tem, que é a coisa atual da revista, fotografia de Claudia Cardinale, guerras, toda a festa do mundo moderno, festa estranha. Pensei no assunto, vim pensando na rua, cheguei em casa, comecei a pensar na letra, à noite fiquei fazendo até a madrugada. Aí fiz a melodia toda e a primeira parte da letra. No outro dia, fiz a segunda parte." (Depoimento a José Eduardo Homem de Mello, s/d). 

Caetano no 3º Festival da MPB.

5 - Onde Andarás (Letra: Ferreira Gullar, Música: Caetano Veloso)

Onde andarás nesta tarde vazia
Tão clara e sem fim
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces de mim?
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces...
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração
A cigarra do apartamento
O chão de cimento existem em vão
Não serve pra nada a escada, o elevador
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor
E é por isso que eu saio pra rua
Sem saber pra quê
Na esperança talvez que o acaso
Por mero descaso me leve a você
Na esperança talvez que o acaso
Por mero descaso
Me leve... eu sei

Comentário de Caetano: "Tornei-me parceiro de Ferreira por causa de um pedido de Bethânia: ela me deu os versos de "Onde andarás" para que eu musicasse. Gullar conversava às vezes comigo e com Dedé, junto a Paulo Pontes e, às vezes Vianinha. Muito presente, e pessoa maravilhosa em quem sempre penso com admiração e saudade, estava Thereza Aragão, à época sua mulher e mãe dos seus filhos. Ela foi a amiga mais importante de Bethânia em sua vida no Rio de Janeiro. Era mais do que o irmão eficaz que eu conseguiria ser. [...]" (Caetano Veloso via Facebook, 2016).



6 - Anunciação (Caetano Veloso, Rogério Duarte)

Maria, Maria
Nosso filho está perto
Esta noite eu o vi em sonhos
Me chamando
Antes já o pressentia
Esta noite eu o vi de repente, vagamente
Maria, Maria
Maria tenho medo que você não chegue a tempo
Que ele apareça em meu quarto noturno
Com uma faca na mão
E um sorriso violento nos lábios
É preciso impedir que ele cresça longe de nós
E não nos reconheça
Maria, Maria
Não pense que estou louco
Nosso filho já nasceu
E se não tomarmos conhecimento
Como iremos saber
Que a nossa carne que nos mata
Maria, Maria
Tente mesmo chegando
A cabeleira vermelha
Como incêndio mais belo do que nós
Enquanto nós pensamos
Que inda jaz
Na caixa de sapato
Não deixe nosso filho
Substituir o teu leite
Pelo leite das feras
Maria, Maria
Maria
Não te iludas com pílulas ou outros métodos
Tarde demais para tais providências
Essa noite, Maria, essa noite ele gritou seu nome
Maria, Maria

Comentário de Caetano: "Uma canção misteriosa e um tanto sombria sobre um filho imaginário." (Caetano Veloso em entrevista na Revista Noize, 2023).

Dedé Gadelha e Caetano Veloso.

7 - Superbacana (Caetano Veloso)

Toda essa gente se engana
Ou então finge que não vê que eu nasci
Pra ser o superbacana
Eu nasci pra ser o superbacana
Superbacana Superbacana
Superbacana Super-homem
Superflit, Supervinc
Superhist, Superbacana
Estilhaços sobre Copacabana
O mundo em Copacabana
Tudo em Copacabana Copacabana
O mundo explode longe, muito longe
O sol responde
O tempo esconde
O vento espalha
E as migalhas caem todas sobre
Copacabana me engana
Esconde o superamendoim
O espinafre, o biotônico
O comando do avião supersônico
Do parque eletrônico
Do poder atômico
Do avanço econômico
A moeda número um do Tio Patinhas não é minha
Um batalhão de cowboys
Barra a entrada da legião dos super-heróis
E eu superbacana
Vou sonhando até explodir colorido
No sol, nos cinco sentidos
Nada no bolso ou nas mãos
Um instante, maestro
Super-homem Supervinc
Superflit, Superhist
Superviva, Supershell
Superquentão

Gil e Caetano.

8 - Paisagem Útil (Caetano Veloso)

Olhos abertos em vento
Sobre o espaço do Aterro
Sobre o espaço sobre o mar
O mar vai longe do Flamengo
O céu vai longe e suspenso
Em mastros firmes e lentos
Frio palmeiral de cimento

O céu vai longe do Outeiro
O céu vai longe da Glória
O céu vai longe suspenso
Em luzes de luas mortas
Luzes de uma nova aurora
Que mantém a grama nova
E o dia sempre nascendo

Quem vai ao cinema
Quem vai ao teatro
Quem vai ao trabalho
Quem vai descansar
Quem canta, quem canta
Quem pensa na vida
Quem olha a avenida
Quem espera voltar

Os automóveis parecem voar
Os automóveis parecem voar
Mas já se acende e flutua
No alto do céu uma lua
Oval, vermelha e azul
No alto do céu do Rio
Uma lua oval da Esso
Comove e ilumina o beijo
Dos pobres tristes felizes
Corações amantes do nosso Brasil

9 - Clara (Caetano Veloso)

Quando a manhã madrugava
Calma
Alta
Clara
Clara morria de amor

Faca de ponta
Flor e flor
Cambraia branca sob o sol
Cravina branca amor
Cravina amor
Cravina e sonha

A moça chamava Clara
Água
Alma
Lava
Alva cambraia no sol

Galo cantando
Cor e cor
Pássaro preto
Dor e dor
O marinheiro amor
Distante amor
Que a moça sonha só

O marinheiro sob o sol
Onde andará o meu amor
Onde andará o amor
No mar amor
No mar sonha

Se ainda lembra o meu nome
Longe
Longe
Onde
Onde estiver numa onda num bar
Numa onda que quer me levar
Para o mar de água clara
Clara
Clara
Clara
Ouço meu bem me chamar

Faca de ponta
Dor e dor
Cravo vermelho no lençol
Cravo vermelho amor
Vermelho amor
Cravina e galos
E a moça chamada Clara
Clara
Clara
Clara
Alma tranquila de dor

Comentário do autor: "Tem uma música estranha e usa muitas palavras em a. Lembro que Augusto de Campos gostava muito dessa canção. Eu não gosto de "marinheiro amor", que me soa um pouco como Lorca, embora não pareça exatamente, mas me lembro que quando fiz tinha a ver com as coisas dele." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

"'Clara é posterior a Paisagem Útil. Foi feita nessa época de inquietação em que eu estava tentando retomar aquele impulso da linha evolutiva. Eu procurava uma música diferente, um som que fosse realmente novo. Ela tem elementos concretistas. [….] Clara é uma tentativa de fazer alguma coisa como João Gilberto, de fazer uma coisa limpa. É o lado apolíneo dessa inquietação. [..] Está, para mim, muito ligada a uma revisão das coisas mais importantes do início da BN." (Caetano Veloso. Balanço da Bossa, 1974).

Caetano ensaiando para o 3º FMPB em 1967.

10 - Soy Loco Por Ti, América (Gilberto Gil, Capinam)

Soy loco por ti, América, yo voy traer una mujer playera
Que su nombre sea Marti, que su nombre sea Marti
Soy loco por ti de amores tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica
Y el cielo como bandera, y el cielo como bandera
Soy loco por ti, América, soy loco por ti de amores
Sorriso de quase nuvem, os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas, o corpo cheio de estrelas
Como se chama a amante desse país sem nome, esse tango, esse rancho,
Esse povo, dizei-me, arde o fogo de conhecê-la, o fogo de conhecê-la

Soy loco por ti, América, soy loco por ti de amores
El nombre del hombre muerto ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente, antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es pueblo, el nombre del hombre es pueblo

Soy loco por ti, América, soy loco por ti de amores
Espero a manhã que cante, el nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes, soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra
Quem sabe canções do mar, ai, hasta te comover, ai, hasta te comover

Soy loco por ti, América, soy loco por ti de amores
Estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício, de susto, de bala ou vício
Num precipício de luzes entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços
Nos braços, nos olhos, nos braços de uma mulher, nos braços de uma mulher
Mais apaixonado ainda dentro dos braços da camponesa, guerrilheira
Manequim, ai de mim, nos braços de quem me queira, nos braços de quem me queira

Soy loco por ti, América, soy loco por ti de amores

Comentário de Caetano: "Se a linha-dura do samba repudia a guitarra, a ela dedico Soy loco por ti, América, uma rumba autêntica da dupla Gilberto Gil e Capinam, incluída em meu LP a ser lançado brevemente". (Caetano Veloso em entrevista ao Jornal do Brasil, 1968). 


11 - Ave-Maria (Caetano Veloso)

Ave Maria, ave
Gratia plena, ave
Dominus tecum
Dominus tecum, tecum
Benedicta tu in mulieribus, tu
Benedictus frutus ventris tuis Jesu Jesu
Sancta Maria
Sancta Maria
Mater Dei
Ora, pro nobis
Ora, pro nobis
Pecatoribus
Nunc et in hora, hora
Nunc et in hora, hora
Hora
Mortis, nostra, nostre
Amém


12 - Eles (Letra: Caetano Veloso, Música: Gilberto Gil)

Em volta da mesa
Longe do quintal
A vida começa
No ponto final
Eles têm certeza
Do bem e do mal
Falam com franqueza do bem e do mal
Creem na existência do bem e do mal
O florão da América
O bem e o mal
Só dizem o que dizem
O bem e o mal
Alegres ou tristes
São todos felizes durante o Natal
O bem e o mal
Têm medo da maçã
A sombra do arvoredo
O dia de amanhã
Eis que eles sabem o dia de amanhã
Eles sempre falam no dia de amanhã
Eles têm cuidado com o dia de amanhã
Eles cantam os hinos no dia de amanhã
Eles tomam o bonde no dia de amanhã
Eles amam os filhos no dia de amanhã
Tomam táxi no dia de amanhã
É que eles têm medo do dia de amanhã
Eles aconselham o dia de amanhã
Eles desde já querem ter guardado
Todo o seu passado no dia de amanhã
Não preferem São Paulo, nem o Rio de Janeiro
Apenas tem medo de morrer sem dinheiro
Eles choram os sábados pelo ano inteiro
E há só um galo em cada galinheiro
E mais vale aquele que acorda cedo
E farinha pouca, meu pirão primeiro
E na mesma boca sempre o mesmo beijo
E não há amor como o primeiro amor
Como primeiro amor
Que é puro e verdadeiro
E não há segredo
E a vida é assim mesmo
E pior a emenda do que o soneto
Está sempre à esquerda a porta do banheiro
E certa gente se conhece no cheiro
Em volta da mesa
Longe da maçã
Durante o natal
Eles guardam dinheiro
O bem e o mal
Pro dia de amanhã.

Os Mutantes: E nós? E nós? E nós?
Caetano: Os Mutantes são demais!


Ficha técnica

Leiaute da capa: Rogério Duarte
Foto: David Drew Zingg
Arte-final: Liana e Paulo Tavares
Direção de produção: Manuel Barembein

Ficha técnica complementar fornecida por Caetano Veloso*

Participações: Julio Medaglia (arranjos em Tropicália, Clarice e Paisagem útil), Gal Costa (voz em Clara), Mutantes (Eles), RC7 (Superbacana), Beat Boys (Tony Osanah: guitarra e violão; Willie Verdaguer: baixo; Cacho Valdez: guitarra; Toyo: órgão e Marcelo Frias: bateria) em Alegria, alegria, No dia em que eu vim-me embora, Soy loco por ti, América, Ave-Maria, Clara e Anunciação, Damiano Cozella (arranjo em Anunciação) e Dirceu (fala na introdução e bateria em Tropicália) *informações ditadas de memória a Charles Gavin em setembro de 2006 e sujeitas a eventuais incorreções.

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