1968 - Tropicalia ou Panis et Circencis

Num ambiente musical em que a verve do tropicalismo já estava em alta desde o ano anterior, Tropicalia ou Panis et Circencis veio para coroar o movimento bem moderno. Já nasceu histórico. O disco-manifesto, que surgiu de uma ideia de Caetano Veloso, foi lançado em julho de 1968 com ele, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Nara Leão e o grupo Os Mutantes (Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias), fazendo parte também os letristas Torquato Neto e Capinan. Os arranjos ficaram por conta de Rogério Duprat, Julio Medaglia e Damiano Cozzela. O LP tirou o segundo lugar numa lista dos 100 maiores discos da música brasileira, feita pela revista Rolling Stone Brasil.

Caetano: "Com arranjos divinos de Rogério Duprat, veio logo depois, tanto do meu disco individual quanto do disco individual do Gil, que são os discos inaugurais do tropicalismo. Quando fizemos Tropicália ou panis et cirsencis, que é um disco meio manifesto e coletivo, estávamos cientes de toda essa efervescência política Pós-AI-5 a que me referi anteriormente. Nele tem canções, como Enquanto seu lobo não vem, que são de comentários sobre essa questão social e que são respostas poéticas ao estado de ânimo dos brasileiros naquele momento. Convida para as passeatas, identifica-se com os desfiles da Mangueira, fala "vamos por debaixo das ruas" como um apoio a um trabalho clandestino, se fosse preciso, "há uma cordilheira sob o asfalto", por causa de Che Guevara na Cordilheira, coisas assim. "Sob o asfalto da Avenida Presidente Vargas", com esse "Presidente Vargas" sendo repetido várias vezes, porque o presidente Vargas representa o centro da história do Brasil moderno, que resultou em um líder de grande avanço. Até hoje, para o bem ou para o mal, ele ainda é o grande nome da história política do Brasil moderno. A canção gritava o nome dele, gritando pelo Brasil. Em um de seus arranjos divinos, Rogério Duprat faz uma menção à Internacional Comunista, que a censura nem notou. A rigor, podemos dizer que a censura nunca entendeu nada. Também não sacou todas essas coisas que falei a respeito de Enquanto seu lobo não vem; como a esquerda também não sacou muita coisa. Um ou outro percebeu as mensagens na letra dessa canção; mas aquela esquerda festiva do nosso ambiente, posso dizer, não sacou coisíssima nenhuma. Também na letra de Lindonéia está caracterizada a violência em que se vivia, através de versos como "cachorros mortos na rua / policiais vigiando", "Lindonéia desaparecida". Era a poesia da opressão. Tropicalia ou panis et cirsencis é um disco eivado dessas canções. Basta ver: "Bra-zi-il / Fu-zi-il". Mesmo assim, a esquerda falou mal, como sempre. Não deixou de dizer que era entreguismo. Está tudo em Tropicália ou panis et cirsencis. Os lindos arranjos do Rogério Duprat, que foi muito orientado por mim. É um filme meu, esse disco. O Gil, que fez coisas divinas nesse trabalho, não ficou tão animado com o resultado. Ele achou que tinham umas coisas desafinadas na orquestra. Mas eu gosto tanto do conceito, da concepção, do filme e da poesia que é esse disco, que não me incomodei nem um pouco com os detalhes técnicos que incomodaram o Gil na época. Tropicália ou panis et cirsencis traz mais um marco: neste disco está a primeira realização do grande grupo Os Mutantes, com a canção que se destaca do resto do disco, Panis et circenses, gravada antes de Os Mutantes fazerem o disco deles. Sempre foram maravilhosos, um dos maiores grupos de rock do mundo, sempre achei isto e digo isto no meu livro Verdade Tropical. Hoje, o mundo inteiro reconhece, tanto os músicos quanto os críticos de revistas inglesas e americanas, todos eles dizem que Os Mutantes são importantíssimos. A meu ver, Panis et circenses na gravação de Os Mutantes, juntamente com Baby, naquele arranjo maravilhoso do Rogério, na interpretação da Gal, bem como Coração materno, também pela solução de arranjo que o Rogério encontrou, são exemplos no disco Tropicalia ou panis et cirsencis de peças tropicalistas bem-acabadas, perfeitas, que muito me satisfizeram na hora em que as vi prontas. Neste disco, estréia também o grande artista Tom Zé, a quem fui buscar em Salvador. Ele não queria de jeito nenhum vir para São Paulo, tinha medo do frio e pavor de deixar a Bahia. Insisti muito, o trouxe de avião comigo. Gravamos músicas dele nesse disco, começou aí a sua carreira e Tom Zé está aí até hoje, atuante, compondo e gravando. Depois de longo silêncio, Tom Zé tornou-se mundialmente conhecido graças ao seu LP Estudando o samba, que "bateu nos ouvidos" do David Byrne na hora certa. Até porque, ele estava quase desistindo de tudo e voltando para Irará, onde tinha projetos de cuidar de um posto de gasolina. A capa do disco Tropicália ou panis et cirsencis correu o mundo. É, hoje, um clássico internacional. Apareceu com destaque no jornal The New York Times, na revista View, na Mojo. Na época, nem achei que fosse suficientemente moderna. Rogério Duprat mesmo levou o penico que aparece segurando, foi o que deu para se fazer na hora. Foi feita na casa do Olivier Perroir e, infelizmente, não lembro quem foi o fotógrafo. Acho até que ele devia se apresentar, pois a foto dele tem sido republicada no mundo inteiro. Acho que no disco Tropicália ou panis et cirsencis só faltou a Bethânia. Ela ia participar, ia gravar a canção Baby, sugerida por ela. Acabou sendo gravada pela Gal Costa, porque Bethânia não foi à gravação. Depois ela explicou, não gostava de participar de obras coletivas, nem de grupos ou movimentos, por ser uma pessoa muito individual. Depois ela gravou Baby, em disco solo. O André Midani, que sempre foi ligado à bossa nova e havia ficado muito tempo fora do país, retornou exatamente quando acabara de ser lançado o Tropicália ou panis et cirsencis. E declarou, ao ouvi-lo: - O Brasil mudou." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).

"Toda a coisa da fase tropicalista eu gosto muito, mesmo. Vejo aquilo muita... alegria. Nunca mais ouvi muito aqueles discos não. Eventualmente, uma pessoa bota e eu ouço e digo ah, legal, sacumé? Baby eu gosto muito, a música Tropicália, aqueles discos todos eu gosto. O show na Sucata, o espetáculo de televisão em São Paulo: 'Divino Maravilhoso', algumas vezes, saiu genial. Me lembro com alegria das primeiras coisas que Gal fez e, principalmente, aquele LP do Gil tem 'Luzia, Luluza', música que até hoje eu ouço com uma emoção enorme, profundíssima!" (Caetano Veloso. Livro "Alegria, Alegria". Pedra Q Ronca, 1977).



Texto da contracapa (escrito por Caetano Veloso)

SEQUÊNCIA 5

CENA 3

INTERIOR, NOITE, PALCO MAL ILUMINADO DE TEATRO VASIO. A CÂMERA DESCREVE UM TREAVELLING LENTO PARTINDO DO FUNDO DA PLATÉIA ATÉ CLOSE DO ATOR QUE SE ENCONTRA AO CENTRO DO PALCO. OS PERSONAGENS ESTÃO VESTINDO BLUE-JEANSE CAMISAS CÁQUIS. VÃO FALANDO À MEDIDA QUE A CÂMERA SE APROXIMA.

GIL - Está encerrada a sessão. MOISÉS, CHARLESSTARRET, ÁTILA (REI DOS UNOS), JOAN CRAWFORD (THE WOMAN WHO LOVED JONNY GUITAR, CI. "LA CHINOISE"), ANNE FRANK & ROBERTO CAMPOS, EM CORO: O Brasil é o país do futuro. 
CAETANO: Êsse gênero está caindo de moda. 
CAPINAM: No Brasil e lá fora: nem ideologia nem futuro. 
TORQUATO: Bacana. Está ótimo. Pode apagar.

CORTA.

SEQUÊNCIA 5

CENA 4

EXTERIOR, DIA. CÉU DE CINEMA RUSSO (OU AMERICANO), PLANO GERAL, PERSONAGENS DISCUTEM ENTRE SI, MAS COMO ESTÃO DE PÉ SOBRE UMA BALAUSTRADA, OS POPULARES PENSAM TRATAR-SE DE UM COMÍCIO. 

TORQUATO - Será que o Câmara Cascudo vai pensar que nós estamos querendo dizer que bumba meu boi e iêiêiê são a mesma dança?
GAL -  Eu trouxe o SuperBoy bi, a Luluzinha, o Carinho, o Tio Patinhas, o Zé Carioca...
O POVO - Queremos uma vitrola enchovalhada, uma vitrola enchovalhada...

SEQUÊNCIA 5

CENA 5

EXTERIOR, DIA CINZENTO. O MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT NO ALTO DE UMA TORRE DE TV, AO FUNDO A CIDADE DE SÃO PAULO. 

ROGÉRIO DUPRAT - A música não existe mais. Entretanto sinto que é necessário criar algo nôvo. Ou melhor, sei que alguma coisa nova se cria e a partir daí o resto não me interessa. Já não me interessa o municipal, nem a queda do municipal, nem a destruição do municipal. Mas, e vocês, mal saídos do calor do borralho, vocês baianos, terão coragem de procurar comigo? terão coragem de fussar o chão do real? como receberão a notícia de que um disco é feito para vender? com que olhos verão um jovem paulista nascido à época de Celly Campello e que desconhece Aracy & Caymmi & Cia.? terão coragem de reconhecer que êsse mesmo jovem pode ter muito a lhe ensinar? (PAUSA)
Sabem vocês o risco que correm? Sabem que podem ganhar muito dinheiro com isso? Terão coragem de ganhar muito dinheiro? Terão mesmo coragem de saber que só desvencilhando-se do conhecimento atual que têm das formas puras do passado é que poderão reencontrá-las em sua verdade mais profunda?
Por acaso entendem alguma coisa do que estou dizendo? Baianos, respondam. 

A NOITE - CAI REPENTINAMENTE. ZOOM. SILHUETA DO MAESTRO AGARRADO À TORRE DE TV. ACENDE-SE A LUZ VERMELHA NO ALTO DA TORRE. OUVE-SE UMA VOZ AO LONGE, EM RESPOSTA AO CHAMADO DO MAESTRO. 

ADROALDO RIBEIRO COSTA - (VOZ OFF. LONGÍQUA) - Enquanto nós cantarmos haverá Brasil.

CORTA.

SEQUÊNCIA 5

CENA 6

INTERIOR, NOITE. PAREDE AZUL. OS PERSONAGENS ENTRAM EM CAMPO, UM A UM. DIZEM SUAS FALAS E SAEM EM SEGUIDA. 

TORQUATO - Pode dizer palavrão?
CAETANO - Vocês são contra ou a favor do transplante de coração materno?

SEQUÊNCIA 5

CENA 7

EXTERIOR, DIA DE SOL. NARA E OS MUTANTES PASSEIAM DE MÃOS DADAS E PÉS DESCALÇOS NA AREIA. TODOS OS CABELOS VOAM AO VENTO. PRAIA DE IPANEMA.

NARA - Pois é... e Ernesto Nazaré e Chiquinha Gonzaga... e Pixinguinha...
OS MUTANTES - Pois é... e os Jeffersons's Airplane e os MAMMAA&Papas... e...
NARA - Pois é... e as pessoas se perdem nas ruas e não sabem ler e consultam consultórios sentimentais e querem ser miss brasil... e se perdem...
OS MUTANTES - E aquela distorção dá a idéia de que a guitarra tem um som contínuo... e até a boutique dos beatles se chama maçã...
NARA - Pois é... falaram tanto...

CORTA.

SEQUÊNCIA 5

CENA 8

INTERIOR, NOITE. TOM ZÉ, SOZINHO NO QUARTO, LENDO A ANTOLOGIA NOIGANDRES. PAPÉIS COM ANOTAÇÕES ESPALHADOS, ÊLE PARA DE LER, ANOTA ALGUMAS COISAS NUM PAPEL. PARA UM INSTANTE. VOLTA A LER. FECHA O LIVRO E FICA PENSANDO. CÂMERA CORRIGE E APROXIMA-SE DO SEU ROSTO. CLOSE DE TOM ZÉ. 

CORTA.

SEQUÊNCIA 5

CENA 9

INTERIOR, NOITE. EXTERIOR, DIA. ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. NARA, GAL, GIL, CAETANO, TORQUATO, CAPINAM E OS MUTANTES, FRENTE AO MICROFONE, OBEDECEM AO MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT. UNÍSSONO. 

TODOS - As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender. 

CORTA.

SEQUÊNCIA 5

CENA 10

INTERIOR, DIA. SALA DE UMA CASA EM NEW JERSEY. PLANO AMERICANO. CÂMERA IMÓVEL. JOÃO GILBERTO E AUGUSTO DE CAMPOS SENTADOS.

AUGUSTO - E o que é que eu digo a êles?
JOÃO - Diga que eu estou daqui olhando pra êles. 




Programa 'Divino, Maravilhoso', 1968.

Lista de Músicas

FACE A

1 - Miserere Nobis - Gil + Mutantes
(Gil & Capinam)

2 - Coração Materno - Caetano
(Vicente Celestino)

3 - Panis et Circencis - Mutantes
(Gil & Caetano)

4 - Lindonéia - Nara
(Gil & Caetano)

5 - Parque Industrial - Gil + Gal + Caetano + Mutantes + côro
(Tom Zé)

6 - Geléia Geral - Gil
(Gil & Torquato)

FACE B 

1 - Baby - Gal + Caetano
(Caetano)

2 - Três Caravelas - Caetano + Gil
(A. Alguero, Gasey Moreu)

3 - Enquanto Seu Lobo Não Vem - Caetano + Gal + Rita
(Caetano)

4 - Mamãe Coragem - Gal
(Caetano & Torquato)

5 - Batmacumba - Gil + Mutantes + Gal + Caetano
(Gil & Caetano)

6 - Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia - (Caetano + Gil + Mutantes + Gal + côro)

Vamos às Letras.

1 - Miserere Nobis (Letra: Capinam, Música: Gilberto Gil)

Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão

Já não somos como na chegada
Calados e magros, esperando o jantar
Na borda do prato se limita a janta
As espinhas do peixe de volta pro mar

Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão

Tomara que um dia de um dia seja
Para todos e sempre a mesma cerveja
Tomara que um dia de um dia não
Para todos e sempre metade do pão

Tomara que um dia de um dia seja
Que seja de linho a toalha da mesa
Tomara que um dia de um dia não
Na mesa da gente tem banana e feijão

Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão

Já não somos como na chegada
O sol já é claro nas águas quietas do mangue
Derramemos vinho no linho da mesa
Molhada de vinho e manchada de sangue

Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão

Bê, rê, a - Bra
Zê, i, lê - zil
Fê, u - fu
Zê, i, lê - zil
Cê, a - ca
Nê, agá, a, o, til - nhão

Ora pro nobis

Comentário de Caetano: "Tropicalia ou Panis et circensis abre com uma composição de Gil e Capinan chamada "Miserere nobis", em cuja letra reconheço o embrião da poética mineira dos anos 70: as referências católicas, as imagens nobres envolvendo um compromisso político mais pressuposto do que explicitado, a dicção solene. Num nível sempre extraordinariamente mais alto do que seus seguidores, Capinam prefigurou toda a lírica "participante" pós-tropicalista [...]". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 

Caetano e Gil.

2 - Coração Materno (Vicente Celestino) 

Disse um campônio a sua amada
Minha idolatrada
Diga o que quer
Por ti vou matar
Vou roubar
Embora tristezas me causes, mulher
Provar quero que te quero
Venero teus olhos, teu porte, teu ser
Mas diga, tua ordem espero
Por ti não importa matar ou morrer!

E ela disse ao campônio a brincar
Se é verdade tua louca paixão
Parte já e pra mim vai buscar
De tua mãe inteiro o coração
E a correr o campônio partiu
Como um raio na estrada sumiu
E sua amada qual louca ficou
A chorar na estrada tombou

Chega à choupana o campônio
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar
Rasga-lhe o peito o demônio
Tombando a velhinha aos pés do altar
Tira do peito sangrando
Da velha mãezinha o pobre coração
E volta a correr proclamando
"Vitória! Vitória! Tem minha paixão!"

Mas em meio da estrada caiu
E na queda uma perna partiu
E à distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra o pobre coração
Nesse instante uma voz ecoou
"Magoou-se pobre filho meu?
Vem buscar-me, filho, aqui estou
Vem buscar-me, que ainda sou teu!"

Comentário de Caetano: "Na concepção do disco Tropicália ou Panis et circensis havia um plano, este sim totalmente tropicalista, de gravar uma velha canção brasileira em tudo e por tudo desprestigiada. Era a supersentimental "Coração materno", um dos maiores sucessos de Vicente Celestino, o melodramático compositor e cantor de voz operística cuja brilhante carreira remontava aos anos 30 e incluía, além de inúmeros discos de sucesso, operetas e filmes, como o recordista de bilheteria O ébrio de 46. "Coração materno" conta a história de um jovem camponês que se vê obrigado a entregar à sua amada, como prova de amor, o coração da própria mãe. O matricídio se dá enquanto a velhinha está ajoelhada diante de um oratório. O jovem, depois de rasgar-lhe o peito e extirpar-lhe o coração, corre para a amada levando-o nas mãos. Na estrada, tropeça e cai, quebrando uma perna. Do coração da mãe, que tinha sido atirado longe, sai uma voz que pergunta: "Magoou-se, pobre filho meu?", e, num último e extremo golpe comovedor, exorta: "Vem buscar-me que ainda sou teu". 
Em 67 Vicente Celestino estava praticamente esquecido e seu estilo - o extremo oposto do que viera dar na bossa nova - era indefensável. A melodia do "Coração materno", como todas as outras de Celestino, era para nossos ouvidos um mero pastiche de ária de ópera italiana. A idéia de gravar essa canção me ocorrera por ela ser um exemplo radical do clima estético acima do qual nós nos julgávamos alçados altamente. Mas essa era uma história que, em vários planos, era mais arcaica do que podia parecer. [...] Para gravar o "Coração materno" não precisei propriamente reaprender a canção, tive apenas que conferir a gravação original para evitar eventuais erros tópicos. E lembrava melhor dela (que era indiscutivelmente a que melhor servia aos próprios tropicalistas) do que de qualquer outra de Celestino" [...].
O arranjo que Rogério Duprat fez para essa canção é uma das maiores vitórias do tropicalismo. Excelente orquestrador, Duprat criou uma atmosfera de ópera séria (sem, no entanto, deixar de lembrar trilhas de filmes de Hollywood), restituindo dignidade e conferindo solenidade à canção execrável, o que fazia ressaltar minha interpretação assustadoramente sincera e sóbria. No que diz respeito a meu canto, ali eu reconheço profundas influências, algumas inconfessadas, que marcam meu estilo e lhe fazem a fama até hoje: notadamente Sílvio Caldas (o anti-Celestino, em sua emissão cheia de "verdade" intensa e despretensiosa) e o radiator Roberto Faissal (aos meus ouvidos, ele tinha aquelas mesmas características de Caldas ainda mais acentuadas, e lembro de declamar, sozinho, aos treze anos, letras inteiras de músicas de que eu gostava - inclusive o Hino Nacional! - imprimindo-lhes o tom de Faissal, sua convincente certeza, o que às vezes me levava às lágrimas; essas declarações serviam de treinamento para, depois, cantas as canções com mais precisão e segurança). O resultado da combinação do arranjo de Duprat - que inicialmente se funde aos tiros de canhão da faixa anterior - e minha "leitura" (Caldas, Faissal etc. me autorizariam o uso da palavra sem as aspas) da letra de Celestino é uma peça que comove porque faz o ouvinte passar, consciente ou inconscientemente, por todas as referências que pude explicitar aqui - e por tantas outras que não pude". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 


3 - Panis et Circencis (Letra: Caetano Veloso, Música: Gilberto Gil)

Eu quis cantar minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Mandei plantar folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas da sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer

Essas pessoas da sala de jantar... (repete)
Essas pessoas na sala...

Lançamento do LP Tropicalia ou Panis et Circensis.

4 - Lindonéia (Letra: Caetano Veloso, Música: Gilberto Gil) 

Na frente do espelho
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda, feia
Lindonéia desaparecida

Despedaçados
Atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
Oh, meu amor
A solidão vai me matar de dor

Lindonéia, cor parda
Fruta na feira
Lindonéia solteira
Lindonéia, domingo
Segunda-feira

Lindonéia desaparecida
Na igreja, no andor
Lindonéia desaparecida
Na preguiça, no progresso
Lindonéia desaparecida
Nas paradas de sucesso
Ah, meu amor
A solidão vai me matar de dor

No avesso do espelho
Mas desaparecida
Ela aparece na fotografia
Do outro lado da vida
Despedaçados, atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando

Oh, meu amor
A solidão vai me matar de dor
Vai me matar
Vai me matar de dor

Comentário de Caetano: "Nara Leão [...] encomendou-nos, a mim e a Gil, uma música que tivesse como tema ou inspiração um quadro do pintor Rubens Gerchman chamado Lindonéia, o qual representava, em traços distorcidos com dolorosa pureza, o que parecia ser a ampliação de um retrato três-por-quatro de uma moça pobre que - dizia o texto-título - fora dada por perdida, emoldurada, à maneira kitsch dos retratos de sala de visitas suburbanas, por vidro espelhado com decoração floral. Gil fez a música - um bolero entrecortado de iê-iê-iê - e eu fiz a letra da canção, que manteve o nome "Lindonéia" e a história da suburbana desaparecida." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 

Caetano e A Bela Lindonéia (a Gioconda do Subúrbio) de Rubens Gerchman, 1966. 

5 - Parque Industrial (Tom Zé)

Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.

Tem garotas-propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz,
Basta olhar na parede,
Minha alegria
Num instante se refaz

Pois temos o sorriso engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar
E usar,
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.

Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.

A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular que
Nunca se espreme
Porque pode derramar.

É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado,
É somente folhear e usar,
É somente folhear e usar.

Tom Zé.

6 - Geléia Geral (Letra: Torquato Neto, Música: Gilberto Gil

Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o Jornal do Brasil anuncia

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz "bom dia"
E outra moça também, Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

Comentário de Caetano: "[...] foi Torquato quem escreveu, também sobre uma música de Gil, a letra que para muitos se tornou, mais do que a própria "Tropicália", da qual ela tirava a sugestão, a letra-manifesto do movimento: "Geléia geral". Começando com uma referência direta à figura do poeta ("e o poeta desfolha a bandeira"), inventariando signos do trópico ("bananas ao vento", "calor girassol") e da vida brasileira (o Jornal do Brasil, Miss Brasil, a "Carolina" de Chico Buarque), citando Oswald de Andrade literalmente ("a alegria é a prova dos nove"), popularizando a expressão "geléia geral" (cunhada, como já contei, por Décio Pignatari no texto que tanto me impressionara num número da revista Invenção), pondo lado a lado o folclore tradicional brasileiro e o folclore urbano internacional ("ê bumba iê-iê boi, ê bumba iê-iê-iê), "Geléia geral" apresentava a versão de Torquato do tropicalismo. Ela pode ter servido para alguns como uma espécie de "Tropicália" facilitada, mas, sublinhada pela melodia vivaz de Gil, trazia a leveza do lirismo de Torquato, a fluência de seus versos e de suas imagens, a melancolia fingidamente escondida - além, é claro, da para mim muito importante afirmação da dimensão poética do movimento, aqui inscrita na atitude que precede a decisão de escrever os versos singelos e não, como no caso de Capinan, no esforço de adensamento da poeticidade dos próprios versos". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997). 

Torquato Neto e Gilberto Gil.

7 - Baby (Caetano Veloso)

Você precisa saber da piscina
Da margarina
Da Carolina
Da gasolina
Você precisa saber de mim

Baby baby
Eu sei que é assim

Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete
Andar com a gente
Me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto

Baby baby
Há quanto tempo

Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais

Não sei, comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul
Da América do Sul

Você precisa
Você precisa
Não sei
Leia na minha camisa

Baby baby
I love you

Comentário do autor: "Foi a primeira música a usar a expressão baby. Além disso, trazia uma frase em inglês, um tipo de coisa que começou a ser feita mais adiante. Houve momentos em que me arrependi desses artifícios, mas noutras ocasiões me senti orgulhoso de, naquela fase, ter sido meio pioneiro. Depois, quando chegamos ao ápice disso tudo, a ponto de um grupo como o Sepultura compor e cantar em inglês, achei maravilhoso, acabou-se qualquer problema." (Caetano Veloso, Verdade Tropical - Companhia das Letras, 1997). 

Gal Costa.

8 - Três Caravelas (A. Algueró Jr., G. Moreu; Versão de João de Barro)

Un navegante atrevido
Salió de Palos un día
Iba con tres carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María

Hacia la tierra cubana
Con toda sua valentía
Fue con las tres carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María

Muita coisa sucedeu
Daquele tempo pra cá
O Brasil aconteceu
É o maior
Que que há?!

Um navegante atrevido
Saiu de Palos um dia
Vinha com três caravelas
A Pinta, a Nina e a Santa Maria

Em terras americanas
Saltou feliz certo dia
Vinha com três caravelas
A Pinta, a Nina e a Santa Maria

Mira, tu, que cosas pasan
Que algunos años después
En esta tierra cubana
Yo encontré a mí querer

Viva el señor don Cristóbal
Que viva la patria mía
Vivan las tres carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María

Viva Cristóvão Colombo
Que para nossa alegria
Veio com três caravelas
A Pinta, a Nina e a Santa Maria
(La Pinta, la Niña y la Santa María)

Caetano, Gil e Os Mutantes.

9 - Enquanto Seu Lobo Não Vem (Caetano Veloso)

Vamos passear na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto

(Os clarins da banda militar…)
A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar…)
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)

Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear escondidos
Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Vamos por debaixo das ruas

(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das bombas, das bandeiras
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das botas
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das rosas, dos jardins
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da lama
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da cama

Comentário do autor: "Uma música muito política, do período tropicalista. É uma incitação às passeatas de protesto - "vamos passear, vamos passear na avenida" - e o verso "há uma cordilheira sob o asfalto" sugere a guerrilha, por causa de Sierra Maestra e de Che Guevara ter saído para a Bolívia. Presidente Vargas é invocado aos brados! Apesar do forte conteúdo político, os censores deixaram-na passar, porque não entenderam nada. No arranjo, Rogério Duprat colocou a primeira frase do hino da Internacional Comunista, e ainda há um coro que repete "os clarins da banda militar", que vem de "Dora", a canção de Dorival Caymmi, que aqui remete à presença dos militares. Tudo isso junto explicitava ainda mais o conteúdo político da canção, mas ninguém entendeu muito bem, e quem entendeu fingiu que não."  (Caetano Veloso. Sobre as letras. Companhia das Letras, 2003). 

Caetano veste o Parangolé.

10 - Mamãe Coragem (Letra: Torquato Neto, Música: Caetano Veloso)

Mamãe, mamãe não chore
A vida é assim mesmo, eu fui embora
Mamãe, mamãe não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí

Mamãe, mamãe não chore
A vida é assim mesmo, eu quero mesmo é isto aqui.
Mamãe, mamãe não chore
Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Veja as contas do mercado, pague as prestações

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos
Seja feliz, seja feliz

Mamãe, mamãe não chore
Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz
Mamãe, seja feliz

Mamãe, mamãe não chore
Não chore nunca mais, não adianta
Eu tenho um beijo preso na garganta
Eu tenho um jeito de quem não se espanta
Braço de ouro vale 10 milhões
Eu tenho corações fora do peito
Mamãe, mamãe não chore, não tem jeito

Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Leia ''Elvira, a morta virgem'', ''O Grande Industrial''
Eu por aqui, vou indo muito bem
De vez em quando brinco Carnaval
E vou vivendo assim:
Felicidade na cidade que eu plantei pra mim
E que não tem mais fim, não tem mais fim
Não tem mais fim

Caetano e Torquato.

11 - Batmacumba (Gilberto Gil, Caetano Veloso) 

Batmakumbayêyê batmakumbaoba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê bamakumba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbaoba

Comentário de Gilberto Gil: "O Caetano e eu sentados no chão do apartamento dele, na Avenida São Luís, centro de São Paulo, compondo a música: o que a gente queria, hoje me parece, era fazer uma canção com um dístico que fosse despida de ornamentos e possível de ser cantada por um bando não musical, algo tribal, e que, por isso mesmo, estivesse ligada a um signo da nossa cultura popular como a macumba, essa palavra nacional para significar todas as religiões africanas, não cristãs, e que é um termo que Oswald de Andrade usou [...] Pode ser que para o Caetano essas palavras tenham sido percebidas ou colocadas conscientemente ali, mas eu não descobri a presença delas na época, pelo menos; são extrações posteriores. Para mim não havia, por exemplo, o 'obá' entidade, só o 'obá' saudação, interjeição. A palavra bat, morcego, sim". (Gilberto Gil. Todas as letras. Companhia das Letras, 1996). 

Caetano e Gil na boate Sucata.

12 - Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia (João Antônio Wanderley)

Glória a ti neste dia de glória
Glória a ti redentor que há cem anos
Nossos pais conduziste à vitória
Pelos mares e campos baianos

Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Glória a ti nessa altura sagrada
És o eterno farol, és o guia
És, senhor, sentinela avançada
És a guarda imortal da Bahia

Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Aos teus pés que nos deste o direito
Aos teus pés que nos deste a verdade
Trata e exulta num férvido preito
A alma em festa da tua cidade

Desta sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes em 1968.

Ficha Técnica

Arranjos: Rogério Duprat
Produção: Manuel Barembein
Técnico de gravação: Estélio
Estúdio: RGE, SP.
Período de gravação: Maio de 1968.

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