"Caetano Veloso" nomeia o segundo disco solo do cantor. Em dezembro de 1968, Caetano e Gilberto Gil foram presos pela ditadura militar sob falsas acusações de desrespeito aos símbolos nacionais num show ocorrido na Boate Sucata, no Rio. Após 54 dias de cárcere, foram soltos na quarta-feira de cinzas em fevereiro de 1969 ("Atrás do Trio Elétrico", presente no disco e lançada em compacto em dezembro de 68 foi o grande sucesso do carnaval) sob a ordem de ficarem confinados na cidade de Salvador, sem nenhum tipo de aparição pública, tendo que se apresentar diariamente às autoridades. As bases da voz de Caetano e o violão de Gil foram gravadas em casa, e posteriormente enviadas para São Paulo, para receberem os arranjos de Rogério Duprat. Aqui, Caetano canta um tango, um fado, uma música de carnaval, duas poesias concretas e um samba de roda, além de outras duas em inglês. "Carolina" e e "Chuvas de Verão" já aqui remetem a características marcantes na obra do artista, que é o de cantor intérprete e devoto às raízes bossanovísticas, respectivamente. "Irene" foi a única canção composta na prisão. O Lado 1 possui alegorias náuticas em "The Empty Boat", "Os Argonautas" e no samba de roda (acompanhado da guitarra de Lanny Gordin) "Marinheiro Só", prevendo a progressiva sensação de afastamento das coisas do Brasil. No Lado 2, a estética tropicalista permanece em "Acrilírico" e "Alfômega". A capa do disco, ao contrário das imagens de cores vivas dos álbuns anteriores do tropicalismo, traduz a angústia do momento: vem toda branca, como a dos Beatles lançada no ano anterior, trazendo apenas a assinatura de Caetano. Quando o disco fosse lançado, em agosto daquele ano, Caetano Veloso e Gilberto Gil já teriam sido expulsos do país.
Assim disse Caetano na contracapa do disco: "Êste disco foi gravado na cidade de Salvador, Bahia, em junho de 1969. É um trabalho dedicado a José Veloso, Hercília e Roberto Pinho".
Caetano: "A prisão domiciliar pode dar a impressão de que a gente não podia sair de cassa, mas na verdade a gente só não podia sair da cidade de Salvador. Os militares tinham o termo técnico pra isso: confinamento. Prisão foi o que nós tivemos antes, quando passamos dois meses na cadeia. Os quatro meses em Salvador foram chamados de confinamento, e eu não podia ir nem a Santo Amaro. Eu acho que o próprio Rogério Duprat estimulava a gente a fazer, Gil tinha composto Aquele Abraço e eu tinha feito Irene. Gil tinha violão na prisão, e eu não tinha. Eu fiz sem tocar, e quem harmonizou Irene pra tocar no rádio foi o Gil. Ele ficava estimulando a gente e eu continuei compondo, e eles ficaram falando pra gente fazer o disco. Eu acabei fazendo, mas não tenho uma lembrança muito clara como um projeto meu. Fiz as canções que eu tinha na época, e também com as quais eu queria gravar – como Carolina, por exemplo – que eu vira na TV em Salvador, uma menina cantando num programa de auditório. Era o cúmulo da tristeza, por isso gravei com o sotaque baiano... embora Gil tenha dado uma suingada no violão. Se eu tivesse gravado com meu violão, teria ficado realmente triste. A gente não podia vir gravar no Rio, e lá em Salvador existia um estúdio de 2 canais. Eu ainda não podia tocar violão nos meus discos, porque eu toco mal, e era preciso tocar de uma maneira que fosse como um violonista mais profissional. Então Gil, que sempre tocou muito bem, acabou fazendo o violão. Eu fiz as bases de voz e violão com ele, em 2 canais em Salvador, e mandamos pro Rogério Duprat finalizar. O produtor Manoel Berenbein, um sujeito maravilhoso, era muito carinhoso com a gente – embora viesse a trabalhar pela gravadora naquela época. O esquema era bem diferente, eu me lembro que a gente não via a mixagem, ao artista não era permitido assistir a mixagem e muito menos a masterização. Ia tudo ‘pro laboratório’ e a masterização era chamada de ‘corte’, e isso ninguém via... nem o produtor! Mas foi bacana...” (Caetano Veloso. Via Blog Tarati Taraguá, s/d).
“Na Bahia compus muito pouco. Quatro músicas. Estava cansado, sem vontade para nada. Sei lá. Argonauta é um fato novo. Empty Boat, com letra em inglês, uma triste, que eu não sei explicar direito. Estou partindo para as letras em inglês por várias razões. Em primeiro, atualmente é a língua internacional. Outra: é a única língua em que poderia escrever, além do português. Outra: porque me sentia sufocado, queria me descontrair de certos problemas, como o nacionalismo de superfície. Além de tudo, estava cansado de escrever em português." (Caetano Veloso para o jornal Última Hora, 1969).
"A prisão domiciliar pode dar a impressão de que a gente não podia sair de casa, mas na verdade a gente só não podia sair da cidade de Salvador. Os militares tinham o termo técnico pra isso: confinamento. Prisão foi o que nós tivemos antes, quando passamos dois meses na cadeia. Os quatro meses em Salvador foram chamados de confinamento, e eu não podia ir nem a Santo Amaro. Eu acho que o próprío Rogério Duprat estimulava a gente a fazer, Gil tinha composto Aquele Abraço e eu tinha feito Irene. Gil tinha violão na prisão, e eu não tinha. Eu fiz sem tocar, e quem harmonizou Irene pra tocar foi o Gil. Ele ficava estimulando a gente e eu continuei compondo, e eles ficaram falando pra gente fazer disco. Eu acabei fazendo, mas não tenho uma lembrança muito clara como um projeto meu. Fiz com as canções que eu tinha na época, e também com as quais eu queria gravar – como Carolina, por exemplo – que eu vira na TV em Salvador, uma menina cantando num programa de auditório. Era o cúmulo da tristeza, por isso gravei com o sotaque baiano... embora Gil tenha dado uma suingada no violão. Se eu tivesse gravado com meu violão, teria ficado realmente triste. A gente não podia vir gravar no Rio, e lá em Salvador existia um estúdio de 2 canais. Eu ainda não podia tocar violão nos meus discos, porque eu toco mal, e era preciso tocar de uma maneira fosse como um violonista mais profissional. Então Gil, que sempre tocou muito bem, acabou fazendo o violão. Eu fiz as bases de voz e violão com ele, em 2 canais em Salvador, e mandamos pro Rogério Duprat finalizar. O produtor Manoel Barenbein, um sujeito maravilhoso, era muito carinhoso com a gente – embora viesse a trabalhar pela gravadora naquela época. O esquema era bem diferente, eu me lembro que a gente não via mixagem, ao artista não era permitido assistir a mixagem e muito menos a masterização. Ia tudo ʻ'pro laboratório' e a masterização era chamada de 'corte', e isso ninguém via... nem o produtor! Mas foi bacana..." (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).
"Gravei só com Gilberto Gil ao violão, quando estava confinado, sem poder sair de Salvador. Até ir para o exílio em Londres, era impensável eu tocar violão num LP. Todo mundo achava meu violão abaixo do nível profissional. É um disco da minha situação na prisão. Tem Irene, que fiz na cadeia, sem violão, uma coisa portuguesa, que adoro. Gosto muito de sermos portugueses. Adorei a canção Portuga, do último disco de Cazuza. Tem Os Argonautas, que me foi sugerida por Bethânia. Tem Carolina, que é muito deprimida e tinha a ver com o disco. Fiz o disco confinado, gravamos eu e Gil lá em casa, num gravador de quatro canais. Tem Atrás do Trio Elétrico, que é histórica. É o momento inaugural de toda a fase nova da música baiana. Tenho orgulho. Desencadeou o incremento dos trios elétricos. Fez Dodô e Osmar voltarem às ruas. A complementação dela veio com o Gil, na música Filhos de Gandhi. Foi o estopim para a onda de novos blocos. Resultou em tudo isso, na música da Bahia." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).
"Gil e eu fizemos, cada um de nós, um disco nesse meio tempo. Como não podíamos ir ao Rio ou a São Paulo, fizemos as gravações num estúdio pequeno de Salvador (acho que se chamava Estúdio J.S.), apenas com o violão. As fitas foram enviadas para São Paulo ou Rio para que Rogério Duprat adicionasse baixo, bateria e orquestra. Gil tocou violão em todas as faixas do meu disco. Não havia proibição de radiodifusão de nossas músicas. A atitude do poder repressivo brasileiro era algo errática, mas não o suficiente para torná-lo ineficaz." (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).
"Esse disco - de capa branca e com
a minha assinatura no meio - foi feito quando eu já estava preso. Não estava
mais na cadeia, mas confinado em Salvador, praticamente preso na cidade, porque
dela não podia sair, tinha que me apresentar todos os dias ao coronel Luiz
Artur e assinar em um caderno. Isso durou quatro meses, até que nos mandaram
para Londres. Boa parte das canções desse disco, Irene inclusive, foi composta
na prisão. Salvador só tinha um estudiozinho de dois canais, o JS. Fiz o disco
sozinho, com o Gil tocando violão. Em nenhum dos discos de que já falei eu toco
violão, o que só vem a acontecer no disco feito em Londres, porque nessa época
o meu violão era considerado abaixo do nível profissional. Só que lá aconteceu
exatamente o contrário, os produtores acharam que eu tocava muito bem. Mandamos
a fita para São Paulo e o Rogério completou o trabalho, com o Leny tocando
guitarra. Quando esse long-play saiu, eu já estava em Londres. Fiquei sabendo
que a gravação que fiz de Carolina, de Chico Buarque, rendeu muita discussão.
Dei uma interpretação dolorida e Carolina ficou como uma personagem ingênua,
com sotaque baiano - eu me inspirei em uma caloura que vi cantando em um
programa de televisão em Salvador. E aí falaram que era um desrespeito ao Chico.
Não era nem uma das músicas preferidas do Chico, mas nem a escolhi como se
estivesse escolhendo uma canção do Chico para cantar a sério, entre as melhores
dele. Eu a vi também em um disco que Agnaldo Rayol gravou em homenagem ao
presidente Costa e Silva, As favoritas do presidente, entendeu? A cantei porque
representava uma expressão de outras coisas que nós, tropicalistas, gostávamos.
Nossa vertente era oposta à vertente oficial da MPB - e o Chico era o rei total
da MPB de boa qualidade. A interpretação dessa canção para mim, na verdade, era
o fundo da tristeza brasileira. Então, pensei: "Tenho que reproduzir isso
num disco." Mas eu soube, que o próprio Chico não gostou e disse isso no
jornal O Pasquim." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).
Lista de Músicas
Lado 1
1 - Irene
(Caetano Veloso)
2 - Empty boat
(Caetano Veloso)
3 - Marinheiro só
(Caetano Veloso)
4 - Lost in the paradise
(Caetano Veloso)
5 - Atrás Do Trio Elétrico
(Caetano Veloso)
6 - Os argonautas
(Caetano Veloso)
Lado 2
1 - Carolina
(Chico Buarque)
2 - Cambalache
(E. S. Discépolo)
3 - Não identificado
(Caetano Veloso)
4 - Chuvas de Verão
(Fernando Lobo)
5 - Acrilírico
(Caetano Veloso, Rogério Duprat)
6 - Alfômega
(Gilberto Gil)
Vamos às Letras.
1 - Irene (Caetano Veloso)
Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui
Eu não tenho nada, quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada
Irene ri, Irene ri, Irene
Irene ri, Irene ri, Irene
Quero ver Irene dar sua risada
Comentário do autor: "Irene tinha catorze anos então e estava se tornando tão bonita que eu por vezes
mencionava Ava Gardner para comentar a sua beleza. Mais adorável ainda do que
sua beleza era sua alegria, sempre muito carnal e terrena, a toda hora explodindo
em gargalhadas sinceras e espontâneas. Mesmo sem violão, inventei uma cantiga,
evocando-a, que passei a repetir como regra: “Eu quero ir minha gente/ Eu não sou
daqui/ Eu não tenho nada/ Quero ver Irene dar sua risada/ Irene ri, Irene ri, Irene”.
Foi a única canção que compus na cadeia. Eu não pensava em torná-la pública: pensava tratar-se de algo inconsciente e incomunicável. Para minha surpresa, Gil achou-a linda e, uma vez gravada, não só ela fez sucesso de público como Augusto de Campos publicou uma versão visualmente tratada de modo a enfatizar o (para mim surpreendente) caráter palindrômico do refrão: com efeito, a frase "Irene ri" pode ser lida nos dois sentidos". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).
"A música Irene eu acho linda. É uma música completamente descompromissada com toda essa coisa, uma música de certa forma mais ligada ao tradicional e parecida, de certa forma, com o clima de Carolina." (Caetano Veloso para O Pasquim, 1969).
Caetano e Irene em 1974 (Acervo da Família).
2 - Empty boat (Caetano Veloso)
From the stern to the bow
Oh! my boat is empty
Yes, my heart is empty
From the who to the how
From the rudder to the sail
Oh! my boat is empty
Yes, my hand is empty
From the wrist to the nail
From the ocean to the bay
Oh! the sand is clean
Oh! my mind is clean
From the night to the day
From the stern to the bow
Oh! my boat is empty
Oh! my head is empty
From the nape to the brow
From the east to the west
Oh! the stream is long
Yes, my dream is wrong
From the birth to the death
Comentário do autor: "Agora me lembro. "Cinema Olímpia" não foi a única canção inédita que cantei no show de despedida no Teatro Castro Alves. Também cantei "Empty boat", que gravara pouco antes no disco feito em Salvador. Essa foi a outra canção que escrevi em inglês antes de ir - e de saber que iria - para Londres. É uma canção muito sincera. Mais sincera do que a outra [Lost in the Paradise]. Não que seja boa. Mas eu ali estava dizendo ao mundo que eu estava vazio. E era exatamente o que sentia. E, o que é mais importante, a melodia e o som das palavras reproduzem exatamente como eu o sentia, recriam o clima em que me encontrava então: "From the stern to the bow/ O, my boat is empty/ O, my mind is empty/ From the who to the how"". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).
Caetano no estúdio em Salvador, 1969.
3 - Marinheiro só (Domínio público, arranjo de Caetano Veloso)
Eu não sou daqui
Marinheiro só
Eu não tenho amor
Marinheiro só
Eu sou da Bahia
Marinheiro só
De são salvador
Marinheiro só
Ô, marinheiro marinheiro
Marinheiro só
Ô, quem te ensinou a nadar
Marinheiro só
Ou foi o tombo do navio
Marinheiro só
Ou foi o balanço do mar
Marinheiro só
Lá vem, lá vem
Marinheiro só
Como ele vem faceiro
Marinheiro só
Vem todo de branco
Marinheiro só
Com o seu bonezinho
Marinheiro só
Comentário de Caetano: "'Marinheiro só' é folclore, domínio público. Acho que saiu em algum disco como de minha autoria. Há a tradição de dar autoria automática a quem “adapta” a obra (vem da música clássica). Mas, em casos como esse, sou contra. Miles Davis botou 'Prenda minha' como sendo de sua autoria. Pode pôr em qualquer lugar que 'Marinheiro só' não é minha. Não é não."
À época, houve uma polêmica em torno desta música, pois Caetano foi acusado por um compositor pernambucano de plagiar a sua canção "Marinheiro, marinheiro" de 1956. Para o O Globo, em 1971, Caetano disse: "Só mesmo rindo, quando se ouve uma história dessas que você está me contando. Nunca disse a ninguém, e muito menos fiz estampar no rótulo do disco que a música "Marinheiro Só" era da minha autoria. É um samba folclórico muito antigo que minha mãe conhecia e me cantou e que eu gostei muito, fazendo dele um arranjo. É a primeira vez que ouço falar; através de vocês dessa acusação ridícula, e repito: não afirmei nunca e muito menos mandei botar no disco que seria eu o autor do samba antigo da Bahia "Marinheiro só". Veja o disco e poderá ler: arranjo de Caetano Veloso".
Caetano na passeata dos cem mil, no Rio, em junho de 68 (Acervo O Globo).
4 - Lost in the paradise (Caetano Veloso)
My little grasshopper airplane
Cannot fly very high
I find you so far from my sight
I'm lost in my old green light
Don't help me, my love
My brother, my girl
Just tell me your name
Just let me say who am I
A big white plastic finger
Surrounds my dark green hair
But it's not your unknown caress
It's not from your unknown right hand
Oh, don't help me, my love
My brother, my girl
Just tell me your name
Just let me say who am I
I am the sun, the darkness
My name is green wave
Death, salt, South America is my name
World is my name, my size
And under my name here am I
My litlle grasshopper, airplane
Cannot fly very hight
Don't help me, my love
My brother, my girl
Just tell me your name
Just let me say who am I
Comentário do autor: "[...] sabia que o Brasil precisava (precisa) abrir diálogos mundiais francos, livrar-se de tudo o que o tem mantido fechado em si mesmo como um escravo desconfiado. Assim, a canção que escrevi então, era um grito de socorro às avessas: eu me dirigia a alguns interlocutores imaginários no mundo lá fora e, descrevendo minha pobreza e minha solidão de brasileiro, pedia que não me ajudassem, apenas me dissessem seus nomes e me deixassem dizer quem era eu. A canção chamava-se "Lost in the Paradise" [...]". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).
Caetano e Gil pouco antes do embarque para o exílio (Acervo O Globo).
5 - Atrás Do Trio Elétrico (Caetano Veloso)
Atrás do trio elétrico
Só não vai quem já morreu
Quem já botou pra rachar
Aprendeu, que é do outro lado
Do lado de lá do lado
Que é lá do lado de lá
O sol é seu
O som é meu
Quero morrer
Quero morrer já
O som é seu
O sol é meu
Quero viver
Quero viver lá
Nem quero saber se o diabo
Nasceu, foi na Bahi ...
Foi na Bahia
O trio elétrico
O sol rompeu
No meio-dia
No meio-dia
Comentário do autor: “Eu esqueci Atrás do Trio Elétrico, em 1968. Fiz a música, a Dedé já estava dormindo, fui lá, acordei, cantei para ela e dormi. Quando acordei, no dia seguinte, não me lembrava mais, mas aí ela lembrou”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).
"Quando eu era menino em Santo Amaro, um ou outro vinha de Salvador e, embora destoassem dos "ternos" tradicionais compostos de instrumentos de sopro e percussão (os Amantes da Moda e Amantes da Folia que, com suas roupas de cetim colorido e lantejoulas, executavam marchas cariocas) e das "batucadas" (blocos de samba exclusivamente de percussão que eram mais admirados do que seguidos), os trios elétricos nos encantavam. Pelo fim dos anos 60, as marchas (e mesmos os sambas) de Carnaval cariocas estavam desaparecendo, os bons compositores que surgiram com a (e depois da) bossa nova não encontrando o jeito de se adequar ao Carnaval. Houve várias tentativas de ressuscitar o gênero, todas abortadas. Há uma foto, tirada em 66, em que Chico Buarque, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Torquato Neto, Gil, Capinan, eu próprio e tantos outros de minha geração aparecemos ao lado de Tom Jobim, Braguinha (o grande compositor João de Barro, então setuagenário) e velhos cantores da Rádio Nacional, num encontro promovido por não sei quem para reerguer a canção carnavalesca. Mas dali não saiu nenhum samba ou marcha memorável. O meu "Atrás do trio elétrico" quebrou o tabu. Composto em 68, esse quase-frevo foi um sucesso nas ruas de Salvador no Carnaval de 69 - e ficou conhecido no Brasil inteiro. Eu, no entanto, não tive a alegria de presenciar esse milagre: estava na cadeia. E nos dois outros Carnavais subsequentes, no exílio, de onde mandei frevos novos que também tiveram êxito". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).
"Eu adoro axé music, essa música de Carnaval da Bahia. Acho das coisas mais interessantes que aconteceram no Brasil. A música de Carnaval do Rio de Janeiro, as grandes marchinhas e os sambas de Carnaval desapareceram. Há os sambas-enredo das escolas, um ou outro se destaca fora do desfile, mas é uma coisa específica daquele espetáculo. E a Bahia, justamente a partir dos anos 60, começou. Eu me sinto muito presente nesse acontecimento do qual me orgulho enormemente. Porque foi a canção Atrás do Trio Elétrico (1968) que deu coragem, força e animação para que isso se desenvolvesse e depois outras coisas com as quais eu estive direta ou indiretamente ligado. Fico lembrando que aquelas músicas - Ala-la-ô, Se a Canoa Não Virar e Jardineira -, todas as músicas de Carnaval do Rio de Janeiro, as marchinhas e os sambas, que eram uma coisa maravilhosa, têm hoje na Bahia uma renascimento com outras características." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 1998).
6 - Os argonautas (Caetano Veloso)
O barco, meu coração não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
O barco, noite no céu tão bonito
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco, da madrugada
O porto, nada
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
O barco, o automóvel brilhante
O trilho solto, o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, barulho lento
O porto, silêncio
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Viver...
Comentário do autor: "Tem uma música que Bethânia me pediu para fazer em 1968, com as frases "Navegar é Preciso/ Viver não é Preciso", que ela tinha encontrado num texto de Fernando Pessoa. A frase remonta à Grécia Antiga... O Fernando Pessoa atribui aos argonautas e eu botei o título "Os Argonautas" por causa de Fernando Pessoa. Eu fiz para ela, ela gravou e a canção tem um pouco de fado e uma frase de "Ai, Mouraria", uma citação ao fado "Ai, Mouraria". [Começa a cantar]: "Navegar é preciso, Viver não é preciso." Esse é bem direto, mas há muitas coisas [na minha obra] indiretamente ligadas a Portugal." (Caetano Veloso, depoimento citado em postagem na rede social de Maria Bethânia, 2023).
Nota: "Navegar é preciso, viver não é preciso": a frase original, em latim, é de Pompeu (106 - 48 a. C.), general romano: "Navigare necesse; vivere non est necesse", proferida aos tripulantes da embarcação militar que estavam a caminho de abafar a revolta de Spartacus durante a Roma Antiga. A frase virou lema entre os navegantes. Os argonautas eram os tripulantes de Argo que, na mitologia grega, foi a embarcação construída com a ajuda da deusa Athena para que Jasão e os argonautas navegassem de Iolcos até Cólquida para recuperar o Velocino de Ouro.
Foto da ficha de Caetano, após ter seus cabelos raspados pelos militares.
7 - Carolina (Chico Buarque)
Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar
Seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
E só Carolina não viu
Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra agradar
Agora não sei como explicar
Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
E só Carolina não viu
Comentário de Caetano: "[...] tanto Roberto Carlos em pessoa quanto a Carolina, de Chico Buarque, se tornaram personagens de canções tropicalistas. Não foram os únicos (Carmen Miranda, Paulinho da Viola, Noel Rosa me vêm à lembrança sem esforço, mas há muitos que foram referidos de modo cifrado ou foram objeto de imitação ou caricatura), mas o caso da Carolina merece talvez atenção especial. A Carolina apareceu na letra da canção "Baby" entre "gasolina" e "margarina", na canção "Marginália II" (música de Gil com letra de Torquato Neto) junto a uma "miss", e, finalmente, foi gravada por mim numa versão que fazia da própria canção uma personagem que, passando pelas dependências oficiais da presidência militarizada da República (afinal, a canção tinha sido gravada por Agnaldo Rayol como uma das "favoritas do presidente" Costa e Silva), veio cair num programa de calouros mirins da televisão baiana no meu período de confinamento em Salvador, depois da cadeia, tornando-se assim a representante da depressão nacional - e da minha depressão pessoal - pós-AI-5". (Caetano Veloso. "Diferentemente dos americanos do Norte”. O mundo não é chato. Companhia das Letras, 2005).
"Claro que havia uma agressividade necessária contra o culto unânime a Chico em nossas atitudes. Quando gravei, em 69, a "Carolina" num tom estranhável, eu claramente queria, entre outras coisas, relativizar a obra de Chico (embora não fosse essa, ali, a principal motivação". (Caetano Veloso. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).
"É uma das poucas boas gravações que eu já fiz (só gosto dela, de "Coração Vagabundo" e de mais uma ou duas). Uma "Carolina" bem emocional. Também foi na época que eu fiquei confinado na Bahia e via sempre na televisão a música em todos os programas de calouros. Ela virou uma espécie de subtexto lírico nacional e eu sei que o Chico nem ligava muito para ela. Cantando daquela maneira eu senti que estava modificando isso, descarregando um pouco minha irritação". (Caetano Veloso para o Jornal Opinião, 1972).
Caetano é fotografado durante seu confinamento em Salvador, 1969.
8 - Cambalache (E. S. Discépolo)
Que el mundo fue y será una porquería, ya lo sé...
En el quinientos diez, y en el dos mil también
Que siempre ha habido chorros
maquiavelos y estafaos
contentos y amargaos, valores y doblés
Pero que el siglo veinte, es un despliegue
de maldad insolente, ya no hay quien lo niegue
Vivimos revolcaos en un merengue
y en el mismo lodo, todos manoseaos
Hoy resulta que es lo mismo, ser derecho que traidor
Ignorante, sabio, chorro, pretensioso estafador
Todo es igual... Nada es mejor
Lo mismo un burro, que un gran profesor
No hay aplazaos, ni escalafón
los inmorales nos han igualao
Si uno vive en la impostura
y otro afana en su ambición
da lo mismo que sea cura
colchonero, rey de bastos
caradura o polizón
Que falta de respeto, que atropello a la razón
cualquiera es un señor, cualquiera es un ladrón
Mezclao con Toscanini, Ringo Starr y Napoleón
Don Bosco y La Mignon, John Lennon y San Martin
Igual que en la vidriera irrespetuosa
de los cambalaches, se ha mezclao la vida
y herida por un sable sin remaches
ves llorar la Biblia, junto un calefon
Siglo veinte, cambalache, problemático y febril
El que no llora, no mama, y el que no afana es un gil
Dale nomás Dale que va
Que allá en el horno se vamo a encontrar
No pienses más, hacete a un lao
Que a nadie importa si naciste honrao
Si es lo mismo el que labura
noche y dia, como un buey
que el que vive de las minas
que el que mata, que el que cura
o esta fuera de la ley
Em "Cambalache", Caetano modificou a letra original para incluir os nomes de Ringo Starr e John Lennon.
9 - Não identificado (Caetano Veloso)
Eu vou fazer
Uma canção
Pra ela
Uma canção singela
Brasileira
Para lançar depois do carnaval
Eu vou fazer
Um iê-iê-iê romântico
Um anti-computador sentimental
Eu vou fazer
Uma canção de amor
Para gravar num disco voador
Eu vou fazer
Uma canção de amor
Para gravar num disco voador
Uma canção
Dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho
Apaixonado
Para lançar
no espaço sideral
Minha paixão
Há de brilhar na noite
No céu de uma cidade
Do interior
Como um objeto não identificado
Como um objeto não identificado
Que ainda estou sozinho
E apaixonado
Como um objeto não identificado
Comentário do autor: "É sobre Santo Amaro, ou melhor, sobre a lembrança de um amor imenso que tive por uma menina de lá. Alguém que me contou que era, das minhas músicas, a que meu pai mais gostava. Ele nunca me disse isso, mas acredito". (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
Caetano em 1969 (Acervo IMS).
10 - Chuvas de Verão (Fernando Lobo)
Podemos ser amigos simplesmente
Coisas do amor nunca mais
Amores do passado, no presente
Repetem velhos temas tão banais
Ressentimentos passam com o vento
São coisas de momento
São chuvas de verão
Trazer uma aflição dentro do peito
É dar vida a um defeito
Que se extingue com a razão
Estranha no meu peito
Estranha na minha alma
Agora eu tenho calma
Não te desejo mais
Podemos ser
Amigos simplesmente
Amigos, simplesmente
E nada mais
Podemos ser
Amigos simplesmente
Amigos, simplesmente
Nada mais
Trazer uma aflição dentro do peito
É dar vida a um defeito
Que se extingue com a razão
Estranha no meu peito
Estranha na minha alma
Agora eu tenho calma
Não te desejo mais
Caetano, Gal e Gil em 1969.
11 - Acrilírico (Caetano Veloso, Rogério Duprat)
Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz
Teu sorriso quieto no meu canto
Ainda canto o ido o tido o dito
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade
Diluído na grandicidade
Idade de pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo
Quero canto de vinda
Divindade do duro totem futuro total
Tal qual quero canto
Por enquanto apenas mino o campo ver-te
Acre e lírico o sorvete
Acrilíco Santo Amargo da Putrificação
Comentário do autor: "É um caso raro de texto que escrevi sem ser para letra de música. Também não sabia se era prosa ou poesia. O meu interesse era pelas palavras inventadas, pela mistura que eu podia fazer com elas, conforme eu tinha visto na revista dos poetas concretos, sobretudo na “Invenção”, que Augusto de Campos me deu de presente. Eu achei aquilo tudo muito próximo do que me interessava, e escrevi o “Acrilírico”. O acrílico era um material muito novo, tinha justo aparecido, e como o texto tem várias reminiscências, a palavra acrilírico dava uma espécie de nó no tempo. Eu tinha acabado de sair da prisão e estava confinado na Bahia quando gravei a canção. Durante a gravação, o Rogério Duarte insistiu comigo para que eu mudasse o verso final: “Acrílico Santo Amargo da Putrificação”. Ele fez uma campanha danada para eu não colocar “putrificação”, dando àquilo um caráter meio religioso mas também com argumentos muito bem pensados, que acabaram me impressionando, e que não eram diretamente religiosos. Ele dizia assim: “É o nome da santa padroeira da sua cidade, isso é uma carga muito pesada, as pessoas da sua família, seu pai, sua mãe, vão ouvir...”. Eu nunca me preocupava muito com as pessoas da minha família porque eles não se melindravam com nada, mas a argumentação do Rogério era forte, no geral, e sugeria um quadro capaz de desencadear forças negativas. Bem, era 69.
Algum tempo depois, Augusto de Campos me pediu permissão para se referir ao verso, porque ele se lembrava do uso da palavra “putrificação” na versão original e isso o remeteu ao dear dirty Dublin, de Joyce. Eu contei toda a história ao Augusto e disse que não me opunha absolutamente a ele citar a imagem original e lhe expliquei que só a retirara durante a gravação por causa das preocupações de Rogério Duarte. O mais engraçado porém é que, nessa ocasião, quando falei sobre o caso com o Rogério, ele me disse: “Ah, mas você sabe quem foi que me vendeu aquele grilo? Foi o André Midani”. O Midani era o presidente da Polygram, a gravadora! Eu acho que, do ponto de vista do texto, é importante a manutenção de “Acrílico Santo Amargo da Putrificação”, que é muito mais forte e mais bonito. Também seria demagógico evitar a imagem, porque eu adoro Santo Amaro e, hoje em dia, embora não seja religioso nem queira ser, sou devoto de Nossa Senhora da Purificação. E “putrificação” dizia e diz muita coisa sobre a cidade, que vem apresentando muitos sinais de degeneração urbana e social, sobretudo de deterioração do ambiente, por causa da poluição química, violentíssima nessas décadas de intensa industrialização.
Penso que há muita verdade no termo “putrificação”, que, para além da referência a Santo Amaro, é radicalmente contra uma imagem idílica das cidades do interior do Brasil, sobretudo das do Nordeste. E acho que Nossa Senhora da Purificação me faz mais forte por eu ter coragem de manter essa visão crítica, inconformada e algo que revoltada, que reconhece as nossas mazelas. A vida brasileira é muito problemática e é ruim querer esconder isso.
Quanto à primeira parte da imagem, “amaro” é “amargo” em italiano. Existe esse nome, Amargo, como nome de homem na Espanha, pelo menos em algumas peças e poemas de Lorca, assim como há para mulheres nomes como Martírios e Dolores. Em A casa de Bernarda Alba, de Lorca, uma das moças se chama Angústias. Então, eu julgava que Amaro fosse um nome italiano de homem que significava mesmo “amargo”, como para os espanhóis. Mas terminei por descobrir que, na verdade, Santo Amaro é São Mauro e que teria havido uma corruptela do nome. As biografias dos santos registram Santo Amaro ou São Mauro. E Mauro quer dizer mouro. O interessante é que lá em Santo Amaro se cultiva cana-de-açúcar desde sempre. É por isso que em outra canção, “Trilhos urbanos”, falo: “Cana doce, santo amaro”. Ao lado do doce, outra vez, o amargo." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
Caetano e Gil em 1969 (Acervo IMS).
12 - Alfômega (Gilberto Gil)
o analfomegabetismo
Somatopsicopneumático
o analfomegabetismo
Somatopsicopneumático
Que também significa
Que eu não sei de nada sobre a morte
Que também significa
Tanto faz no sul como no norte
Justamente
Que também significa
Deus é quem decide minha sorte
o analfomegabetismo
Justamente
Somatopsicopneumático
o analfomegabetismo
Somatopsicopneumático
Que também significa
Que eu não sei de nada sobre a morte
Justamente
Que também significa
Tanto faz no sul como no norte
Que também significa que que
Deus é quem decide minha sorte
o analfomegabetismo
Somatopsicopneumático
o analfomegabetismo
Somatopsicopneumático
Que também significa
Que eu não sei de nada sobre a morte
Que também significa
Tanto faz no sul como no norte
Que também significa
Deus é quem decide minha sorte
o analfomegabetismo
Somatopsicopneumático
o analfomegabetismo
Somatopsicopneumático
Que também significa
Que eu não sei de nada sobre a morte
Que também significa
Tanto faz no sul como no norte
Que também significa
Deus é quem decide a minha sorte
Que também significa, Deus
Deus é quem decide a minha sorte
Caetano e Gil em 1968 (Acervo O Globo).
Ficha Técnica
Estúdios: PHILIPS (Rio), J.S. (Salvador - Bahia), SCATENA (São Paulo); Técnicos: Ary Carvalhaes, Célio Martins, João Kibelskis, Stênio Carlini, Paulo Frazão e João dos Santos; Arranjos e direção musical: Rogério Duprat; Violão: Gilberto Gil; Guitarra elétrica: Lanny; Baixo elétrico: Sérgio Barroso; Bateria: Wilson das Neves; Piano e órgão: Chiquinho de Moraes; Ritmo: Tião motorista; Participação em Acrilírico: Jussara Moraes; Programação gráfica: Lincoln; Direção de produção: Manoel Barenbein.