1979 - Cinema Transcendental - Caetano Veloso
Cinema Transcendental foi lançado em novembro de 1979 e é o segundo disco de Caetano Veloso com A Outra Banda da Terra. Após a avalanche de críticas desde Bicho e Muito, houve maior aceitação com o álbum que inicia com um sorriso de Caetano ao cantar Lua de São Jorge. Beleza Pura tornou-se hit. Dominguinhos e seu irreparável acordeão participam das faixas Oração ao Tempo e Cajuína. Este cinema transcendental deixa em cartaz o abraço de Caetano no Nordeste de Aracaju até Teresina, passando pelos Trilhos Urbanos de Santo Amaro ao som do Badauê.
Caetano: "O show fez muito sucesso e já havia um culto ao próprio show com A Outra Banda da Terra. Tem Cajuína, que é linda. As pessoas gostam muito desse disco. Houve uma virada nas vendas. Aí eu passei a vender grande. Eu gosto mais de Uns, de Caetano, de Transa e de Jóia." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).
"O disco Cinema Transcendental é uma continuação do Muito, com mais organicidade." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1979).
"Cinema Transcendental foi a recuperação da minha relação com a imprensa, depois da má repercussão do Muito – que foi um fracasso de crítica e vendeu pouquíssimo. Houve uma grande recuperação, comparativamente, porque acharam que o disco era bom. Cinema Transcendental foi até simpático, as pessoas já tinham se acostumado mais com o som da Outra Banda da Terra. O ouvinte, os técnicos, os músicos e eu. E aí os shows, que até então sempre ficavam muito vazios e não enchiam teatro, começaram a atrair mais gente. Quando eu cheguei de Londres, os shows ficavam lotados, mas com Araçá Azul houve uma confusão com o show, que era muito radical e a plateia não entendia. Bicho e Muito ficavam vazios, ia pouca gente, mas eu nem me incomodava muito não. Eu sempre fiz turnês, mas depois do Cinema Transcendental fiz mais regularmente. Mesmo porque, no interior de São Paulo funcionava muito bem naquilo que eles chamavam de circuito universitário. Tinha as capitais do Brasil e tinha as cidades do interior de São Paulo. São dois países: o Brasil e São Paulo. Durante essa fase eu fiz muitas canções que foram parar no álbum seguinte, Outras Palavras." (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).
"A gente estava excursionando com o Muito pelo Nordeste, quando as músicas começaram a pintar. Muitas canções foram feitas quando a gente passava uma semana em Fortaleza, outra no Recife, outra em Natal. Então a influência nordestina foi muito forte. [...] Eu gosto muito de fazer homenagens. Faço algumas no disco: ao Deus do Tempo; ao afoxé vencedor do carnaval da Bahia; a um amigo de Teresina; à mulher; aos pretos da cidade de Salvador; aos Novos Baianos; à lua deslumbrante de Oxóssi; aos surfistas cariocas; às reminiscências da infância e a Mautner." (Caetano Veloso para o Correio Braziliense, 1980).
Sobre a capa: "Eu não quero que as pessoas me vejam. Quero que elas vejam as coisas lindas que eu ando vendo." (Caetano Veloso para a Folha de São Paulo, 1979).
"Eu só botei aquela capa porque foi uma coisa assim quase de destino. A fotografia apareceu... eu não tirei aquela fotografia pra sair em capa de disco, jamais eu planejava um negócio daquele. Aquela foto foi o Robert que tirou, eu nem vi que ele tinha tirado. Mas quando ela apareceu, eu tinha terminado de fazer o disco, pensava em botar o nome de Cinema Transcendental, aí eu disse: "ah bom! Vai ser mesmo Cinema Transcendental e a capa vai ser essa". Tinha de ser! Quando vi aquela foto tão retinha, eu centrado ali, com aquela coisa na minha frente, me senti obrigado a botar na capa. Eu olhando o céu e o mar, eu acho lindo! Zé Agripino, um amigo meu, que eu levo muito em consideração tudo o que fala, porque eu acho genial, me disse que detestou aquela capa. Porque o fato de eu de costas, transmite uma mensagem negativa. Mas não acho, não consigo achar, porque minha ideia não era ficar de costas. Aliás, não houve intenção. Eu descobri aquela fotografia e achei bonito estar olhando para aquele cinema. Aí pensei: "bom, por esta vez, as pessoas vão me perdoar por não estar de frente, porque tem muito a ver com a ideia do disco, com a letra do Lua de São Jorge e com o título de Cinema Transcendental. Quer dizer, eu viajando nesse visual." (Caetano Veloso para a Revista Música, 1981).
A Outra Banda da Terra
Tomas Improta: teclados.
Arnaldo Brandão: baixo.
Vinicius Cantuária: bateria.
Edu (Bolão) Gonçalves: percussão.
Entrevista para o Jornal do Brasil
Para ler: clique na imagem.
Lista de Músicas
Lado 1
1 - Lua de São Jorge
(Caetano Veloso)
2 - Oração Ao Tempo
(Caetano Veloso)
3 - Beleza Pura - Dedicada a Mônica Millet, Gilberto Gil e Dai
(Caetano Veloso)
4 - Menino do Rio
(Caetano Veloso)
5 - Vampiro
(Jorge Mautner)
6 - Elegia - A partir de um Poema de John Donne, Poeta do Séc. XVII)
(Pericles Cavalcanti, Augusto de Campos)
Lado 2
1 - Trilhos Urbanos
(Caetano Veloso)
2 - Louco Por Você
(Caetano Veloso)
3 - Cajuína
(Caetano Veloso)
4 - Aracaju
(Tomas Improta, Vinicius Cantuária, Caetano Veloso)
5 - Badauê
(Môa do Catendê)
6 - Os Meninos Dançam
(Caetano Veloso)
Vamos às Letras.
1 - Lua de São Jorge (Caetano Veloso)
Lua de São Jorge
Lua deslumbrante
Azul verdejante
Cauda de pavão
Lua de São Jorge
Cheia branca inteira
Oh minha bandeira
Solta na amplidão
Lua de São Jorge
Lua brasileira
Lua do meu coração
Lua de São Jorge
Lua maravilha
Mãe irmã e filha
De todo esplendor
Lua de São Jorge
Brilha nos altares
Brilha nos lugares
Onde estou e vou
Lua de São Jorge
Brilha sobre os mares
Brilha sobre o meu amor
Lua de São Jorge
Lua soberana
Nobre porcelana
Sobre a seda azul
Lua de São Jorge
Lua da alegria
Não se vê um dia
Claro como tu
Lua de São Jorge
Serás minha guia
No Brasil de norte a sul
2 - Oração Ao Tempo (Caetano Veloso)
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro em um acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo Tempo Tempo Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo Tempo Tempo Tempo
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo Tempo Tempo Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo Tempo Tempo Tempo
O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Apenas contigo e migo
Tempo Tempo Tempo Tempo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo Tempo Tempo Tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Portanto, peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo Tempo Tempo Tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Comentário do autor: "Das do LP Cinema Transcendental apenas uma escrevi parcialmente no papel antes da música, foi Oração Ao Tempo. Escrevi umas estrofes e bolei, em seguida, uma melodia para a primeira estrofe. Depois, resolvi repetir essa melodia para o resto do texto, queria tudo com a mesma métrica, o mesmo ritmo. Foi a única, portanto, que eu escrevi no papel." (Caetano Veloso para a Revista Código 4, 1979).
"Oração ao tempo é linda! Eu adoro aquelas coisas assim... como é que se diz? Eu adoro aquela demagogia sentimental com o orixá Tempo!". (Caetano Veloso em entrevista a Scarlet Moon, s/d).
3 - Beleza Pura (Caetano Veloso)
Não me amarra dinheiro não
Mas formosura
Dinheiro não
A pele escura
Dinheiro não
A carne dura
Dinheiro não
Moça preta do Curuzu
Beleza pura
Federação
Beleza pura
Boca do Rio
Beleza Pura
Dinheiro não
Quando essa preta começa a tratar do cabelo
É de se olhar
Toda a trama da trança a transa do cabelo
Conchas do mar
Ela manda buscar pra botar no cabelo
Toda minúcia
Toda delícia
Não me amarra dinheiro não
Mas elegância
Não me amarra dinheiro não
Mas a cultura
Dinheiro não
A pele escura
Dinheiro não
A carne dura
Dinheiro não
Moço lindo do Badauê
Beleza pura
Do Ilê Aiyê
Beleza pura
Dinheiro yeah
Beleza pura
Dinheiro não
Dentro daquele turbante do filho de Gandhi
É o que há
Tudo é chique demais, tudo é muito elegante
Manda botar
Fina palha da costa e que tudo se trance
Todos os búzios
Todos os ócios
Não me amarra dinheiro não, mas os mistérios
Comentário do autor: "Tem uma referência direta à canção do Elomar, que eu adoro, que fala "viola, alforria, amor, dinheiro não". "Beleza Pura" é uma saudação ao início da 'tomada' da cidade de Salvador pelos pretos. Ela sempre foi uma cidade com muitos pretos mas, até os anos 70, eles ficavam mais ou menos 'nos seus lugares': puxadores de rede, de xaréu, tocadores de candomblé, pescadores, vendedores de acarajé, todos muito nobres, bonitos, mas cada um no seu lugar tradicional. E, nos anos 70, em grande parte por influência do movimento negro norte-americano e sul-africano, mas também por desenvolvimento do mundo e do Brasil, os pretos tomaram conta da cidade da Bahia de outra maneira, e "Beleza Pura" é uma saudação ao início desse acontecimento. Eu sempre estive ligado às origens dessas coisas, por isso jamais poderia sentir a antipatia que os pretensiosos do centro tinham com relação à axé music. Sem falar em "Atrás do Trio e Elétrico", de anos antes." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
“O verso "Não me amarra dinheiro, não", que abre "Beleza Pura", se inspirou numa canção que amei desde a primeira vez que ouvi. Roberto Santana me apresentou a um amigo seu que cantava uma cantiga deslumbrante: "Apois pro cantador e violeiro/ Só há três coisas nesse mundo vão:/ Amor, viola, alforria e nunca dinheiro/ Viola, alforria, amor. Dinheiro, não." Sempre quis crer que foi do próprio Elomar, genial autor da canção, que a ouvi pela primeira vez. Mas Santana, que já gosta de pôr em dúvida minha memória, mesmo em coisas de que tenho certeza, aqui teria muita chance de me desmentir com razão. A frase de "Beleza Pura" abre o show que faço com Maria Gadú. Fico feliz e orgulhoso. Meu sonho seria cantar, num próximo show, "Violeiro" (é este o título da canção de Elomar) com a bandaCê, mas não me conformo de não atingir o grave da palavra "cantador", que na voz do autor soa simplesmente divina. Acho que não vale a pena mudar de tom: tem que ser aquele som da voz de Elomar no grave. O que importa é que cada repetição do refrão de "Beleza Pura" possa trazer ao pensamento do ouvinte o conteúdo de Elomar.” (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2011).
4 - Menino do Rio (Caetano Veloso)
Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Dragão tatuado no braço
Calção, corpo aberto no espaço
Coração de eterno flerte
Adoro ver-te
Menino vadio
Tensão flutuante do Rio
Eu canto pra Deus proteger-te
O Havaí seja aqui
Tudo o que sonhares
Todos os lugares
As ondas dos mares
Pois quando eu te vejo eu desejo o teu desejo
Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Toma esta canção como um beijo
Comentário do autor: "Fiz por encomenda da Baby Consuelo, que me pediu uma música para ela cantar para um cara que ela achava bonito, o Peti. Ele, um surfista aqui do Rio, era muito meu amigo, visitava muito a gente, andávamos juntos, íamos ao cinema. Ele foi lá em casa um dia, e enquanto conversávamos me lembrei do pedido da Baby. Eu estava com o violão e fiz a música assim, conversando com o Peti e com Dedé na sala, cantando baixinho, só pra mim mesmo, e ficou pronta ali, em poucos minutos. Então mostrei à Baby, que adorou e gravou. Eu gravei também, porque mostrei aos músicos da minha banda e eles adoraram." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
Peti, o menino do Rio.
5 - Vampiro (Jorge Mautner)
Eu uso óculos escuros
Pra minhas lágrimas esconder
E quando você vem para o meu lado
Ai as lágrimas começam a correr
E eu sinto aquela coisa no meu peito
Eu sinto aquela grande confusão
Eu sei que eu sou um vampiro
Que nunca vai ter paz no coração
Às vezes eu fico pensando
Por que que eu faço as coisas assim
E a noite de verão, ela vai passando
Com aquele seu cheiro louco de jasmim
E eu fico embriagado de você
Eu fico embriagado de paixão
No meu corpo sangue não corre não
Corre fogo e lava de vulcão
Eu fiz uma canção cantando todo o amor que eu sinto por você
Você ficava escutando impassível
Eu cantando do teu lado a morrer
E ainda teve a cara de pau
De dizer naquele tom tão educado
Oh pero que letra más hermosa
Que habla de un corazón apasionado
Por isso é que eu sou um vampiro
E com meu cavalo negro eu apronto
E vou sugando o sangue dos meninos
E das meninas que eu encontro
Por isso é bom não se aproximar
Muito perto dos meus olhos
Senão eu te dou uma mordida
Que deixa na sua carne aquela ferida
E na minha boca eu sinto
A saliva que já secou
De tanto esperar aquele beijo
Ai aquele beijo que nunca chegou
Você é uma loucura em minha vida
Você é uma navalha para os meus olhos
Você é o estandarte da agonia
Que tem a lua e o sol do meio-dia
6 - Elegia (Pericles Cavalcanti, Augusto de Campos)
Deixa que minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre
Minha América, minha terra à vista
Reino de paz se um homem só a conquista
Minha mina preciosa, meu império
Feliz de quem penetre o teu mistério
Liberto-me ficando teu escravo
Onde cai minha mão meu selo gravo
Nudez total: todo prazer provém do corpo
(Como a alma sem corpo) sem vestes
Como encadernação vistosa,
Feita para iletrados, a mulher se enfeita
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns a que tal graça se consente
É dado lê-la
Eu sou um que sabe
Foto: Marcio Lima.
7 - Trilhos Urbanos (Caetano Veloso)
O melhor o tempo esconde
Longe muito longe
Mas bem dentro aqui
Quando o bonde dava a volta ali
No cais de Araújo Pinho
Tamarindeirinho
Nunca me esqueci
Onde o imperador fez xixi
Cana doce Santo Amaro
Gosto muito raro
Trago em mim por ti
E uma estrela sempre a luzir
Bonde da Trilhos Urbanos
Vão passando os anos
E eu não te perdi
Meu trabalho é te traduzir
Rua da Matriz ao Conde
No trole ou no bonde
Tudo é bom de ver
São Popó do Maculelê
Mas aquela curva aberta
Aquela coisa certa
Não dá pra entender
O Apolo e o Rio Subaé
Pena de pavão de Krishna
Maravilha vixe Maria mãe de Deus
Será que esses olhos são meus?
Cinema transcendental
Trilhos Urbanos, Gal
Cantando o Balancê
Como eu sei lembrar de você
Comentário do autor: "Santo Amaro da Purificação é quase na foz do rio Subaé, tanto que lá é comum que se diga "lá em cima, lá embaixo", ou "fulano mora lá em cima, mora lá embaixo", embora a região seja plana, pois a referência mais importante é o rio, de modo que as coisas ficam rio acima ou rio abaixo. O cais do Araújo Pinho de que fala a canção era um cais de rio que ficava mais próximo do mar, mas havia outros, todos importantes, pois eram atracadouros de grandes saveiros que traziam mercadorias, sobretudo cerâmica de Nazaré das Farinhas, ou passageiros. O rio era navegável por saveiros consideráveis, que vinham até dentro da cidade, no meio mesmo da cidade. Em Capitães da areia, de Jorge Amado, Pedro Bala pega um saveiro e vai sozinho para Santo Amaro, vem até o meio da cidade e fica no saveiro olhando as estrelas. O Jorge Amado escreveu isso em 1937, mas eu via esses saveiros chegarem quando era adolescente, com uns dezessete anos. O cais que recebia as cerâmicas de Nazaré ficava defronte do Clube Irapuru, onde havia funcionado o ginásio de Santo Amaro, um ginásio privado, antes do estadual ser inaugurado. Os saveiros atracavam junto da ponte sobre o rio Subaé, no local em que atualmente se chega quando se vem pela estrada de rodagem, onde também fica a estação de trem. Mais para baixo, passava o bonde, que era puxado a burro. Por isso a canção fala de Trilhos Urbanos, porque era esse o nome da companhia. Esses bondes eu usei até os dezenove anos, mais ou menos. Noutras cidades maiores, aquilo era uma coisa do século XIX, mas permaneceu em Santo Amaro, pois eram lucrativos e atendiam bem à população; não foram eletrificados e se mantiveram até meados dos anos 60. Santo Amaro também era ligada a Salvador por uma linha de navios, porque o rio Subaé abre num braço de mar já na ponta da cidade, e o bonde ia até o atracadouro do navio, o chamado Porto do Conde. O bonde era a única condução que levava quem chegava de navio ao centro da cidade. Entre uma coisa e outra havia uma usina de álcool, tirado da cana-de-açúcar dali. Em volta não existiam casas nem chão onde construir, pois era um manguezal, atravessado apenas pelos trilhos do bonde. O Porto do Conde, que era de cimento, deve estar lá, provavelmente em ruínas, porque não é usado há muitos anos. "Trilhos Urbanos" é sobre essas viagens de bonde. A letra também faz referência a dois tamarindeiros que ficavam na beira do rio, no cais de Araújo Pinho, que morreram ou foram derrubados, e à visita que o imperador d. Pedro II fez à cidade (a rua lá de baixo, que ele certamente percorreu, passou a se chamar Rua do Imperador). Foi uma visita oficial a Santo Amaro, a primeira cidade a exigir, por meio de sua Câmara de Vereadores, a independência do Brasil, e Cachoeira, outra cidade heroica da independência. Em frente à casa de Araújo Pinho, que era a maior de todas, pois ele era o sujeito mais rico da cidade (a casa está lá, em ruínas, porque o Patrimônio não a salvou, nem a cidade a salvou), havia dois tamarindeiros. O que se diz, e se consolidou como um folclore, é que os cavalos do imperador ficaram amarrados ali, e mais, que ele saltou e fez xixi naquele lugar!
Há também a menção a Gal, por causa de um show dela que, no Rio, foi considerado o máximo. Chamava-se Gal Tropical. Eu e Dedé fomos ver. E não gostamos. Isso foi um problema para nós dois, porque a imprensa colocava o espetáculo nas alturas, todo mundo adorava, todos os nossos amigos; eu me lembro que Guilherme, que era o diretor, estava orgulhoso; lembro também que Regina Casé achava que o show era o máximo, dizia que era a coisa mais linda do mundo, e todo mundo achava isso. E eu e Dedé não gostamos, achamos tudo posado, uma coisa falsa, e o jeito de cantar muito pré-marcado. Mas, no final, repentinamente, tinha uma verdadeira epifania. Gal cantava "Balancê"! Mudava a roupa, vinham umas fitas coloridas, era uma coisa! Eu fiquei muito emocionado. E nós estávamos tão fragilizados por não termos gostado antes, que quando vimos aquele número, o "Balancê", a escolha da música, o jeito que ela cantava, aquelas fitas coloridas, eu e Dedé choramos. Eu chorei tanto de emoção, mais de uma hora seguida, que não conseguia falar com Gal depois. E fiquei com aquilo na cabeça. Tinha sido quase que uma experiência mística. Daí eu falar disso na canção. A canção é isso: Santo Amaro, o cais, a "pena de pavão de Krishna", "vixe Maria", Nossa Senhora da Purificação, Gal cantando "Balancê", o bonde passando, tudo num momento só, atemporal, como num "cinema transcendental", como se fosse uma experiência mística." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
8 - Louco Por Você (Caetano Veloso)
Tudo que ressalta quer me ver chorar
Louco por você
Nada esquece de armar uma lágrima
Que às vezes vem bater
Na cara
Onda do mar
Até gritar de
Felicidade
Tarde cinza, lágrima prismática
Louco por você
Cor multiplicada, som, palavra má
Porque não sei dizer
Saiba
Diga você
Agora é tarde
Felicidade
Vem
Foto: Thereza Eugênia.
9 - Cajuína (Caetano Veloso)
Existirmos - a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos, intacta retina:
A cajuína cristalina em Teresina
Comentário do autor: "Numa excursão pelo Brasil com o show Muito, creio, no final dos anos 70, recebi, no hotel em Teresina, a visita de Dr. Eli, o pai de Torquato. Eu já o conhecia pois ele tinha vindo ao Rio umas duas vezes. Mas era a primeira vez que eu o via depois do suicídio de Torquato. Torquato estava, de certa forma , afastado das pessoas todas. Mas eu não o via desde minha chegada de Londres: Dedé e eu morávamos na Bahia e ele, no Rio (com temporadas em Teresina, onde descansava das internações a que se submeteu por instabilidade mental agravada, ao que se diz, pelo álcool). Eu não o vira em Londres: ele estivera na Europa mas voltara ao Brasil justo antes de minha chegada a Londres. Assim, estávamos de fato bastante afastados, embora sem ressentimentos ou hostilidades. Eu queria muito bem a ele. Discordava da atitude agressiva que ele adotou contra o Cinema Novo na coluna que escrevia, mas nunca cheguei sequer a dizer-lhe isso. No dia em que ele se matou, eu estava recebendo Chico Buarque em Salvador para fazermos aquele show que virou disco famoso. Torquato tinha se aproximado muito de Chico, logo antes do tropicalismo: entre 1966 e 1967. A ponto de estar mais frequentemente com Chico do que comigo. Chico eu eu recebemos a notícia quando íamos sair para o Teatro Castro Alves. Ficamos abalados e falamos sobre isso. E sobre Torquato ter estado longe e mal. Mas eu não chorei. Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental. Quando, anos depois, encontrei Dr. Eli, que sempre foi uma pessoa adorável, parecidíssimo com Torquato, e a quem Torquato amava com grande ternura, essa dureza amarga se desfez. E eu chorei durantes horas, sem parar. Dr. Eli me consolava, carinhosamente. Levou-me à sua casa. D. Salomé, a mãe de Torquato, estava hospitalizada. Então ficamos só ele e eu na casa. Ele não dizia quase nada. Tirou uma rosa-menina do jardim e me deu. Me mostrou as muitas fotografias de Torquato distribuídas pelas paredes da casa. Serviu cajuína para nós dois. E bebemos lentamente. Durante todo o tempo eu chorava. Diferentemente do dia da morte de Torquato, eu não estava triste nem amargo. Era um sentimento terno e bom, amoroso, dirigido a Dr. Eli e a Torquato, à vida. Mas era intenso demais e eu chorei. No dia seguinte, já na próxima cidade da excursão, escrevi Cajuína." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2012).
Caetano, Torquato e Gil nos anos 60.
10 - Aracaju (Tomas Improta, Vinicius Cantuária, Caetano Veloso)
Céu todo Azul
Chegar no Brasil por um atalho
Aracaju
Terra cajueiro papagaio
Araçazu
Moqueca de cação no João do Alho
Aracaju
Voltar do Brasil por um atalho
Ser feliz
O melhor lugar é ser feliz
Mas
Onde estou
Não importa tanto aonde vou
O melhor é ter amor
Aracaju
Cajueiro arara cor de sangue
Nordeste-sul
Centro da cidade bangue-bangue
Aracaju
Menos o Sergipe e mais o mangue
11 - Badauê (Môa do Catendê)
Misteriosamente
O Badauê surgiu
Sua expressão cultural
O povo aplaudiu
Comentário de Caetano: "Môa do Catendê, o cara fundador do Badauê, que começou, na verdade, a grande virada do surgimento dos blocos afros em Salvador e compositor, mestre de capoeira, meu amigo. [...] o badauê cresceu, era um afoxé e foi fundado por Môa e eu gravei a música "misteriosamente o badauê surgiu/ sua expressão cultural/ o povo aplaudiu" com ritmo de afoxé. Eu o encontrava em Salvador sempre e era um grande criador, uma pessoa importante na cidade da Bahia." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2018).
Foto: Nicia Guerriero.
12 - Os Meninos Dançam (Caetano Veloso)
Pinta uma estrela na lona azul do céu
Pinta uma estrela lá
Pinta um malandro e no malandro outro malandro
Flutua angelical
Um por um, um por um, um por um, um por um
Agora a moça esboça um salto vai mas não vai
Todos sabem voar
(Baby, Boca, Charles)
A tribo blue, nomadismo, tenda templo
Circo transcendental
(Jorge, Pepeu, Bola, Didi)
A história do samba,
A luta de classes, os melhores passes de Pelé
Tudo é filtrado ali
Naquele espaço azul, naquele tempo azul, naquela tudo azul
Eles dançam, eles dançam, eles dançam, todos eles dançam
Dança-moenda
Dança-desenho, dança-trapézio, dança-oração
Moenda-redenção
Comentário do autor: "É uma homenagem aos Novos Baianos, que fizeram um show que eu adorei." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
Fotos: Vilma Slomp.
Ficha Técnica
Direção de Produção: Caetano Veloso
Técnicos de Gravação: Luiz Claudio Coutinho e Paulo Chocolate
Assistente de Gravação: Victor
Mixagem: Jairo Pires e Luis Claudio Coutinho
Estúdio: Polygram - Rio
Arranjos de Base: Caetano e A Outra Banda da Terra
Participação Especial: Dominguinhos, Perinho Santana, Tony Costa.
Coro: Solange, Viviane, Regina e gentilmente cedidas pela Odeon, Lucia Turnbull e Mariazinha.
Participação muito especial de Paulão Zdanowski.
Data da Gravação: Julho a Setembro - 1979.
Capa: Aldo Luiz.
Fotos: Robert Feinberg.
Arte: Mariano Martins.