1981 - Outras Palavras - Caetano Veloso
Outras Palavras foi lançado depois do carnaval de 1981 e é o terceiro álbum de Caetano Veloso em parceria com A Outra Banda da Terra. Caetano não participou com efetividade da sua finalização, pois estava 'em outra trip' no 'projeto Brasil' com João Gilberto. Mas deu certo: foi o seu primeiro disco de ouro, atingindo a marca de cem mil cópias vendidas. Se Cinema Transcendental tornou-se nordestino, Outras Palavras "tem muito a ver com São Paulo" ao falar em gírias ("tudo de que eu sou afins", "perigas perder você") e citar cidades do interior do estado. Quero Um Baby Seu já fazia parte do show do disco anterior. Sim/Não tem letra de Caetano inspirada nos papos no estúdio com o percussionista Bolão. Gema nasceu de um sonho de Bethânia, que gravou a canção no álbum Talismã, em 1980. Há homenagens para as musas Regina Casé e Vera Zimmermann. Outras palavras para exercer a felicidadania, apesar da dor.
Caetano: "É um trabalho com A Outra Banda da Terra, todo produzido por mim, na contramão das lantejoulas de Los Angeles. Adoro a canção Outras Palavras. Gosto dessa fase. Era um tempo alegre." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).
“O disco é muito do jeito que deu pra fazer na hora. A gente teve neste ano uma trip especial que foi gravar com João Gilberto e isso foi uma trip tão especial, durou tanto tempo e tinha um clima tão forte, um clima tão específico do João Gilberto que quando começamos a gravar os nossos discos estávamos com um material meio de antes, meio de depois dessa trip - a maioria de antes - que estávamos sem um projeto claro de atitude. No fundo é um clima de quem estava sem critério porque eu estava numa outra que era muito radical, numa determinada direção, mas que era uma trip do João. Quer dizer, era não só uma honra como uma delícia para nós, mas era uma trip dele… A gente tinha que fazer o disco da gente porque tem o ritmo de lançamento da gravadora, tudo, a vida normal, aí eu fiz meio sem critério. Por exemplo, para fazer o Muito e o Cinema Transcendental eu tinha um critério muito nítido na minha cabeça que era tocar com a banda, fazer uma coisa espontânea, fazer um som que não tivesse nada a ver com o som de “nível internacional”, enfim o “som alto padrão” que todo mundo estava tentando. Para mim eu queria fazer uma outra coisa, mais doméstica, com aqueles músicos, por causa da relação com as pessoas, do jeitinho de tocar. Este era o critério. Era quase uma guerra, a gente vive num ambiente de gravadora, era uma coisa vista como meio absurda, tive que produzir o disco eu mesmo. Neste disco de agora não tinha isto, mas também eu já tinha conseguido isso, não estou mais empenhado nisso. Enfim, não é um disco rigoroso. Resumindo, eu atribuo a duas coisas: o primeiro ao fato de ter feito o trabalho com João que entrou na minha cabeça numa trip diferente e tomou um tempo enorme e fez, inclusive, adiar a gravação do meu disco; a outra é eu já ter feito no Cinema Transcendental e no Muito o que eu queria fazer nesta coisa. Talvez, de certa forma, eu esperasse o que ia pintar em mim para embarcar, mas com o negócio do João não deu pra entender. O que eu falei do disco não é de maneira nenhuma uma coisa pra dizer que não gosto, nem pra dizer que estou pedindo desculpa caso alguém não goste. Apenas é uma constatação da realidade: quando gravei os outros dois discos eu estava empenhado num projeto claro e os realizei o mais nitidamente que pude. Neste caso não, era uma coisa assim meio indefinida, que eu ainda não sei julgar. Mas na verdade eu gosto de tudo. O disco tem um repertório pouquinho mais irregular que os outros, mas, por exemplo, a canção Outras Palavras eu adoro, é uma das canções que já fiz que mais gosto. Acho magnífico, mas não diria que é minha gravação mais linda. É bonita, está limpa, os meninos tocam bem, mas eu não tive tempo de ter uma concepção, “eu quero fazer”, tipo Terra que é uma gravação magistral; a gravação de Sim, Não com aquele reggae afoxé de Bolão, com letra minha, acho linda, o coro lindo, o violão de Bolão é um arraso, eu acho deslumbrante; a gravação de Gema eu acho linda também. São jóias, o resto do disco tem um jeito qualquer coisa. Mas tem uma coisa que eu aprendi muito nos últimos tempos, as coisas que estão fora do controle da gente, por vezes se revelam lindas. Talvez parte parte do meu pouco entusiasmo pelo disco venha disso, porque eu queria que ele fosse mais paulista. Porque a inspiração e o pique inicial eram mais paulistas. No disco, inclusive, tem muita gíria paulista, muita sintaxe errada e charmosa de São Paulo e tem muita coisa com esse negócio. Paulista é uma loucura. Em São Paulo a língua piorou, piorou total. Eu queria talvez gravar em São Paulo, dar assim um tom mais... um ar exterior de experimental, que caracteriza mais o paulista. E o disco não tem disso. Também neste disco novo, em algumas faixas, eu não me sinto muito brilhante cantando. Transei rápido, botei voz rápido pra viajar pra Bahia. Minha cabeça já estava de férias e eu ainda estava gravando o disco”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).
"Eu vivia intensamente essa temática amorosa no momento em que preparava este disco. Eu estava me separando, estava separado de Dedé pela primeira vez, vivendo com grande sofrimento e alguma ansiedade essa situação, e não queria deixar isso fora da minha produção. Mas, de qualquer maneira, uma canção é uma canção. Ela tem vida própria. Quando eu era menino, em Santo Amaro, e ouvia canções de Vinícius, aquela coisa de 'eu sei que vou te amar' e tudo, eu ficava acima de tudo intrigado com a possibilidade de uma realidade atrás da canção. Eu pensava: ele viveu isso mesmo? Será que há alguém para quem esses versos são feitos? Isso é uma experiência que ele está contando ou é só uma canção? Esse era um dos maiores mistérios da música, para mim." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).
"Quando eu comecei a pensar nesse disco era outra coisa. Eu queria uma coisa mais rigorosa, mais tecnologia paulista, mais para aquilo que eu digo em Vera Gata, aquilo de robôs autoprogramáveis. Ele deveria ter sido feito lá em São Paulo, eu queria um disco paulista como as canções são paulistas, elas foram saindo na estrada. Mas depois foram tantas coisas... tanto trabalho… o disco com Gil e João Gilberto e Bethânia… eu estava sobrecarregado... Perdi um pouco o controle sobre o disco. Os meninos escreveram uns arranjos, ficaram bonitos, mas eu não tive muito controle. Foi bom o tempo todo, mas eu não tenho uma visão muito clara sobre ele. Pode parecer até um pouco desleixando.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1981).
"Gosto muito do disco Outras Palavras, que tem tantas músicas bacanas, a canção Outras Palavras entre elas. Perguntam-me, às vezes, o que significa a expressão outras palavras, e talvez eu nunca tenha ainda explicado. Era uma gíria que a Mônica Millet, do Gantois, amiga nossa, dizia muito. É como se dissesse: "Agora são outros quinhentos", mas de outra maneira. Como se você dissesse: "Agora são outras palavras, o negócio é outro". Tive ideia de fazer uma canção em que as palavras parecessem outras. Também, inventando palavras, coisa que eu sempre gostei. Adoro esses assuntos. Por isso gosto tanto de Joyce, de Guimarães Rosa, desses autores que trabalham na linguagem, montando palavras, criando novas, cruzando palavras em situações surpreendentes. As canções desse disco foram feitas durante a excursão do disco anterior, do Cinema Transcendental. (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).
“Outras Palavras tem canções que eu fiz durante a excursão de Cinema Transcedental pelo circuito universitário, no interior de São Paulo principalmente. São canções cheias de jogos de palavras, como Outras Palavras e Jeito De Corpo, principalmente esta. A repercussão não foi ruim, mas também não foi tão boa quanto a de Cinema Transcedental. Todos os discos com a Outra Banda da Terra foram feitos assim: eu assinava a produção mas não produzia. Simplesmente a gente gravava e ficava... mas depois comecei a acompanhar a mixagem. Por um lado aquilo tudo me estimulava, porque a gente tinha mais canais para trabalhar, para fazer mais gravações e adições, se quisesse. Mas também me assustava um pouco, porque a coisa foi crescendo e a mesa foi ficando enorme e com muito botão. Eu pensava: “Tá ficando tão complicado, que cada vez vou entender menos desse negócio!" Hoje meus filhos entendem de Pro Tools, além dos meus próprios produtores, mas naquela época, como eu não tinha produtor, o técnico fazia tudo como sabia fazer e todo mundo opinava. As renovações de contrato com a Philips se davam de forma basicamente tranquilas, embora eu não acompanhasse muito. Meu empresário Guilherme Araújo, combinado com minha advogada Léa Millon, a tia Léa, faziam as combinações com a gravadora, e me explicavam tudo. Mas eu esquecia na mesma hora: aceitava de qualquer jeito, não ligava muito. Naquela época não tinha muito quem quisesse me convidar, porque os meus shows não enchiam e os meus discos estavam sendo mal falados pela crítica. Eu já tinha um histórico na gravadora e também tinha um histórico no Brasil, então tinha uma certa importância e ninguém queria se livrar de mim: "É melhor manter esse maluco aí!" Eu acho que ninguém quis me tirar, porque Cinema Transcedental já foi bem e eu tinha um prestígio grande. Sempre fiz o disco que quis, e só quis sair da gravadora uma vez. Foi a única vez que eu me aborreci realmente, então ia falar com o presidente que queria sair. Mas aí, quando liguei pra pedir pessoalmente uma reunião, o cara estava em Miami para uma reunião... e de lá ele foi aparentemente defenestrado." (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).
Sobre a capa: "Eu queria aparecer de frente e bem vestido, exatamente por ter aparecido de costas no Cinema. [...] Eu planejei a capa toda. Eu quis tirar com aquele fundo (a parede é da minha casa), naquela cor que está lá. E eu trabalhei com o pintor, para misturar as tintas, para chegar no tom certo. E ficou um barato. E eu queria fotografar ali, queria com camisa daquela cor, queria que ficasse com aquela cor e tudo mais." (Caetano Veloso para a Revista Música, 1981).
Ensaio para a capa. Foto: Bob Wolfenson.
Ensaio para a capa. Foto: Bob Wolfenson.
Caetano no show 'Outras Palavras'.
Show Outras Palavras no Jornal do Brasil
Para ler: clique na imagem.
Lista de Músicas
Lado 1
1 - Outras Palavras
(Caetano Veloso)
Baixo: Dadi / Percussão: Bolão / Bateria: Vinicius Cantuária / Piano: Tomás Improta / Guitarra: Perinho Santana / Ovation: Caetano / Agogô: Caetano e Bolão / Coro: Marcia Ruiz, Maucha, Rosa Lobo e Eveline.
2 - Gema
(Caetano Veloso)
Guitarra: Perinho Santana / Ovation: Caetano / Tumbas: Vinicius Cantuária / Surdo: Bolão / Atabaque: Nei Martins / Baixo: Arnaldo Brandão (acorde final) / Piano: Tomás Improta (acorde final).
3 - Vera Gata
(Caetano Veloso)
Ovation: Caetano / Guitarras: Perinho Santana / Baixo: Arnaldo Brandão / Bateria: Vinicius Cantuária / Piano: Tomás Improta / Tumbas e triângulo: Bolão / Arranjo de metais: Perinho Santana / Trompetes: Hamilton e Formiga / Sax-tenor: Bijou / Sax-alto: Mauro Senise / Trombone: Ed Maciel / Arranjo de sopros: Perinho Santana.
4 - Lua e Estrela
(Vinicius Cantuária)
Ovation: Vinicius Cantuária / Piano acústico: Tomás Improta / Triângulo: Bolão / Guitarra: Perinho Santana / Participação: Vinicius Cantuária / Coro: Solange Rosa, Viviane Godoi, Soninha Burnier, Jussara Silveira e Susana Ribeiro.
5 - Sim / Não
(Bolão, Caetano Veloso)
Violão de aço: Bolão / Bateria: Vinicius Cantuária / Baixo: Arnaldo Brandão / Guitarra: Perinho Santana / Coro: Solange Rosa, Viviane Godoi, Jane Duboc, Soninha Burnier e Jussara Silveira.
6 - Nu Com A Minha Música
(Caetano Veloso)
Ovation (acústico): Caetano / Violão acústico: Perinho Santana / Baixo: Arnaldo Brandão/ Escaleta: Tomás Improta / Talk drums e caxixi: Vinicius Cantuária / Tumba e chequerê: Bolão / Temple block: Marcos Amma / Assovio: Caetano / Arranjo de cordas: Perinho Albuquerque.
Lado 2
1 - Rapte-me Camaleoa
(Caetano Veloso)
Baixo: Arnaldo Brandão / Violão acústico: Caetano / Craviola: Perinho Santana / Piano acústico: Tomás Improta / Bateria: Vinicius Cantuária / Congas: Bolão / Arranjo de cordas: Perinho Albuquerque.
2 - Dans Mon Ile
(M. Pon, H. Salvador)
Violão acústico: Caetano e Perinho Santana / Bongô: Marcio / Pauzinho: Bolão / Baixo: Arnaldo Brandão / Piano acústico: Tomás Improta / Arranjo de cordas: Perinho Albuquerque.
3 - Tem Que Ser Você
(Caetano Veloso)
Ovation: Caetano / Guitarra: Perinho Santana / Baixo: Arnaldo Brandão / Percussão: Bolão / Piano: Tomás Improta / Bateria: Vinicius Cantuária / Arranjo de cordas: Perinho Albuquerque.
4 - Blues
(Péricles Cavalcanti)
Violão: Péricles Cavalcanti
5 - Verdura
(Paulo Leminski)
Guitarra: Perinho Santana / Violão de aço: Caetano / Baixo: Arnaldo Brandão / Atabaque: Bolão / Tumba: Vinicius Cantuária / Piano acústico: Tomás Improta / Coro: Solange Rosa, Viviane Godoi, Susana Ribeiro, Jussara Silveira e Soninha Burnier / Palmas: Solange, Viviane, Jussara, Soninha, Susana, Bolão e Caetano.
6 - Quero Um Baby Seu
(Paulo Zdanowski, Luiz Carlos Siqueira)
Baixo: Arnaldo Brandão / Bateria: Vinicius Cantuária / Ovation: Caetano / Piano: Tomás Improta / Guitarras: Perinho Santana / Percussão (tumbas): Bolão / Vocal: Soninha Burnier / Solange Rosa / Viviane Godoi e Jane Duboc.
7 - Jeito de Corpo
(Caetano Veloso)
Bateria: Vinicius Cantuária / Guitarra: Perinho Santana / Baixo: Arnaldo Brandão / Ovation: Caetano / Percussão (tumba, agogô e ganzá): Bolão / Piano acústico: Tomás Improta / Surdo e tamborim: Nei Martins / Arranjo de metais: Tomás Improta / Sax-tenor e flauta: Zé Luis e Edmar Marinho / Trombone: Carlos Darci / Trompete: Barrosinho / Arranjo de sopros: Tomás Improta.
Vamos às Letras.
1 - Outras Palavras (Caetano Veloso)
Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca
Travo trava mãe e papai alma buena dicha louca
Neca desse sono de nunca jàmais nem never more
Sim dizer que sim pra Cilu pra Dedé pra Dadi e Dó
Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza
Outras palavras
Tudo seu azul tudo céu tudo azul e furtacor
Tudo meu amor tudo mel tudo amor e ouro e sol
Na televisão na palavra no átimo no chão
Quero essa mulher solamente pra mim mas muito mais
Rima pra que faz tanto mas tudo dor amor e gozo
Outras palavras
Nem vem que não tem vem que tem coração tamanho trem
Como na palavra palavra a palavra estou em mim
E fora de mim quando você parece que não dá
Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir
Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha
Outras palavras
Quase João Gil Ben muito bem mas barroco como eu
Cérebro maquina palavras sentidos corações
Hiperestesia Buarque voilà tu sais de cor
Tinjo-me romântico mas sou vadio computador
Só que sofri tanto que grita porém daqui pra a frente
Outras palavras
Parafins gatins alphaluz sexonhei la guerrapaz
Ouraxé palávora driz okê cris expacial
Projeitinho imanso ciumortevida vidavid
Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logun
Homenina nel paraís de felicidadania
Outras palavras
Comentário do autor: "O disco tem um repertório pouquinho mais irregular que os outros, mas, por exemplo, a canção Outras Palavras eu adoro, é uma das canções que já fiz que mais gosto. Acho magnífica, mas não diria que é a minha gravação mais linda. É bonita, está limpa, os meninos tocam bem, mas eu não tive tempo de ter uma concepção, "eu quero fazer", tipo Terra que é uma gravação magistral." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).
“Outras Palavras fiz num hotel em São Paulo e, depois de um determinado pedaço, peguei aqueles papéis de carta que tem nas mesinhas dos quartos e comecei a escrever. Fui escrevendo as estrofes já com a música e, por isso, Outras Palavras me dá sempre problemas pois, quando tenho de cantar em shows, esqueço sempre um pedaço”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).
2 - Gema (Caetano Veloso)
Brilhante, ê
De noite dentro da mata
Na escuridão luz exata
Vejo você
Divina, ê
Diamantina presença
Na solidão de quem pensa
Só em você
Esquecer, não
Revelação
Deixa eu ver
Pedra-clarão da floresta
Gema do olho da festa
Deixa eu saber
Meu amor
Dona da minha cabeça
Não, nunca desapareça
Do seu amor
Esquecer, não
Me perder, não
Estrela, ê
Na taça negra da selva
Gota de luz sobre a relva
Meu bem-querer
Lua-Sol ê
Centro do meu pensamento
Meu canto dentro do vento
Busca você
Esquecer, não
Esconder, não
Brilhante, ê
Comentário do autor: "Eu acho essa gravação lindíssima, acho que ficou uma gravação perfeita." (Caetano em entrevista para a Rádio Nacional, 1981).
Foto: Bob Wolfenson.
3 - Vera Gata (Caetano Veloso)
Era uma gata exata
Uma vera gata
Das que não tem dúvida
Dúvida
Éramos fogo puro
O amor total
Padrão futuro éramos
Éramos
Puro carinho e precisão
Eficiência, técnica e paixão
Clareza na expressão de cada sensação
Auto programáveis como dois robôs
Mas ninguém mais quente que nós
De que nós
E teve que ser rápida a transação
Pois já nos chamava o ônibus
Ônibus
Tivemos tudo, não faltou nada
E ainda madrugada nos saudou na estrada
Que ficou toda dourada e azul
Comentário do autor: "É totalmente autobiográfico. Conta a história de uma menina de São Paulo chamada Vera. Hoje ela é atriz, chama-se Vera Zimmermann." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
Foto: Biah Schmidt.
4 - Lua e Estrela (Vinicius Cantuária)
Menina do anel de lua e estrela
Raios de sol no /céu da cidade
Brilho da lua
Noite é bem tarde
Penso em você
Fico com saudade
Manhã chegando
Luzes morrendo
Nesse espelho que é nossa cidade
Quem é você?
Qual o seu nome
Conta pra mim
Diz como eu te encontro
Mas deixo ao destino
Deixo ao acaso
Quem sabe eu te encontro
De noite no Baixo
Brilho da lua...
Noite é bem tarde
Penso em você
Fico com saudade
Menina do anel de lua e estrela
Raios de sol no céu da cidade
Brilho da lua
Noite é bem tarde
Penso em você
Fico com saudade
Manhã chegando
Luzes morrendo
Nesse espelho que é nossa cidade
Quem é você?
Qual o seu nome
Conta pra mim
Diz como eu te encontro
Mas deixo ao destino
Deixo ao Seu Castro
Quem sabe eu te encontro
De noite no Baixo
Brilho da lua...
Noite é bem tarde
Penso em você
Fico com saudade
Comentário do autor: “Cheguei ao Arpoador, era umas seis e pouco da manhã, muito cedo. O público de Arpoador não vai tão cedo à praia. Mas foi um fato curioso, porque eu sentei e a uns quarenta metros de mim tinha uma menina sentada. Eu não a conhecia e ela não me conhecia. Ela me olhava e eu olhava para ela. Mas todo mundo que chegava à praia me conhecia e a conhecia. Então a distância entre mim e ela foi encurtando. As pessoas foram chegando mais ou menos, a gente se aproximou, se olhou. Aí teve uma hora que ela saiu de onde estava e chegou mais perto. Ficou ali conversando com amigos. Ninguém nos apresentou, mas eu sentia que tinha uma empatia rolando entre a gente. Ela se dirigiu ao mar. Quando foi mergulhar, eu vi claramente que ela tinha um anel. Aí deu aquele estalo. Sabe quando bate um raio, uma coisa assim. Isso eu conto hoje e talvez eu tenha até imaginado. Mas na hora eu vi. Bateu um raio, raio de sol, né? Consegui ver bem de perto que ela tinha um anel de lua e estrela. Como eu fui caminhando, voltei com a música na cabeça. Aí de noite, a gente ia pra onde? Pro Baixo, né? Quem sabe te encontro de noite no Baixo. A música foi toda sendo formada daquela história. Eu voltei, peguei o violão e a música saiu toda. Aí eu comecei a tocar com Caetano que adorava as minhas músicas. Mas eu nunca tinha mostrado Lua e Estrela. Não sei porquê. Até que um dia o Arnaldo falou: ‘Porra! Você nunca mostrou Lua e Estrela pro Caetano’. Aí o Caetano falou: ‘Lua e estrela, que nome lindo, mostra pra mim. Mostrei, ele adorou, e como estava começando a gravar o disco Outras Palavras, falou pra mim: ‘Vou gravar Lua e Estrela vamos’? Eu falei: ‘Claro, vamos’! E foi isso. Essa é a verdadeira história da música." (Vinicius Cantuária para Ruy Godinho. "Então Foi Assim?" Vol. 3. Abra Vidio, 2015).
5 - Sim / Não (Bolão, Caetano Veloso)
No badauê (badauê)
Gira menina, macumba, beleza, escravidão
No badauê (badauê)
Toda grandeza da vida no sim, não
No Zanzibar (Zanzibar)
Essa menina bonita botou amor em mim
No Zanzibar (Zanzibar)
Os orixás acenaram com o não/ sim
Afoxé gege nagô
Viva a princesa menina, uma estrela
Riqueza primeira de Salvador
No ylê, ayê (ylê ayê)
Uma menina fugindo beleza amor em vão
No ylê, ayê (ylê ayê)
Toda tristeza do mundo no não, não
No badauê (badauê)
Gira princesa, primeira beleza, amor em mim
No badauê (badauê)
Os orixás nos saudaram com o sim, sim
Afoxé gege nagô
Viva a princesa menina, uma estrela
Riqueza primeira de Salvador
Comentário de Caetano: "A gravação de Sim/Não, aquele reggae afoxé de Bolão, com letra minha, acho linda, o coro lindo, o violão de Bolão é um arraso, eu acho deslumbrante." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1981).
Foto: Bob Wolfenson.
6 - Nu Com A Minha Música (Caetano Veloso)
Penso em ficar quieto um pouquinho
Lá no meio do som
Peço salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom
Passo devagarinho o caminho
Que vai de tom a tom
Posso ficar pensando no que é bom
Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor
Nu com a minha música, afora isso somente amor
Vislumbro certas coisas de onde estou
Nu com meu violão, madrugada
Nesse quarto de hotel
Logo mais sai o ônibus pela estrada, embaixo do céu
O estado de São Paulo é bonito
Penso em você e eu
Cheio dessa esperança que Deus deu
Quando eu cantar pra turba de Araçatuba, verei você
Já em Barretos eu só via os operários do ABC
Quando chegar em Americana, não sei o que vai ser
Às vezes é solitário viver
Deixo fluir tranquilo
Naquilo tudo que não tem fim
Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim
Vaca, manacá, nuvem, saudade
Cana, café, capim
Coragem grande é poder dizer sim
Comentário do autor: "Eu estava no interior de São Paulo, viajando, e fiz mesmo nu, com meu violão, sozinho, num quarto de hotel de uma cidade do interior." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
““Caetano nem gosta especialmente dessa música - antes, resiste a ela, à frase “vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”, ao derradeiro verso, “coragem grande é poder dizer sim “. “Nem é tanto a ideia da trilha clara, é o fato de eu ter escrito isso, desse modo. E é claro que coragem grande é dizer sim. Isso é tão óbvio, tanta gente já escreveu isso, o Ulisses de James Joyce termina com sim, e o John Lennon sempre falou disso nas músicas dele, enfim… Bom, mas eu gravei mesmo. Nasceu assim, gravei assim.”” (Jornal do Brasil, 1981).
Caetano na Argentina, maio de 1981.
7 - Rapte-me Camaleoa (Caetano Veloso)
Rapte-me camaleoa
Adapte-me a uma cama boa
Capte-me uma mensagem à toa
De um quasar pulsando lôa
Interestelar canoa
Leitos perfeitos
Seus peitos direitos
Me olham assim
Fino menino me inclino
Pro lado do sim
Rapte-me
Adapte-me
Capte-me
It's up to me
Coração
Ser querer ser
Merecer ser
Um camaleão
Rapte-me camaleoa
Adapte-me ao seu
Ne me quitte pas
Comentário do autor: "Fiz para a Regina Casé, que numa peça do Asdrúbal se chamava Camaleoa. É bem feitinha a letra. E tem de interessante o verso "rapte-me, adapte-me, capte-me, it's up to me", que traz uma rima bilíngue." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
Foto: Biah Schmidt.
8 - Dans Mon Ile (M. Pon, H. Salvador)
Dans mon île
Ah comme on est bien
Dans mon île
On n'fait jamais rien
On se dore au soleil
Qui nous caresse
Et l'on paresse
Sans songer à demain
Dans mon île
Ah comme il fait doux
Bien tranquille
Près de ma doudou
Sous les grands cocotiers qui se balancent
En silence, nous rêvons de nous
Dans mon île
Un parfum d'amour
Se faufile
Dès la fin du jour
Elle accourt me tendant ses bras dociles
Douces et fragiles
Dans ses plus beaux atours
Ses yeux brillent
Et ses cheveux bruns
S'eparpillent
Sur le sable fin
Et nous jouons au jeu d'adam et eve
Jeu facile
Qu'ils nous ont appris
Car mon île c'est le paradis
Comentário de Caetano: "Eu adoro essa música há anos. O Roberto Menescal adora essa música e é uma coisa que a gente sempre comentava, e eu sempre adorei Henri Salvador. Sempre. Desde que vi aquele filme "Europa da Noite", em '60, '61, sei lá. E quando estive na França até encontrei Henri Salvador por acaso. Eu dei uma entrevista na televisão, e ele, por acaso, estava dando uma entrevista no mesmo programa. Falei e ele perguntou do Rio de Janeiro, por que ele já esteve no Brasil, morou um tempo no Rio." (Caetano Veloso para a Revista Música, 1981).
Foto: Biah Schmidt.
9 - Tem Que Ser Você (Caetano Veloso)
Tem que ser você
Tem que ser mulher
Tudo no lugar certo
Tem que ser você
Tem que ser assim
Gosto do prazer
Tudo tem seu momento
Tem que ser você
Tem que ser agora
Quando Deus quiser
Todo tem seu segredo
Tem que ser você
Pra mim tem que ser você
Tantas outras mulheres
E só uma, é quase assim
Tão pra mim como você é
E homens, o amor-mentira pode ser tão bonito
Mas o céu do meu sexo
Tem que ser você
Tem que ser você
Tem que ser a flor
Tudo tem sua fonte
Tem que ser você
Tem que ser amor
Tem que ser total
Tudo tem sua estrela
Tem que ser você
Tem que receber minha afirmação
Tudo no lugar certo
Tem que ser mulher
Pra mim tem que ser você
Comentário do autor: "Amor é amor, sempre, entre homem e mulher, homem e homem, mulher e mulher. Quando eu fiz Cajuína, disseram que era um hino gay, depois que gravei Tem Que Ser Você, Tomás Improta me disse que, com essa música, eu afinal tinha definido minha sexualidade (Tem que ser você / tem que ser mulher / tudo no lugar certo). Eu não acho. Essas coisas são sempre de momento, nunca tem definições definitivas. Agora, eu tenho mesmo uma relação muito especial com a mulher. Para mim, é como se a mulher possuísse o segredo no desejo. Eu adoro mulher." (Caetano Veloso em entrevista à Revista Capricho, 1981).
Foto: Bob Wolfenson.
10 - Blues (Péricles Cavalcanti)
Tem muito azul em torno dele
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
Os pés de lótus de Krishna
Tem muito azul em torno dela
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
As mãos de rosa de Iemanjá
O pé da Índia a mão da África
O pé no céu a mão no mar
Foto: Bob Wolfenson.
11 - Verdura (Paulo Leminski)
De repente
Me lembro do verde
A cor verde
A mais verde que existe
A cor mais alegre
A cor mais triste
O verde que vestes
O verde que vestiste
O dia em que te vi
O dia em que me viste
De repente
Vendi meus filhos
A uma família americana
Eles têm carro
Eles têm grana
Eles têm casa
A grama é bacana
Só assim eles podem voltar
E pegar um sol em Copacabana
Comentário de Caetano: "Os poemas do Leminski são muito sintéticos, muito concisos, muito rápidos, muito inspirados. Ele é um sujeito gozado. É um personagem muito único, no panorama da curtição de literatura no Brasil. Eu acho um barato. Leminski tem um clima/ mistura de concretismo com beatnik. Que é muito legal. "Verdura" é um sonho. É genial. É um haikai da formação cultural brasileira. Deve ser instigante para os poetas do Brasil o aparecimento desses novos poetas todos. Leminski é um dos mais incríveis que apareceram." (Caetano Veloso. Sinopse do livro "Caprichos e Relaxos" de Paulo Leminski. Editora Brasiliense, 1983).
Foto: Thereza Eugênia.
12 - Quero Um Baby Seu (Paulo Zdanowski, Luiz Carlos Siqueira)
Ontem à noite
Andando achamos uma estrela do mar
Estava na areia
Como um aviso que aconteceu
Apaixonei-me difícil acreditar
Sem preconceitos sempre eu vou te amar
Sempre sempre
Sempre sempre
Eu vou
Como num sonho
Eu encontrei você perfeita pra mim
Em minha mente reina um astral lindo pra te amar
Oh! Como eu quero ser só de você
Vou completá-la
Quero um baby seu
Sempre sempre
Sempre sempre
Eu vou
Comentário de Caetano: “Uma música funk, feita por gente que sabe fazer música funk.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1981).
Foto: Bob Wolfenson.
13 - Jeito de Corpo (Caetano Veloso)
Eu tô fazendo saber
Vou saber fazer tudo de que eu sou a fins
Logo eu cri que não crer era o vero crer
Hoje oro sobre patins
Sampa na Boca do Rio
O meu projeto Brasil
Perigas perder você
Mas mesmo na deprê
Chama-se um Gilberto Gil
Bode não dá pra entender
Torna a repetir
Transcende o marco dois mil
Barco desvela esse mar
Delta desvenda esse ar
Não me digam que eu estou louco
É só um jeito de corpo
Não precisa ninguém me acompanhar
Eu sou Renato Aragão, santo trapalhão
Eu sou Muçum, sou Dedé
Sou Zacarias, carinho
Pássaro no ninho
Qual tu me vê na tevê
Falta aprender a mentir
Entro até numas por ti
Minha identificação, registro geral
Carece de revisão
Cara, careta, dedão
Isso não é legal em frase de transição
Sou celacanto do mar
Adolescendo solar
Não pensem que é um papo torto
É só um jeito de corpo
Não precisa ninguém me acompanhar
Comentário do autor: "Jeito de corpo é uma curtição com o linguajar paulistano e com o modo de eu sentir as coisas hoje, tanto da minha vida pessoal como do que eu vejo do Brasil, do mundo, das coisas e das pessoas.” (Caetano em entrevista para a Rádio Nacional, 1981).
Fotos: Outras Palavras em São Paulo (1981)
por Biah Schmidt.
Ficha Técnica
Produzido por Caetano Veloso
Coordenação de Produção: Márcia Alvarez
Técnicos de Gravação: Luiz Claudio Coutinho e João Moreira
Auxiliares de Estúdio: Alberto Cebolinha e Julinho
Mixagem e Montagem: Perinho Albuquerque e Jairo Gualberto
Corte: Ivan Lisnik
Arregimentação e Cópias: Clovis Mello
Capa: Caetano Veloso e Aldo Luiz
Arte: Mariano Martins
Foto da Capa: Bob Wolfenson
Foto da Contracapa: Januário Garcia
Gravado em Dezembro de 80