1984 - Velô - Caetano Veloso
Velô (1984) é fruto da parceria de Caetano Veloso com a Banda Nova após o final da Outra Banda da Terra. Com ritmos rápidos e letras intensas, Velô significou o direcionamento da arte de Caetano para o pop rock dos anos 80: "houve no Brasil um súbito fortalecimento do rock e eu me sinto identificado com esse período." A nova sonoridade do álbum "pré 64 pós 84" mostrou um grupo coeso, mais alinhado à concepção de trabalho, ao contrário dos discos anteriores, onde predominavam o lazer e o prazer. O disco só foi lançado depois da turnê, algo incomum à época: o desejo de Caetano era experimentar um show com canções desconhecidas e gravar tendo as músicas mais bem tocadas. Tem a incansavelmente atual Podres Poderes, seguida da poesia concreta em Pulsar, de Augusto de Campos. Nine Out Of Ten foi finalmente cantada em reggae e Comeu já era conhecida na voz de Erasmo Carlos. O Quereres é obra-prima e Língua, um hino à língua portuguesa que traz referências, por exemplo, a Fernando Pessoa (minha pátria é minha língua), Castro Alves (à mancheia), Olavo Bilac (flor do Lácio), além de Luís de Camões, Guimarães Rosa, Chico Buarque e Arrigo Barnabé; reconduz Elza Soares para a cena popular ao revelar o rap escondido num velho samba.
Caetano: "Foi muito falado. Foi até escolhido por uma lista dos melhores da década. O Homem Velho é a mais bonita. Tem Língua e Podres Poderes. Quereres é também muito bonito." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).
"Velô é um espetáculo diferente de tudo que apresentei até hoje. A receptividade do público tem sido das melhores. Reconheço que deve ser meio chato pro público não ouvir suas canções conhecidas. Mas mesmo assım, estamos conseguindo estabelecer uma relação divertıda. Meus outros shows eram mais de pura espontaneidade. Velô, ao contrário, pretende ser um espetáculo mais caprichado. O forte do show não é a roupagem, é o som. Apesar de ser uma proposta de trabalho desvinculada das FMs, é ligada nelas porque a sonoridade da banda se identifica com o que se ouve nas rádios. Como no início de qualquer projeto havia um clima de reconhecimento do terreno. Depois com a continuação dos ensaios foi se criando um entrosamento fantástico. Hoje nossa relação está hiperamorosa. Vou fazer um disco bem cuidado ao nível do que merece a música popular brasileira. Não fiz um show para obter sucesso fácil. Esse é um espetáculo que dá trabalho à plateia. Com tudo isso, a casa tem estado cheia e minha relação com o público tem sido muito rica. Não é pra ficar hiperfeliz?" (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1984).
“Eu quero dar a impressão de que estou dizendo alguma coisa. É verdade. Essa impressão é que é importante. É toda uma vontade de controle que tem nesse espetáculo, em oposição ao que eu fazia antes, que era descontrole total. A presença de Arrigo Barnabé, que trouxe outras responsabilidades para todos nós, o disco Ciclo, de Bethânia, que me tocou demais. A música de consumo, o rádio FM, o modo como ela estava bem feita, forte, o controle dos estúdios, dessas tecnologias, Lincoln Olivetti, o disco novo de Marina, que é genial. O fato de eu ter voltado a ouvir a música dos brancos, depois de uma década em que só os pretos e o reggae me interessaram. Desde os punks, que eu acho simpáticos, até tudo isso, new wave, os ingleses, tudo isso está com uma vitalidade enorme agora”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1984).
“Esse show é meio “Gal Tropical” no sentido de reformulação. Gal andava descalça e botou o sapato, então, achei que ficou parecido demais com o que eu já acho. É mais posado, atualizado e eu gosto de estar up to date, aggiornato. Gosto de moda porque dá alegria, acho lindo as pessoas usarem as coisas de acordo com o momento, com a época, gosto disso… E nesse show sabia perfeitamente que queria uma coisa sem aquele tom casual das roupas que usava fora e dentro do palco. Agora tenho uma referência com a roupa habillé, roupa de noite, mais formal. É engraçado porque ao mesmo tempo tem um pique de clown. Mas quando tiro a jaqueta e fico só com o colete sobre a pele, o Tony que toca guitarra comigo falou que eu parecia uma coelhinha da Playboy. Sabe de uma coisa marcante? Antes eu tinha uma fascinação orientalística romântica e agora é uma coisa bem ocidentalista. Isso, acredito que está de acordo com a vanguarda da moda internacional e do mundo do rock. E minha roupa reflete de certa forma a trajetória de David Bowie, que é a volta formal ao palco. Mas tem o lance sensual das costas de fora… Me sinto bem com essa roupa tão ambígua; é uma maneira de usar um estilo que tem a linguagem ao mesmo tempo comprometido e ao mesmo tempo livre. É uma posição de ver o tempo”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1984).
"Minha criação é sempre uma coisa que continua, tem continuidade. Num momento, as coisas ganham uma definição mais alta. Varias coisas concorrem pra isso. Esse espetáculo tem uma marca mais forte de unidade, as canções são novas, a banda é de natureza diferente. Tem um som menos solto, menos frouxo, menos relaxado. Sob controle. Havia mais movimentação cênica no Uns. Naquele trabalho, eu ainda usava uns elementos de cena, como o véu. Agora, é mais despojado." (Caetano Veloso para o Correio Braziliense, 1984).
"Não gosto tanto de Velô, gosto mais de Caetano. Aliás, quando eu acabei de fazer o Velô, já sabia que gostava mais de Uns, que é o disco imediatamente anterior, o que não é uma coisa muito frequente de acontecer com um artista. Tem uma porção de coisas no Velô que, para mim, pesam. Infelizmente, não sou suficientemente violento para romper coisas que eu vejo. Todo disco meu é sujo. Não sou violento. A minha visão é mais radical, mas a minha ação é muito comprometida." (Caetano Veloso. Songbook Caetano Veloso. Produzido por Almir Chediak, 1987).
"Ricardo Cristaldi co-produziu, porque ele era o tecladista da banda e dominava muito bem essa coisa eletrônica. Ele gostava de brincar com os botões da mesa de som, então eu fiz com ele... porque aí já era uma coisa mais orientada e bem produzida. O som ficou diferente das coisas da Outra Banda da Terra; o som é outro, é mais controlado... mas é muito de época. São os timbres daquele tempo. Eu gosto muito do repertório e dos arranjos". (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).
"Velô foi uma mudança. Eu queria o disco mais produzido. Mudei de banda, mas a ideia foi do Vinicius Cantuária: "vamos acabar com essa banda. Já deu o que tinha que dar e eu quero fazer um negócio solo". Aí acabamos com A Outra Banda da Terra e eu tive uma ideia de fazer primeiro o show e depois da excursão inteira gravar o disco, porque a música fica muito mais tocada junto depois de fazer show. Mas não resultou tão bem o disco assim por causa disso. Foi bom ter o show com músicas inéditas, era incrível porque o show saiu com o repertório todo inédito. O repertorio de Velô foi primeiro apresentado em show: Podres Poderes, O Quereres... É bem anos 80, pop rock anos 80." (Caetano Veloso em entrevista dos seus 70 anos, 2012).
"Tem uma sonoridade francesa que me agrada e pode ser uma forma econômica de se dizer velocidade." (Caetano Veloso sobre o título do disco para a Folha de S.Paulo, 1984).
"Esse disco traz a canção Podres
poderes, que tem muito a ver com o rock'n'roll, cuja letra tem muito a ver
com temas nos quais insisti ao longo desse depoimento, ligados ao desejo de que
as minhas ações tenham uma função poético-política. E acho que tem, pelo
menos na tentativa de dificultar a vida daqueles que trabalham para que não se
dê a emancipação do povo brasileiro. Podres poderes é uma canção de
explicitação do imaginário que está por trás desse desejo – uma crítica à nossa
incompetência e à teimosia em manter essa incompetência como um escudo contra a
responsabilidade. É o meu tema. Além do esforço para furar esse cerco que faz
com que o Brasil, até hoje, apesar de tudo pelo que passamos, ainda tenha essa
esmagadora maioria de pessoas sem acesso aos bens materiais e culturais. Quando
falo em emancipação, me refiro também à idéia da liberdade e da igualdade. A
busca da instauração de uma sociedade onde haja liberdade entre os homens, tem
justificado muitos desrespeitos à liberdade dos homens. Os países que se
dedicaram a "impor" uma idéia de igualdade terminaram por
desrespeitar as liberdades. Esse é um problema para o qual temos que estar
muito atentos, perguntando o que é mais importante e também o que é mais
factível. Tive muitos problemas com a esquerda por conta desta discussão da
questão da liberdade nos países comunistas. Sempre achei e acho que as pessoas
são muito benevolentes com este tema. Sempre pensei assim, desde Salvador,
quando ainda nem fazia música, nem tinha certeza do que ia fazer na vida. As
ditaduras de esquerda não foram nem um pouco melhores com os artistas ou
pensadores que lhe pareceram discordantes, do que as ditaduras de direita. Não
posso deixar de lembrar de quando, na Europa, eu cantava Apesar de você, do
Chico, como se fosse um grito de guerra. Chorava e cantava, sendo consolado
pela Dedé, como se fosse uma oração, com ódio e uma enorme vontade de me vingar
daquela gente que conduzia a ditadura no Brasil e que me prendeu. Mas não posso
perder de vista o fato de que na União Soviética, um artista que tivesse tido
confrontos com o poder, teria tido problemas talvez até piores do que tivemos
aqui. Nenhuma ditadura presta. E minhas canções políticas - Podres poderes
entre elas - foram feitas por um homem que jamais perdeu essa perspectiva. Que
não está interessado em esconder o sol com uma peneira." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).
"O que eu tomei como base foi o clima de duas canções do Uns que eu adoro: Eclipse Oculto e Peter Gast. Essas duas canções são as canções mais modernas do Uns, juntamente com Uns, que é uma canção que eu adoro também, mas sobretudo Eclipse Oculto e Peter Gast, nessa ordem, porque Eclipse Oculto é a canção que eu mais gosto do Uns e é uma das minhas canções que eu mais gosto de sempre. Eu disse assim, se eu fizer as coisas como saiu Eclipse Oculto, eu vou fazer um repertório como eu quero. Tanto que são as duas canções que entraram no show. Mas elas que me impulsionaram para o estilo das canções que estão no show e no disco [...]. Eu faria uma coisa mais estruturada e organizada, mais nítida e também diferente de algum modo, ainda que A Outra Banda continuasse comigo. Mas o fato de A Outra Banda ter saído ainda radicalizou mais essa transformação. Então, a coisa que mais mudou mesmo o ambiente em que eu compus as canções, o ambiente mental em que eu compus essas canções novas foi o fato de ter mudado objetivamente a minha situação profissional [...]. De uma certa forma eu queria também falar de dificuldades. As canções, já desde antes, eram canções que eu queria mais críticas e mais sérias, sob um certo ponto de vista. Eu fiz umas canções antes do verão na Bahia e outras depois que eu voltei do verão. Mas todas foram feitas não durante as férias de verão realmente. Nas férias de verão na Bahia, aliás eu fiz uma coisa diferente do que faço nos outros anos, eu bebia muito, dormia tarde, não fiz música nenhuma, não fiz nada, deixei tudo pra fazer quando eu voltasse. A canção Sorvete eu fiz a música e metade da letra antes do verão, quando eu fui pras férias na Bahia, todo dia eu dizia: "amanhã eu vou terminar pelo menos essa música", mas nem isso eu fiz, não fazia nada. Quando eu voltei, eu pensei: "como é que eu quero fazer um trabalho todo novo se eu nem fiz o repertório que eu imaginei mais ou menos?". Aí peguei e fiz novas canções. (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).
Marcelo Costa, Ricardo Cristaldi, Marçalzinho, Caetano, Tavinho Fialho, Zé Luis e Toni Costa.
Estreia do show Velô no Palace, Rio. Foto: Acervo Marcelo Costa.
A transação: A Outra Banda da Terra - Banda Nova
"Entre Outras Palavras e Uns subiu o prestigio de A Outra Banda, os músicos subiram individualmente, cada um deles começando um trabalho individual. O pessoal começou a ver que era um som, assim, diferente de todos os outros sons que eram produzidos pelos grupos no Brasil, porque era especial, particular que só podia ser aquela, entendeu? Que tinha um jeito de ser próprio, uma liberdade, transpirava essa coisa de afeto e de individualidade, nada tecno-pop, totalmente espontâneo. Mas acontece que essa banda, os membros dessa banda, depois da gente trabalhar muitos anos juntos (uns seis anos), alguns deles já estavam começando um trabalho individual, como o Vinicius Cantuária, que tá com um trabalho individual super conhecido, com sucesso nas paradas; o Arnaldo Brandão com o Brilho, o Bolão que teve um sucesso nas paradas também; eles estavam querendo trabalhar e sobretudo o Vinicius Cantuária, ele queria que eu mudasse o som, que eu fizesse a experiência de fazer um som tecnicamente mais amarrado. E pra isso era preciso que eu combinasse com músicos de outro tipo, que eu escolhesse, inclusive obedecendo as certas indicações do Vinicius Cantuária e do Arnaldo Brandão. Quer dizer, de certa forma a Banda Nova é também um dos aspectos do som de A Outra Banda da Terra. Não é uma coisa que se contrapõe a ela. O resultado é realmente empolgante, porque a gente no final de contas terminou reunindo duas coisas: uma que é a eficiência técnica, a competência musical e o tipo de padrão do mercado de música, que não era o estilo de A Outra Banda da Terra, com uma particularidade muito própria de originalidade que A Outra Banda da Terra tinha. Então a gente conseguiu uma coisa realmente muito grande. Sob esse ponto de vista eu acho muito vitoriosa essa transação. Agora, tem umas coisas que eu tenho saudade. Na época de A Outra Banda da Terra nunca sentia que era trabalho. E agora as vezes eu tenho que sentir. Eu acho bom também, porque eu fico aprendendo novas dimensões da coisa.
Com A Outra Banda da Terra a gente vinha pro estúdio, assim, o Bolão com cinco namoradas e bebida e conversa, tocava de qualquer jeito, ficava se abraçando, se beijando, cantava, uma história, uma coisa, tudo assim... botando as exigências assim meio de lado. Ficava assim tudo gostoso, daquele jeito bem humano, bem pessoal, mas a gente nunca se empenhava em dizer assim: "vamos trabalhar com disciplina pra isso sair limpo, certo". Já a Banda Nova é tudo assim bem disciplina pra sair tudo limpo, certo, exigência [...] O trabalho é feito com alegria na maioria das vezes mas é com o sentido de trabalho. E no tempo de A Outra Banda da Terra mesmo o trabalho não era feito como trabalho. Mas eu acho também que a própria temática das canções leva a isso porque no tempo de A Outra Banda da Terra, apesar de algumas canções serem de queixa e reflexão, mas de todo modo a postura dominante era a postura do prazer, a postura assim... sei lá, da entrega ao prazer, ao desejo e não ao principio de realidade ao trabalho e ao dever, não tinha quase nada disso. E agora tem. O espírito critico está muito mais presente nas letras e um certo tom mais assim de... mais parecido com o tom dos homem adulto, maduro. Enquanto que o tom anterior era muito mais adolescente e mais, enfim, mais juvenil, também mais feminino, sob esse ponto de vista, mais assim, sei lá, doce." (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).
Texto do filósofo Heidegger, citado por Caetano Veloso no início do show Velô:
“Igualmente incerto permanece se a civilização mundial será em breve subitamente destruída ou se se cristalizará em uma longa duração que não resida em algo permanente, mas que se instale, muito ao contrário, em uma mudança contínua em que o novo é substituído pelo mais novo”.
Caetano: “Esse texto apareceu por acaso, um amigo me deu na Bahia, no verão, dizendo que não estava entendendo nada. É um texto difícil, mas de repente aparece essa frase assim de uma clareza cristalina e que tem muito a ver com as coisas que eu penso, e com a ideia do show”. (Jornal O Globo, 1984).
Outro texto falado no show era do escritor austríaco Robert Musil que reflete sobre as diferentes ilusões de profundidade de charcos e oceanos: “adoro esse escritor, sempre lembrava dessa frase, citava algumas vezes, mas tive que quase reler o livro todo, que é um romance em três volumes chamado “O homem sem qualidades” para encontrar a citação correta”.
Fotos: Gilda Midani.
Entrevista para o Correio Braziliense (15 de julho de 1985)
Para ler: clique na imagem.
Banda Nova
Ricardo Cristaldi - Teclados
Zé Luís - Sax e flauta
Tavinho Fialho - Baixo
Toni Costa - Guitarra
Marçal - Percussão
Marcelo Costa - Bateria
Lista de Músicas
Lado 1
1 - Podres Poderes
(Caetano Veloso)
2 - Pulsar
(Caetano Veloso, Augusto de Campos)
3 - Nine Out Of Ten
(Caetano Veloso)
4 - O Homem Velho
(Caetano Veloso)
5 - Comeu
(Caetano Veloso)
6 - Vivendo em Paz
(Tuzé Abreu)
Lado 2
1 - O Quereres
(Caetano Veloso)
2 - Grafitti
(Caetano Veloso, Antônio Cícero, Wally Salomão)
3 - Sorvete
(Caetano Veloso)
4 - Shy Moon - Participação Especial: Ritchie
(Caetano Veloso)
5 - Língua - Participação Especial: Elza Soares - a Violeta Gervaiseau
(Caetano Veloso)
Vamos às Letras.
1 - Podres Poderes (Caetano Veloso)
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais
Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais
Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da américa católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será, será que será, que será, que será
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos?
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval
Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau
Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos gerais?
Será que apenas os hermetismos Pascais
Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais
Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais
Comentário do autor: "Esse disco traz a canção Podres Poderes, que tem muito a ver com o rock'n'roll, cuja letra tem muito a ver com os temas nos quais insisti ao longo desse depoimento, ligados ao desejo de que as minhas ações tenham uma função poético-política. E acho que tem, pelo menos na tentativa de dificultar a vida daqueles que trabalham para que não se dê a emancipação do povo brasileiro. Podres Poderes é uma canção de explicitação do imaginário que está por trás desse desejo - uma crítica à nossa incompetência e à teimosia em manter essa incompetência como um escudo contra a responsabilidade. É o meu tema. Além do esforço para furar esse cerco que faz com que o Brasil, até hoje, apesar de tudo pelo que passamos, ainda tenha essa esmagadora maioria de pessoas sem acesso aos bens materiais e culturais." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).
Foto: Dario Zalis.
2 - Pulsar (Caetano Veloso, Augusto de Campos)
Comentário de Caetano: “Pensei muito menos o Pulsar do que dias dias dias. Na verdade tomei o poema como uma partitura simples e li essa partitura. Fiz em
tão pouco tempo que fiquei desconfiado de que talvez ali não houvesse nada. Alguns ouvintes cultos tiveram de
fato a impressão de que havia ali pouco trabalho e pouco pensamento. No entanto, embora por muito tempo eu
julgasse que o que fiz com dias dias dias fosse mais rico, a princípio aceitei meu Pulsar por encontrar nele
uma beleza cujo mecanismo eu não entendia conscientemente. Depois me apaixonei pela peça. Por isso a repeti
tanto e em tão variadas versões. Não só ela é uma canção popular e, ao mesmo tempo, uma pequena obra
experimental (a menção à minha Não Identificado¹ cai bem ali, mas não é necessária para fazer a ponte com a
música popular, como fora o caso de Volta em dias dias dias): quando a percussão aguda que surge a cada
estrela do texto, o "o" cantado no dó grave, o "e" cantado uma nona acima e o surdo que soa a cada lua são todos
emitidos ao mesmo tempo (na coincidência de "eco" e "oco") – e isso precede a descida de piano para pianíssimo
das duas palavras finais ("escuro esquece") – sinto que o tratamento singelo que esse poema magnífico recebeu
de mim não o desmerece. O que não é pouco.” (Depoimento de Caetano Veloso. Livro: Sobre Augusto de Campos. Organizado por Flora Süssekind e Júlio Castañon. Fundação Casa Rui Barbosa, 2004). Nota 1: Na primeira versão do poema, Augusto citava Caetano no verso “como um objeto não identificado”, inserido entre “abra a
janela e veja” e “o pulsar quase mudo”.
3 - Nine out of ten (Caetano Veloso)
Walk down Portobello road to the sound of reggae
I'm alive
The age of gold, yes the age of old
The age of gold
The age of music is past
I hear them talk as I walk yes I hear them talk
I hear they say
"Expect the final blast"
I walk down Portobello road to the sound of reggae
I'm alive
I'm alive and vivo muito vivo
Feel the sound of music banging in my belly
Know that one day I must die
I'm alive vivo muito vivo
In the Electric Cinema or on the telly
Nine out of ten films stars make me cry
Comentário do autor: "A única canção que compus em inglês de que realmente gosto." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).
4 - O Homem Velho (Caetano Veloso)
O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol
A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas
Luz fria, seus cabelos têm tristeza de neon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom
Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal
Comentário do autor: "À memória de meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos, mas aos 20 fez uma canção lindíssima sobre o tema." (Caetano Veloso no encarte do disco Velô, 1984).
"Essa música foi um modo de pensar a coisa da velhice naquela altura. Lembro que dediquei ao meu pai e ao Mick Jagger (risos). Acho que vale essa frase. É poética, né? Deixa vida e morte para trás porque fica acima dessa questão de 'vai morrer não vai morrer', 'a vida é finita não é finita'. Hoje, sinto diferente. Tinha muito medo de morrer. Não tenho vontade nenhuma de morrer, quase nenhuma... Mas, hoje, não tenho aquele medo de morrer de quando era moço. Quando fiz 'O homem velho', ainda tinha mais medo que tenho hoje. É uma coisa meio 'a vida que você tem, que está tendo, vale totalmente ali". Não depende de ter sido, de vir a ser afirmada ou destruída. Era isso que queria dizer com esse verso. Acho que ainda vivencio isso". (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2021).
5 - Comeu (Caetano Veloso)
Ela comeu meu coração
Trincou
Mordeu
Mastigou
Engoliu
Comeu
O meu
Ela comeu meu coração
Mascou
Moeu
Triturou
Deglutiu
Comeu
O meu
Ela comeu meu coraçãozinho de galinha num xinxim
Ai de mim
Ela comeu meu coraçãozão de leão naquele sonho medonho
E ainda me disse que é assim
Que se faz
Um grande poeta
Uma loura tem que comer seu coração
Não
Eu só quero ser um campeão da canção
Um ídolo, um pateta, um mito da multidão
Mas ela não entendeu minha intenção
Tragou
Sorveu
Degustou
Ingeriu
Comeu
O meu
Comentário do autor: "Comeu eu não queria incluir, porque achei que não iria dar e era uma canção que me interessava menos. Mas depois eu achei que ficou bonita a gravação e na verdade eu gosto da canção, mas não sei. Se tivesse que tirar uma, eu tiraria essa." (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).
"Sua história começa com um soneto de Dante Alighieri, em que o poeta narra um sonho em que a menina que ele amava comia seu coração. Durante as férias na Bahia, Caetano teve um sonho semelhante. No dia seguinte, na festa de aniversário de um amigo, comendo xinxim de galinha, uma menina pegou um coração e lhe disse: "vou comer seu coração". E assim surgiu: "ela comeu meu coração trincou/mordeu/mastigou/engoliu/comeu/ o meu..." e mais adiante: "eu só quero ser um campeão da canção/um ídolo/um pateta, um mito da multidão". “Que melhor exemplo de um grande poeta do que Dante? E minha música é uma musiquinha. Um comer cômico”, esclarece Caetano." (Jornal do Brasil, 1984)
6 - Vivendo em Paz (Tuzé Abreu)
Quem se salva nessa brasa
Quem acende um fogo novo
Cruza a crise, colhe a calma
Alegra a alma desse povo
Vive em paz e harmonia
Abre a porta da alegria
Amor, meu amor
Minha vida
Meu sonho, meu caso
Te amo, te adoro
Contigo eu me caso
Agora aqui fora
Ou dentro de nós
Na dança, na lança, na trança,
Trocando carícias,
Cantando ou calados
Curtindo delícias,
Querendo, sabendo,
Vivendo em paz
7 - O Quereres (Caetano Veloso)
Onde queres revólver sou coqueiro
E onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo
E onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada nada falta
E onde voas bem alta eu sou o chão
E onde pisas o chão minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
Onde vês eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo eu sou o irmão
E onde queres cowboy eu sou chinês
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor bruta flor
Onde queres o ato eu sou o espírito
E onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido sou herói
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério eu sou a luz
Onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim
Comentário do autor: "A estrutura é tirada de cordel. Mas também tem um pouco de "It ain't me, babe", de Bob Dylan, que diz: "it ain't me you're lookin' for, babe". Lá é diferente, mas alguma coisa em "O Quereres" lembra esse tema, do homem que fala para a mulher: "eu não estou onde você quer"". (Caetano Veloso. Sobre As Letras. Companhia das Letras, 2003).
"Logo que a completei depois de voltar ao Rio, comecei a ensaiar. Gostei muito do resultado final. Adorei, por exemplo, o jeito como se armou o contrabaixo. Assim ela ficou sendo minha música predileta." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1984).
"O Quereres eu fiz assim de uma rajada e é a que eu mais gosto de todas. Eu fico emocionado ainda hoje, já fiz uma porção de vezes, toda vez que eu canto fico emocionado. Pra gravar, eu fiquei emocionado, eu gravei de uma vez. Cheguei no estúdio pra botar voz no Quereres e eles tinham levantado o playback pra eu botar a voz em cima, já estava tudo pronto. Entrei e disse assim: "O Quereres está aí?" - "Tá" - "Solta". Ele experimentou como estava a minha voz e disse "Vou soltar uma vez". Eu disse: "pode soltar gravando". E cantei. Quer dizer, eu entrei no estúdio e em três minutos estava gravada a canção. Eu cantei do princípio ao fim e é a gravação que está no disco. Direto, porque eu adoro ela. Essa música eu acho linda." (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).
8 - Grafitti (Caetano Veloso, Antônio Cícero, Wally Salomão)
Jogo rápido, língua ligeira, olhos arregalados
Passam o meu e o seu nomes ligados
Por uma seta de Cupido, filho de Afrodite
O nosso amor é um coração colossal de grafitti
Nos flancos de um trem de metrô
A nossa carne é toda feita de flama e de fama
O rumor do nosso caso de amor
Não se confina a boatos, bares e boates
Conquista as estações, incendeia a praça escarlate
Inflama o aconchego dos lares
Todos os satélites se viram pelo mundo afora
Para transmitir o nosso som, a nossa luz, nossa hora
E nosso beijo que sempre começa na boca e só acaba na poça
Video Clip Futurista
Porque o mundo, ele é assim, ele é nossa conquista
Andy Warhol mil vezes na TV disse:
- "No gossips, Miss"
Darling, querida
Vê se te toca
Leva tua vida sem fuxico nem fofoca
9 - Sorvete (Caetano Veloso)
No que ela fez isso comigo
Era nunca mais ser seu amigo
Nem inimigo
Nunca mais namorado
Apaixonado
E eu e eu e eu sou
No que ela não quis o meu risco
Era soprar do olho esse cisco
Que eu já nem pisco
Não dar mais energia
Minha alegria
E eu e eu e eu dou
Feras lutam dentro da noite-normal
Todos os insetos, os do belo e os do mal
Anjos e demônios
O amor tomava conta de mim
Ela loura e negra, querubim e animal
Sobre os monstros da paixão, controle total
Burra, sábia, deusa, mulher, menino e mandarim
Mas ela não quis meu sorvete
Por que gravá-la em vídeocassete
Jogar confete
Franquear minha guia
Ir à Bahia
E eu e eu e eu vou
Comentário do autor: "A letra do Sorvete - que ficou batizada de Sorvete porque não tinha nome - eu não tinha terminado a letra e não tinha a palavra 'sorvete' no meio nem nada, eu dizia "aquela sem nome" e os meninos botaram o nome Sorvete, porque tem a história de um sorvete sem nome. E a gente começou a chamar ela assim. Foi a última que eu completei a letra, botei a palavra 'sorvete', disse: "vou botar, vai ficar Sorvete mesmo, vou arranjar um jeito de botar 'sorvete'. De modo que essa música começou a ser composta no início do repertório e terminou no final de tudo. E é uma canção tola aparentemente, quer dizer, não é tão tola, é bonita à beça, mas é assim uma canção boba." (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).
Marcelo Costa e Caetano Veloso.
10 - Shy Moon (Caetano Veloso) - Part. Especial: Ritchie
Shy Moon
Hiding in the haze
I can see your white face
Hope you can hear my tune
Shy Moon
Why didn't you stop her
Don't you know I suffer
And you'll watch me cry soon
Shy Moon
Glow through the pollution
Find me a solution
I'll wait on the high dune
Shy Moon
Comentário do autor: "Uma surpresa igual a essa eu acho que não tem no disco não, de eu ter feito uma coisa que eu não esperava, como o fato de ter feito essa canção em inglês. Porque eu tinha realmente me prometido nunca mais fazer nenhuma canção em inglês. Mas aí eu fiz essa em Salvador não profissionalmente. Não foi uma canção que eu fiz pra uso profissional. Eu fiz pensando que nunca iria nem gravá-la ou cantá-la em show, nem utilizá-la como canção pra valer. Mas, o Vinícius Cantuária, que tem muita intimidade comigo, foi a Salvador passar uns dias no verão, ouviu eu cantando essa música e achou linda. Ficou tão entusiasmado, que eu falei, pois é, eu fiz, mas eu não me interesso em cantar isso, porque eu não quero mais lançar nenhuma canção em inglês. Eu fiz canções em inglês quando eu estava em Londres. Fora Nine Out of Ten eu acho que nenhuma tem realmente uma beleza que justifique. Também não tem necessidade de fazer. A língua inglesa tem milhões de canções maravilhosas, não precisa de mim. E eu não preciso da língua inglesa, porque eu tenho a língua portuguesa, que eu trato bem o quanto posso. Mas acontece que ele foi ficando tão entusiasmado, falando que a música era tão linda, que acabou me convencendo a cantá-la no show, E o pessoal da banda também adorou, mas eu ainda não tinha certeza de que iria gravar no disco. Quem me deu certeza de que eu iria gravar no disco foi o Ritchie. Ele foi assistir ao show em São Paulo e ele é inglês. Ele viu o show uma vez e adorou, sobretudo essa canção, achou a letra linda e foi ver uma segunda vez e me disse: "é realmente genial" e quis gravar comigo. Eu convidei ele pra gravar no disco e ele gravou a canção comigo. De modo que uma das vezes quem canta é o Ritchie. A canção vai três vezes cantada inteira no disco e a segunda vez quem canta é o Ritchie sozinho. Isso é lindo. Ele é um músico maravilhoso, um compositor muito bom, maravilhoso, está no Brasil, é inglês, tá fazendo sucesso cantando na minha língua e achou que o que eu compus na língua dele está muito bem composta. Então eu achei que estava liberado para gravar a canção e gravei." (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).
“Shy Moon (“pensei que nunca fosse escrever uma canção em
inglês, pois me envergonho das que fiz em Londres, exceto talvez Nine out of tem”)
já foi uma queixa. Mas não é mais, diz Caetano. E só foi escrita em inglês por
isso. Ele estava sentindo-se muito sozinho e queria queixar-se sem se comunicar
com quem lhe causara o sofrimento: “ela não sabe inglês”.” (Jornal do Brasil,
1984)
Jornal do Brasil.
Foto: Gilda.
11 - Língua (Caetano Veloso) - Part. Especial: Elza Soares
Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira
Fala!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em Ã
De coisas como Rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes como Maria da Fé, Scarlet Moon Chevalier,
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé,
Arrigo Barnabé, Arrigo barnabé, Arrigo Barnabé
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?
Se você tem uma ideia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo
Meu medo!
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria: tenho mátria
Eu quero frátria
Poesia concreta e prosa caótica
Ótica futura
Tá craude brô você e tu lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ele está no Pão de Açúcar
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem
Comentário do autor: "Eu acho que Velô é até um disco muito unitário, com um som bastante uniforme, mas pra minha cabeça não há dificuldade nenhuma em harmonizar as presenças de Elza Soares e Ritchie, porque os dois são maravilhosos, cada um num departamento da minha cabeça. Sendo que Elza Soares é um projeto maior. Eu tenho vontade de fazer um trabalho grande com a Elza Soares e já tenho conversado com ela sobre isso. Eu acho que Elza Soares precisa cantar muito mais e precisa fazer um disco de grande cantora que ela é. Eu tenho falado isso com ela, a gente tem conversado de pouco em pouco e ela fica animada querendo fazer. E eu vou começar a batalhar esse lance, porque eu acho ela o máximo e precisa fazer uma coisa assim de altíssimo nível, de nível internacional como canto genial mesmo, um disco moderno, lindo, que eu acho que ela pode e deve fazer. Então por causa de estar conversando muito com ela sobre isso, eu como gravei essa canção chamada Língua que é meio falada, meio funk, meio samba, com a presença dessa coisa de samba muito forte e fala em Mangueira e ela é mangueirense e eu acho ela a cantora mais genial de samba do Brasil, e como eu tenho estado em contato com ela, eu chamei: "Elza, você canta comigo esse negócio?" Ela ficou super contente de cantar, veio, fez e arrasou. Uma das coisas mais geniais do disco são esses pequenos momentos em que a Elza participa. É uma coisa maravilhosa. Isso eu fico orgulhosíssimo de ter feito e de fazer, porque ela é o máximo." (Caetano Veloso. Disco-Entrevista sobre o lançamento do Lp Velô, 1984).
"O Arrigo não gosta quando eu dou nome às pessoas e lugares em algumas músicas. Para mexer com ele, cito o seu nome três vezes na letra." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1984).
"É uma frase de Bernardo Soares no Livro do Desassossego, “minha pátria é a língua portuguesa”, que modifiquei um pouco na letra de Língua ao escrever que minha pátria é minha língua. Creio que uma das características mais desafiadoras e inspiradoras do Brasil é o fato de falar português. É o único país das Américas em que se fala português, e um país de dimensões continentais, no hemisfério sul, onde vive a maior população negra fora do continente africano. Sempre cheio de promessas e sempre falido. Esse vínculo linguístico-histórico com Portugal me parece um grande desafio e aumenta nossa responsabilidade de criar algo original no mundo. É uma inevitabilidade da condição do brasileiro." (Caetano Veloso para o El País, 2014).
Encarte (Ensaios para a capa). Foto: Gilda.
Ficha Técnica
Produzido por: Caetano Veloso e Ricardo Cristaldi
Coordenação da Produção: Célia Macêdo
Técnico de Gravação: Jairo Gualberto
Auxiliar de Gravação: Marcos Adriano
Mixagem: Ricardo Cristaldi e Jairo Gualberto
Arranjos: Caetano Veloso e Banda Nova
Montagem: William, Vitor, Ricardo, Barroso
Corte: Américo
A foto da capa é de Gilda, feita a partir de uma ideia de Moreno Veloso, usando a maquete original para o cenário do show, realizado por Luciano Figueiredo e Jorge Salomão.
Fotos: Gilda
Layout e arte final: Luciano Figueiredo
Produção Gráfica: Jorge Vianna
Gravado nos Estúdios BARRA-RJ (PRS - POLYGRAM Rede de Serviços)