1989 - Estrangeiro - Caetano Veloso


Estrangeiro, produzido por Peter Sherer e Arto Lindsay, foi gravado em Nova York e lançado no final de 1989. O disco inicia com a música-título, uma narração musicada que segue a linha cinematográfica ao próprio estilo do cantor, evocando sentimentos, nomes, citações e paisagens que rodeiam a Baía de Guanabara. Ao final, a citação do que disse Bob Dylan sobre João Gilberto no disco Bringing It All Back Home (1965). O cenário tropicalista da peça O Rei da Vela - feito por Hélio Eichbauer - ocupa a capa do álbum que encerra os anos 80 de Caetano. O gênero musical argelino aparece em Rai das Cores, canção que evidencia a ótica diversa sobre as coisas. Jasper tem letra de Arto e Peter. Paula Lavigne e Dedé Gadelha são presenteadas com Branquinha e Este Amor, respectivamente. Em Outro Retrato, Caetano homenageia a poesia de João Cabral de Melo Neto e a música de João Donato. Etc. é íntima e triste. Dedicada a Jorge Mautner, Os Outros Românticos traz crítica social que contrasta com a doçura de Genipapo Absoluto, que afirma: "minha mãe é minha voz". 

Caetano: "É o mais recente, então me incomodo mais com ele. É menos deprimido, já sei. O Estrangeiro é uma grande canção. Os Outros Românticos também. Gosto de Estrangeiro, mas por alguma razão prefiro Caetano [1987]. É um grande disco, mas Caetano tem mais verdade, mais clareza." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1991).

"Arto Lindsay tinha me proposto produzir um disco meu, junto com Peter Scherer, seu parceiro nos Ambitious Lovers. Mas eu já tinha engatilhada a produção do disco Caetano com Guto Graça Mello. Bob Hurvitz, do selo americano Nonesuch, que já tinha feito um disco meu em Nova York (um que leva meu nome, foi gravado em dois dias e tem faixas só com o violão ou com um pequeno grupo armado entre os músicos que me acompanhavam no show Uns), queria fazer um outro disco comigo lá. Eu botei os dois em contato. Daí nasceu Estrangeiro. É um disco que muita gente fala bem. Eu gosto." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

"Estrangeiro foi uma produção meio Nonesuch, meio PolyGram. Foi em grande parte produzido em Nova Iorque, com Arto Lindsay e Peter Sherer. O Arto é um camarada que eu havia conhecido na primeira vez que fui cantar em Nova Iorque, ele estava me esperando no aeroporto. Ele tem uma pinta total de americano... até porque é americano de pai e mãe. Quando eu cheguei, ele se apresentou: 'Caetano?" Eu respondi: 'Yes?! Aí ele falou: 'Não, eu falo portugu..', com aquele sotaque pernambucano dele. 'Eu vim aqui porque o pessoal que tá organizando seu show me pediu, porque eu falo português... e depois porque eu também sou fã da sua música...' Eu me lembro que achei o nome Arto curioso, depois ele finalmente me disse que também era músico. Mais tarde eu descobri que ele não só era músico, como também tinha feito um negócio super: o DNA, que eu adoro, acho aquele período maravilhoso. Eu vi esse filme que tem Andy Warhol e você ouve a música do DNA. É lindo o DNA, eu adoro. Depois ele fez o Ambitious Lovers com o Peter Sherer, e eu acho o CD Greed um grande disco. Não me incomoda que os americanos não tenham achado, eles vão ter de aprender. Eu me lembro que achei, e o Matinas Suzuki deu a primeira página da Folha Ilustrada colocando o disco nas alturas. Teve gente rindo, porque nos Estados Unidos não foi posto nas alturas e aqui foi. Eu acho que quem estava certo era o Matinas, nesse caso, e não os críticos americanos - que não falaram mal, mas também não sacaram. E aí então eu fui trabalhar com os caras que haviam feito esse disco. Estrangeiro é um trabalho maravilhosamente bem produzido e eu fiz tudo que podia para corresponder à oportunidade, proposta pelo Arto e pelo Bob Hurwitz, dono da Nonesuch. O disco seria lançado diretamente nos Estados Unidos pela Nonesuch, ao mesmo tempo que a PolyGram lançaria aqui e no resto do mundo. O Peter Sherer é um músico superdotado e com controle dos sintetizadores e de tudo que havia de melhor na época. Ele é um músico como Jaquinho e também um técnico que sabe de tudo na parte eletrônica. Ele dialogava muito bem comigo e com Arto, que não toca nada de harmonia mas que era o homem das ideias. Eu tinha minhas canções e sabia o que queria ouvir, e como queria mostrar. Peter fez animadamente e com muito interesse, e até hoje sempre que eu vou cantar em Nova Iorque, se estiver na cidade, ele vai me ver. O disco foi feito com animação artística e estética, é um bom disco! A capa é um cenário de O Rei da Vela, que é a imagem tropicalista por excelência. Na verdade, eu fiz a canção O Estrangeiro porque ia fazer o disco no exterior. Ela retoma muitos temas tropicalistas, ainda que em outra volta do parafuso. Eu estava em casa, ainda vivia com Paulinha Lavigne. Estava no banheiro e ela disse: 'Caetano, venha ver uma coisa que é igual a sua música!' Eu corri pra olhar e era isso, tava passando um pedaço de O Rei da Vela na TV Cultura. Ela achou o cenário parecido com a música e ela tinha toda razão. Depois eu fiz o clipe na Praia de Botafogo, mas quando eu fiz a música não me lembrava de nada disso. Mas, quando ela viu e nem sabia o que era, captou imediatamente. 'Paulinha, você não sabe o que tá dizendo, mas isso é mesmo igual, é um cenário do Hélio Eichbauer!' Aí eu chamei o Hélio pra fazer a capa, ele tinha essa maquete que fotografamos e ele acabou refazendo pro cenário do show". (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).

"Esse disco foi feito em Nova Iorque. Quando ia fazer o Caetano, que é o disco anterior, o Bob Hurwitz, que era presidente do selo americano ligado à Warner, me viu cantar e ficou interessado em fazer alguma coisa comigo. O Arto Lindsay, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, queria muito produzir um disco meu. O Estrangeiro foi produzido por ele. Arto conhecia bem a minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente. Esse disco contou também com a presença luxuosa, em alguns arranjos, do Peter Sherer, que é um grande músico eletrônico, multiinstrumentista, formado em música. O Arto não tem essa formação de música tonal; ele faz barulho em música atonal. Além de ter idéias, escrever letras e canções, ter sido do rock experimental, da geração do Sonic Youth, do Talking Heads, vem de um grupo cult, muito radical, No wave. Estrangeiro é um grande passo na história do projeto do Arto, de fazer um disco que representasse todas as suas influências da música brasileira. Como eu estava fora, me veio essa idéia de estrangeiro e resolvi dar ao disco esse nome. A capa, de que gosto muito, é uma maquete concebida pelo cenógrafo Hélio Eichbauer para a peça O rei da vela, do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa. O Estrangeiro tem a marca muito forte do Peter Sherer – sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das idéias que vinha tendo - e de muitas idéias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três. Estávamos sempre os três muito juntos, ouvindo as canções. O Peter apresentava soluções que a gente ou aprovava ou pedia que mudasse, e assim fomos até chegar a esse resultado final. Por ser um grande músico eletrônico, saber dominar muito bem todos aqueles equipamentos e já ter trabalhado muito com o Arto Lindsay, o Peter Sherer foi fundamental. Quando o Arto me chamou, para conhecer o trabalho dele com o Peter eu já sabia o que queria do trabalho com a dupla. Conhecia um disco do Ambitious Lovers, chamado Greed, feito por eles, que é um dos grandes discos americanos das últimas décadas. Os americanos nem entenderam, mas aqui o Matinas Suzuki publicou artigo muito elogioso na Folha de São Paulo. Eu estava buscando os elementos eletrônicos existentes naquele disco, que eu gostava imensamente, e estimulei muito o Peter a trabalhar naquela direção. A gravação da faixa Estrangeiro ficou muito bonita. A de Outros românticos ficou linda. Lembro que queria muito que tivesse um aspecto reggae, mas o Peter Sherer disse que não suportava reggae, "uma coisa chata, que todo mundo fazia". Argumentei que no Brasil isso era importante e encontramos um jeito, meio seis por oito, mas com um aspecto de reggae e ficou legal. Adoro as faixas Este amor e Meia-lua inteira, essa última do Carlinhos Brown - que já tocara comigo no disco Caetano e tocou também em O Estrangeiro. Boa parte das gravações foi feita em Nova Iorque, mas também fizemos algumas no Brasil para gravar com Brown e com bateristas daqui e completamos o trabalho lá, mixagem e masterização inclusive." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).

"O Bob Hurwitz tinha me chamado pra fazer um disco com produção e tal. Eu compondo para o disco, pensei na palavra 'estrangeiro'. Me lembrei que quando estava na cadeia, o Ênio Silveira tinha me mandado através de um militar que estava preso mas que, por ser militar, podia andar um pouco em determinadas horas por dentro do quartel, dois livros terríveis. Um era o Rosemary's Baby e outro era o Estrangeiro de Camus, mas eu nunca tinha lido o Estrangeiro de Camus. Eu li na cadeia e aquilo é uma coisa muito bonita mas terrível pra se ler na cadeia, numa solitária. Eu nunca esqueci isso, fiquei sempre com uma ideia sempre muito forte do livro. Então me lembrei da palavra 'estrangeiro' e achei que era o mote para o disco. E, de fato, serviu como o mote e todo o resto é glosa desse mote. E eu fiz uma canção chamada O Estrangeiro. Casualmente, eu estava em casa com Paulinha, a gente morava na General Urquiza, e eu já estava com a canção O Estrangeiro pronta e com o repertório adiantado com outras canções também. E Paulinha, naturalmente, vivendo comigo conhecia. Eu entrei no banheiro e a Paulinha me interrompeu gritando: "vem ver um negócio aqui que é a cara do seu disco, que é a cara da sua música!". Quando olhei, eles estavam passando na TV Cultura uma cena do Rei da Vela na montagem do Zé Celso Martinez Corrêa de 67 que foi um dos nascedouros do Tropicalismo. Eu fiquei impressionado em Paulinha captar isso e o cenário era do Hélio Eichbauer. Eu procurei o Hélio e disse: "vou por isso na capa do disco". Há pessoas que conheço que gostam desse disco especialmente entre todos os meus porque ele tem aquele tratamento de produção americana. Nós gravamos em Nova York muita coisa com músicos bons, então era, assim, uma nata do pessoal que tocava em Nova York tocando no disco a convite de Arto e Peter as minhas musicas comigo, então tem um tipo de qualidade que os discos meus feitos meramente no Brasil por brasileiros não têm." (Caetano em entrevista sobre seus 70 anos, 2012).


Cenário do show Estrangeiro.

“Hélio Eichbauer é um dos maiores artistas visuais do Brasil. Paulinha, com quem estive casado por quase 20 anos, vendo na TV uma imagem do cenário de “O rei da vela”, achou, sem saber do que ou de quem se tratava, que aquilo tinha tudo a ver com “Estrangeiro”, o show que eu ia estrear então para lançar o disco de mesmo nome. Foi um toque assombrosamente perfeito. Mas mais perfeito ainda foi o desenho de cordas no espaço que Hélio apresentou para surgir, na segunda parte do show, por detrás do cenário de “O rei da vela” que tínhamos reproduzido. E todos os outros desenhos de palco que ele fez para todos os meus shows que se seguiram”. (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2006).


Caetano no show Estrangeiro.

Músicos

Caetano Veloso: Violão e voz
Peter Sherer: Teclados
Naná Vasconcelos, Carlinhos Brown: Percussão
Arto Lindsay, Bill Frisell, Marc Ribot: Guitarra
Toni Costa: Guitarra e violão
Tavinho Fialho: Baixo
Cesinha, Tony Lewis: Bateria

Crítica do show Estrangeiro

Jornal O Globo (09/06/1989)

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Entrevista a Geneton Moraes Neto

Jornal do Brasil (03/06/1990)

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Lista de Músicas

Lado 1

1 - O Estrangeiro
(Caetano Veloso)
Peter Sherer: teclados / Naná Vasconcelos: percussão e voz / Tony Lewis: bateria / Bill Frisell: guitarra / Arto Lindsay: guitarra.

2 - Rai das Cores
(Caetano Veloso)
Toni Costa: guitarra / Tavinho Fialho: baixo / Cesinha: bateria / Carlinhos Brown: percussão / Peter Sherer: teclados.

3 - Branquinha - Para Paulinha
(Caetano Veloso)
Caetano: violão / Peter Sherer: teclados / Arto Lindsay: guitarra.

4 - Os Outros Românticos - Para Jorge Mautner
(Caetano Veloso)
Peter Sherer: teclados / Carlinhos Brown: percussão / Marc Ribot: guitarra / Arto Lindsay: guitarra e fala.

5 - Jasper
(Lindsay, Sherer, Veloso)
Peter Sherer: teclados / Naná Vasconcelos: percussão / Arto Lindsay: guitarra.

Lado 2

1 - Este Amor - Para Dedé
(Caetano Veloso)
Peter Sherer: teclados / Bill Frisell: guitarra / Naná Vasconcelos: percussão.

2 - Outro Retrato
(Caetano Veloso)
Peter Sherer: teclados / Marc Ribot: guitarra / Naná Vasconcelos: percussão.

3 - Etc.
(Caetano Veloso)
Caetano Veloso: violão / Naná Vasconcelos: percussão.

4 - Meia Lua Inteira
(Carlinhos Brown)
Tavinho Fialho: baixo / Carlinhos Brown: percussão / Toni Costa: guitarra / Cesinha: bateria / Peter Sherer: teclados / Arto Lindsay: guitarra.

5 - Genipapo Absoluto
(Caetano Veloso)
Caetano Veloso: violão / Toni Costa: violão.

Vamos às Letras. 

1 - O Estrangeiro (Caetano Veloso)

O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de
Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de
Guanabara
Pareceu-lhe uma boca banguela.
E eu, menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, te tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem
Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara
Em que se passara passa passará o raro pesadelo
Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e
O amaro
Eu não sonhei:
A praia de Botafogo era uma esteira rolante de areia
branca e de óleo diesel
Sob meus tênis
E o Pão de Açúcar menos óbvio possível
À minha frente
Um Pão de Açúcar com umas arestas insuspeitadas
À áspera luz laranja contra a quase não luz quase não
púrpura
Do branco das areias e das espumas
Que era tudo quanto havia então de aurora.
Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas
E uma menina ainda adolescente e muito linda
Não olho pra trás mas sei de tudo
Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo.
Mas eu não desejo ver o terno negro do velho
Nem os dentes quase não púrpura da menina
(Pense Seurat e pense impressionista
essa coisa de luz nos brancos dentes e onda
Mas não pense surrealista que é outra onda)
E ouço as vozes
Os dois me dizem
Num duplo som
Como que sampleados num Sinclavier
"É chegada a hora da reeducação de alguém
Do Pai do Filho do Espírito Santo amém
O certo é louco tomar eletrochoque
O certo é saber que o certo é certo
O macho adulto branco sempre no comando
E o resto é o resto, o sexo é o corte, o sexo
Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Riscar os índios, nada esperar dos pretos"
E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento
E entendo o centro do que estão dizendo
Aquele cara e aquela:
É um desmascaro
Singelo grito:
"O rei está nu".
Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o
rei é mais bonito nu
E eu vou e amo o azul; o púrpura e o amarelo
E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo.

("Some may like a soft brazilian singer
But I've given up all attempts at perfection").

Comentário do autor: "[...] Acho que pensei o título do disco e daí pensei em escrever a canção. Sempre soube que no título do disco o artigo definido não apareceria, mas no da canção, sim. É uma letra bonita. "Ara/ela" - "aro/elo", são um par de rimas interessante. E a lembrança de Dylan no final tem muita graça." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

"O Estrangeiro é uma música um pouco sinistra, porque tem todas aquelas linhas de neo-conservadorismo, aquelas falas reacionárias no meio, que são meio terríveis. E um pouco mexer com coisas negativas. Mas, de todo o modo, é uma reflexão sobre as ondas inevitáveis do pensamento no mundo, atualmente." (Caetano Veloso para o programa "O que é que a Bahia tem? da TVE, 1992).


2 - Rai das Cores (Caetano Veloso)

Para a folha: verde
Para o céu: azul
Para a rosa: rosa
Para o mar: azul

Para a cinza: cinza
Para a areia: ouro
Para a terra: pardo
Para a terra: azul

(Quais são as cores que são suas cores de predileção?)

Para a chuva: prata
Para o sol: laranja
Para o carro: negro
Para a pluma: azul

Para a nuvem: branco
Para a duna: branco
Para a espuma: branco
Para o ar: azul

(Quais são as cores que são suas cores de predileção?)

Para o bicho: verde
Para o bicho: branco
Para o bicho: pardo
Para o homem: azul

Para o homem: negro
Para o homem: rosa
Para o homem: ouro
Para o anjo: azul

(Quais são as cores que são suas cores de predileção?)

Para a folha: rubro
Para a rosa: palha
Para o ocaso: verde
Para o mar: cinzento

Para o fogo: azul
Para o fumo: azul
Para a pedra: azul
Para tudo: azul

Comentário do autor: "Tônia [Carrero] foi uma das belezas femininas mais admiradas do Brasil. É figura forte na vida das pessoas da minha geração. Dando entrevistas, era genial. Fiz uma música a partir de uma resposta dela a um entrevistador de TV. A canção chama-se Rai das Cores. Perguntaram a ela qual sua cor preferida e ela respondeu: "Depende de pra quê. Pra umas coisas prefiro certas cores, para outras, outras" [..]." (Caetano Veloso via Facebook, 2018).


3 - Branquinha (Caetano Veloso)

Eu sou apenas um velho baiano
Um fulano, um caetano, um mano qualquer
Vou contra a via, canto contra a melodia,
Nado contra a maré
Que é que tu vê, que é que tu quer,
Tu que é tão rainha?
Branquinha
Carioca de luz própria, luz
Só minha
Quando todos os seus rosas nus
Todinha
Carnação da canção que compus
Quem conduz
Vem, seduz
Este mulato franzino, menino
Destino de nunca ser homem, não
Este macaco complexo
Este sexo equívoco
Este mico-leão
Namorando a lua e repetindo:
A lua é minha
Branquinha
Pororoquinha, guerreiro é
Rainha
De janeiro, do Rio, do onde é
Sozinha
Mão no leme, pé no furacão
Meu irmão
Neste mundo vão
Mão no leme, pé no carnaval
Meu igual
Neste mundo mau

Comentário do autor: "Fiz para Paulinha. É muito delicada e um pouco provençal. Tem algo dos poemas provençais que o Augusto de Campos traduziu, Arnault Daniel, não sei bem: "nado contra a maré". Gosto muito da sonoridade: "Este macaco complexo, este sexo equívoco, este mico-leão". E Pororoquinha era como o pessoal do Gantois chamava a Paulinha. A filha de mãe Cleusa, Mônica, chamava Paulinha assim: "Vem cá Pororoquinha!". Dizia que ela era uma Oxum da pororoca, "Você não é Oxum de um riachinho, de uma fonte, você é Oxum de uma pororoca". A canção também fala em "mão no leme", porque Paulinha é do Leme. Eu adoro chamá-la de "meu irmão nesse mundo vão" e "meu igual neste mundo mau". (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

Foto: Marcos Issa.

4 - Os Outros Românticos (Caetano Veloso)

Eram os outros românticos, no escuro
Cultuavam outra idade média, situada no futuro
Não no passado
Sendo incapazes de acompanhar
A baba Babel de economias
As mil teorias da economia
Recitadas na televisão
Tais irredutíveis ateus
Simularam uma religião
E o espírito era o sexo de Pixote então
Na voz de algum cantor de rock alemão
Com o ódio aos que mataram Pixote a mão
Nutriam a rebeldia e a revolução

E os trinta milhões de meninos abandonados do Brasil
Com seus peitos crescendo, seus paus crescendo
E os primeiros mênstruos
Compunham as visões dos seus vitrais
E seus apocalipses mais totais
E suas utopias radicais
Anjos sobre Berlim
"O mundo desde o fim"*
E no entanto era um SIM
E foi e era e é e será sim

(They were the other romantics, in darkness
They made a cult of another middle age
Located in the future not in the past.
Being incapable of following
The blah blah babel of economics recited on television
These irreducible atheists
Simulated a religion
And the Spirit was the sex of Pixote
In the voice of some German rock singer
With hatred for those who killed Pixote by hand
They nurtured rebellion and revolution
And the thirty million abandoned kids of Brazil
With their tits growing, their dicks growing,
Their first menstruations
Composed the visions in their stainglass windows
And their most complete apocalipses
And their radical utopias
Angels over Berlin
The world since the end
And all the while it was a YES
It has been, it was, it is, and will be YES)**

* Antônio Cícero - Luciano Figueiredo - Khliebnikov
** Tradução de Arto Lindsay

Comentário do  autor: "A gravação da faixa Estrangeiro ficou muito bonita. A de Outros Românticos ficou linda. Lembro que queria muito que tivesse um aspecto reggae, mas o Peter Sherer disse que não suportava reggae: "uma coisa chata, que todo mundo faz". Argumentei que no Brasil isso era importante e encontramos um jeito, meio seis por oito, mas com um aspecto de reggae e ficou legal." (Caetano Veloso. Livro Tantas Canções. Universal Music, 2003).

Foto: Eduardo Paiva.

5 - Jasper (Lindsay, Sherer, Veloso)

Time is as weak as water
I'm kneeling on the shore
Showers, palmfronds
Cross me spilling
Silver, sidewalks
Lips so red world so wide
Around my head
Waiting
Time is as weak as water

I taught myself a lesson
I put myself to sleep
Sirens, jasmin
Jasper, flagpole
Tree top, sidewalk
Thursday night, magnolia
Along my street
Later
I taught myself a lesson

O tempo é tão fraco quanto a água
Estou ajoelhado à beira-mar
Chuvas palmas jorram
Passam por mim
Prata calçadas
Lábios tão rubros mundo tão vasto
Em volta da minha cabeça
Esperando
O tempo é tão fraco quanto a água

Eu me ensinei uma lição
Eu me botei pra dormir
Sirenes jasmim jasper
Olho da árvore calçada mastro
Noite de quinta magnólia
Pela minha rua
Depois
Eu me ensinei uma lição

Caetano e Arto Lindsay.

6 - Este Amor (Caetano Veloso)

Se alguém pudesse ser um siboney
Boiando à flor do sol
Se alguém, seu arquipélago, seu rei
Seu golfo e seu farol,
Captasse a cor das cores da razão do sal da vida
Talvez chegasse a ler o que este amor tem como lei

Se alguém judeu, iorubá, nissei, bundo,
Rei na diáspora
Abrisse as suas asas sobre o mundo
Sem ter nem precisar
E o mundo abrisse já, por sua vez,
Asas e pétalas...
Não é bem, talvez, em flor
Que se desvela o que este amor

(Tua boca brilhando, boca de mulher,
Nem mel, nem mentira,
O que ela me fez sofrer, o que ela me deu de prazer,
O que de mim ninguém tira
Carne da palavra, carne do silêncio,
Minha paz e minha ira
Boca tua boca boca tua boca cala minha boca)

Se alguém cantasse mais do que ninguém
Do que o silêncio e o grito
Mais íntimo e remoto, perto além
Mais feio e mais bonito
Se alguém pudesse erguer o seu Gilgal em Bethania...
Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?

Se alguém nalgum bolero, nalgum som
Perdesse a máscara
E achasse verdadeiro e muito bom
O que não passará
Dindinha lua brilharia mais no céu da ilha
E a luz da maravilha
E a luz do amor
Sobre este amor

Comentário do autor: "Fiz para Dedé. Acho uma canção lindíssima, sobretudo a primeira parte. Não considero tão boa a ponte com a segunda parte. Não que seja feia, é até bonita, mas quando se canta, e muda o ritmo, fico com pena, porque a primeira parte, naquele ritmo e com aquelas palavras, "se alguém pudesse ser um siboney", é mesmo muito linda. Eu comecei a canção a partir de um texto de Kafka, um daqueles textos curtos, que começa assim: "se alguém pudesse ser um pele vermelha e sair pelas pradarias". Eu mudei para "siboney", que são os índios que habitavam a ilha de Cuba pré-colombiana". (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).

Foto: Beti Niemeyer.

7 - Outro Retrato (Caetano Veloso)

Minha música vem da música da poesia de um poeta João
que não gosta de música
Minha poesia vem da poesia da música de um João
músico que não gosta de poesia

O dado de Cabral
A descoberta de Donato
O fato o sinal
O sal o ato o salto:
Meu outro retrato

Comentário do autor: "Na minha juventude, João Cabral foi meu poeta preferido. As rimas toantes, a secura, aquele avesso do surrealismo que era o cerne de seu impulso experimental me arrebataram para além do que me parecia ser o mais elevado estágio de poesia: Drummond. Quando conheci Cabral pessoalmente (no Senegal, onde ele era embaixador e aonde fui com Gil, a caminho do Festac na Nigéria) sua personalidade fascinou-me tanto quanto os seus poemas. Estive com ele mais três vezes depois dessa. Uma no Porto, onde ele servia como cônsul, e duas no Rio: em sua casa e numa leitura/palestra que ele deu ao lado de John Ashbery e Joan Brossa, em evento organizado por Waly Salomão e Antonio Cicero. A suas casas, do Porto e do Rio, quem me levou foi o professor Arnaldo Saraiva, autoridade em modernismo português e brasileiro. Em todos os encontros, a intensidade de sua presença toda cheia de vida foi sempre uma experiência inesquecível. Quis anotar o que me marcou no primeiro desses encontros de modo adequado e me vi escrevendo um poema que se esforçava por aproximar-se de sua poesia — sem propriamente imitá-la — e de retratar sua pessoa — sem propriamente descrevê-la. Quando contei a Arnaldo, nosso amigo comum, este quis publicar minha tentativa na revista portuguesa Terceira Margem. Fiquei orgulhoso. E voltei a orgulhar-me quando Claudio Leal me disse que a Ilustríssima talvez a reproduzisse. Acho que se Cabral estivesse vivo eu teria vergonha. Faço canções e não poemas — e, se estes são coisas muito diferentes daquelas, meus erros e acertos no presente exemplo serão do tipo que reafirma essa diferença.

O Poeta em Dacar

Cabral ombreia o grou coroado:
Sumário confronto sobre a grama
Em frente ao palácio oficial.
Alguns toureiros trazem socorro:
Vêm de seus versos. Muito econômicos,
Nenhum ostenta cores ou cheiros;
Nenhum, sensualidade; embora
Aceso tenham o sexo. Nenhum
Senegaliza. Porém a cola
Que não mascam é como se fosse
A fibra mesma, o osso-poeta
Que sustenta o corpo pequenino
Desse homem desembaraçado
Em sua angústia. Expositivo,
Ele apenas informa — e é um coan —
Sobre a particularidade deles,
Os grous, de, macho ou fêmea, terem
Reações opostas à chegada
De outro animal aqui, este homem
Em seu território: a fêmea avança,
O macho, muito tímido, esquiva-se.
Ou será o contrário, pergunta-nos
O poeta sério e buster keaton.
E conclusivo: um ou outro é
O que ataca; um ou outro, o que foge.
Volta à lajota da varanda sem
Olhar para as aves no gramado
Atrás de si. E muda de assunto."

(Caetano Veloso na Folha de S. Paulo, 2020). 


8 - Etc. (Caetano Veloso)

Estou sozinho, estou triste, etc.
Quem virá com a nova brisa que penetra
Pelas frestas do meu ninho
Quem insiste em anunciar-se no desejo
Quem tanto não vejo ainda
Vem, pessoa secreta
Vem, te chamo
Vem etc.


9 - Meia Lua Inteira (Carlinhos Brown)

Meia Lua Inteira
Sopapo na cara do fraco
Estrangeiro gozador
Cocar de coqueiro baixo
Quando engano se enganou
São dim dom dão São Bento
Grande homem de movimento
Martelo do tribunal
Sumiu na mata adentro
Foi pego sem documento
No terreiro regional
Poeira ra ra ra
Poeira ra ra ra
Terça-feira capoeira ra ra ra
Tô no pé de onde dé ra ra ra ra
Verdadeiro ra ra ra
Derradeiro ra ra ra
Não me impede de cantar ra ra ra ra
Tô no pé de onde dé ra ra ra ra ra
Bima berimba a mim que diga
Taco de arame cabaça barriga
São dim dom dão São Bento
Grande homem de movimento
Nunca foi um marginal
Sumiu na praça a tempo
Caminhando contra o vento
Sobre a prata capital

Comentário do autor: "Em todos os momentos do Caetano a história dele é a generosidade. Caetano é, sobretudo, um cara que lança pessoas. Não foi à toa que quando escrevi Meia Lua Inteira citava ele como grande homem de movimento que não apenas se importa consigo. Este homem se importa com todos, com o país. Ele tem opinião perfeita porque são opiniões perfeitas para o crescimento das pessoas. Se eu cresci, mestre, você faz parte disto. Eu sou uma criança que encontrou esperança no seu talento e se você não me desse espaço, quem seria eu hoje aqui? Então, sem amor não somos nada. Imagine sem Caetano." (Carlinhos Brown no programa Criança Esperança. TV Globo, 2019). 


10 - Genipapo Absoluto (Caetano Veloso)

Como será pois se ardiam fogueiras
Com olhos de areia quem viu
Praias paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio
Onde e quando é genipapo absoluto
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa poesia Mabel

Cantar é mais do que lembrar
É mais do que ter tido aquilo então
Mais do que viver do que sonhar
É ter o coração daquilo

Tudo são trechos que escuto: vêm dela
Pois minha mãe é minha voz
Como será que isso era este som
Que hoje sim gera sóis dói em dós
"Aquele que considera"
A saudade de uma mera contraluz que vem
Do que deixou pra trás
Não, esse só desfaz o signo
E a "rosa também"

Comentário do autor: "Fala de Santo Amaro, como tantas outras. Há duas citações: a primeira é "aquele que considera", que cita letra e melodia de uma canção de Ataulfo Alves, a segunda é "rosa também", que recupera letra e melodia de Mané Fogueteiro, um sucesso com Augusto Calheiros. Eu tinha citado noutras letras Irene, Clara, Nicinha, menos Mabel, que, quando eu era criança, era a minha irmã favorita, com quem eu mais me identificava e é minha madrinha de apresentação (eu a chamo às vezes Dinha). E ela reclamava disso. Enfim, ela, que faz poesia, apareceu aqui, aliada à poesia. Mas a canção me emociona por outras duas coisas também. Primeiro, o jeito como aparece meu pai: "Onde e quando é genipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel". Eu adoro isso. Uma pessoa em São Paulo, descendente de italianos, pensou que meu pai se chamasse Caetano, porque os italianos usam Tanino como apelido de Caetano, de Gaetano. Não é o caso, pois aqui "tanino" é substantivo comum. A letra também fala de "prensa", porque meu pai me chamava para ajudá-lo a prensar o jenipapo numa prensa de madeira para fazer o licor. Era sempre a mim que ele chamava: "Caetano, vamos prensar o jenipapo". Eu adorava fazer. Eu adorava o licor, adoro ainda. Prensar o jenipapo com meu pai me deixava todo orgulhoso. Ele tinha certa cumplicidade comigo numas coisinhas assim. E algumas eram cruciais, como essa, espremer o jenipapo. Outro dado que me emociona é que essa canção fala de minha identificação com meu pai mas declara, em seguida, que "minha mãe é minha voz". (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003).


Foto: Maria Sampaio.

Foto: Maria Sampaio.





Foto: Estadão.






Ficha Técnica

Produzido por Peter Sherer e Arto Lindsay
Gravado e mixado por Roger Moutenot
Gravações adicionais: Francis Manzella
Assistentes: Pat Dillet, Paul Angeli, Karen Bohannon (Skyline Studios)
Oz Fritz (Platinum Island Studios)
Jacaré (Estúdio Transamérica)
Jason Baker (Creative Audio Recording)
Capa: pintura de Hélio Eichbauer para o cenário da peça de Oswald de Andrade
O Rei da Vela na montagem do Teatro Oficina, São Paulo, 1967.
Fotografia: Pedro Oswaldo Cruz
Fotografia da contracapa: Jan Staller
Projeto gráfico: Luciano Figueiredo
Agradecimentos especiais a Barbara Moutenot, Shelly Palmer, Mike Knuth,
Guilherme Araújo, Bob Hurwitz, Duncan Lindsay, Paulinha Lavigne,
Moreno Veloso, Dedé Veloso
Coordenação Gráfica: Arthur Fróes



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