1998 - Prenda Minha - Caetano Veloso


Prenda Minha (1998) registrou em CD e DVD (o 2º gravado do Brasil) o show Livro Vivo, baseado no disco lançado por Caetano Veloso em 1997. O espetáculo estreou em São Paulo, no dia 16 de abril de 1998 e permaneceu em turnê por dois anos, excursionando, além do Brasil, América do Sul, Estados Unidos e Europa. Constam no álbum ao vivo as canções do show que não faziam parte do disco de estúdio. Com direção de Jaques Morelenbaum, onze músicos (mais a participação especial de Moreno Veloso) preencheram o cenário em veludo vermelho de Hélio Eichbauer: à esquerda, a percussão das ruas de Salvador; à direita, os instrumentos do jazz. E todos sob um móbile de quatro peças, ao centro, que girava lentamente. Caetano interagia com o objeto em Linha do Equador, fazendo de seu corpo a continuidade da obra. As canções do disco de estúdio foram retrabalhadas para que os metais pudessem substituir a orquestra. Prenda Minha foi cantada com sotaque gaúcho e Meditação é bossa que foi tratada da forma como Gil Evans teria feito. O roteiro do show foi montado seguindo o raciocínio de Verdade Tropical. Entre canções, Caetano lia dois trechos da sua autobiografia: o primeiro, sobre Gilberto Gil para recepcionar Bem Devagar (canção inédita de Gil, feita em 1961) e Drão. O segundo, sobre as observações de Augusto de Campos a respeito da música de vanguarda, criando o clima para Doideca. Prenda Minha alcançou a marca de 1 milhão de cópias vendidas, recorde de Caetano. As vendas foram impulsionadas pela interpretação em voz e violão de Caetano para a música Sozinho, de Peninha. O disco termina em ritmo de Carnaval com o samba Atrás da Verde e Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu e o frevo Vida Boa. 

Caetano: "Nasceu do que me interessou quando fiz o disco Livro. Tem muitas canções do disco, com o tipo de arranjo mais ou menos adaptado pra formação que a gente tem aqui. Praticamente a mesma percussão e os arranjos, que lá tinham uma orquestra grande, foram reduzidos para três metais e um cello, mas são aqueles arranjos. A percussão é basicamente a mesma. É embrião de uma coisa que fiquei interessado em fazer. Foi se aprofundando desde que eu estava fazendo a excursão do Fina Estampa pela Europa: unir o gosto das orquestrações da fase 'cool' do jazz com a rítmica das ruas da Bahia de hoje. Pretendo captar o relaxamento e a energia que existem no show, exatamente como fez Gilberto Gil no disco ao vivo do show 'Quanta', que ficou maravilhoso." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 1998).

"Por que se chama Prenda Minha? Prenda Minha por que a inspiração para as orquestrações e para o tratamento musical vieram em grande parte das gravações de Miles Davis e Gil Evans. Do disco em que Miles Davis gravou canções brasileiras quando ele estava influenciado pela Bossa Nova, um momento muito importante, e que chama-se Quiet Nights, que é o nome de Corcovado em inglês. No disco de 1962, ele toca Corcovado e Aos Pés da Cruz, que é uma maravilha e sequer é uma canção da Bossa Nova. É um samba tradicional de Marino Pinto que Miles ouviu com João Gilberto. É como se fosse uma obra de João Gilberto para Miles Davis, né? Isto é uma coisa da qual João Gilberto deve, sem dúvida, se orgulhar e certamente se orgulha. Agora, neste disco eles gravaram Prenda Minha, a famosa canção anônima que todos nós conhecemos. Miles gravou e pôs o nome de Song number 2 e botou ele próprio como autor. Então, a gente toca esta canção Prenda Minha com um arranjo bem parecido com o que eles fizeram. E no lugar onde entraria o trompete de Miles Davis entro eu cantando a canção com o sotaque gaúcho e tudo. A gente fez exatamente a batida da percussão e do contrabaixo do Miles Davis. É uma brincadeira com este negócio do grande Miles Davis ter gravado Prenda Minha, uma canção de domínio público e ter creditado a si mesmo a autoria. O Hermeto várias vezes chiou que o Miles Davis tinha pegado temas deles e botado em seu próprio nome. Mas Prenda Minha é domínio público." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 1998). 

"Prenda Minha vendeu horrores e sem Sozinho não teria ido tão longe. Felizmente, o disco vendeu o dobro da trilha da novela, mostrando que é possível conciliar sofisticação de arranjos com música vista como comercial. Sem dúvida o sucesso se deve ao Sozinho. Mas não sei que outros fatores sustentam o crescimento das vendas de um disco tão cheio de arranjos à Gil Evans e regravações heterodoxas. Muitas vezes a gente viu (e já experimentei) o sucesso de uma canção só, via novela, sem que isso levasse o álbum correspondente às paradas. Em geral o que vende é o disco da novela. Mas acho muito bom que essa minha gravação tão despretensiosa da canção de Peninha tenha servido para quebrar um pouco a rígida segmentação que vem dominando o rádio e o mercado de discos no Brasil. Sozinho já tinha sido um sucesso com Sandra de Sá. Era, portanto, testadamente uma canção de sucesso. Talvez a combinação dessa vocação da canção com a preferência do público por minhas interpretações mais íntimas e intimistas tenha sido decisiva." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1999). 

"Ensaio todos os meus shows sentado de frente para os músicos. Os movimentos de corpo que vou adicionando, depois subtraindo, substituindo - mas que, ao longo das temporadas, vão se multiplicando -, começam a se formar quando o show já está diante do público. Isso é o que me permite uma atitude desabusada com respeito às quase-danças que acompanham minhas apresentações de canções no palco. Não sou dançarino. Já na estréia de Livro Vivo, em São Paulo, eu deliberadamente fazia, num determinado momento, gestos repetitivos, maquinais-obsessivos, num estilo que muitos associam ao trabalho de Pina Bausch: era um aceno a essa artista que me apaixona. Na canção Jorge de Capadócia, quando na letra se diz "cordas e correntes arrebentem/ sem o meu corpo amarrar", eu repetia diversas vezes (e independentemente do ritmo em que estava cantando) o gesto de desatar amarras, passando um pulso pelo outro com rispidez e abrindo os braços até meio-caminho, onde o movimento se interrompia e recomeçava. Era uma referência, parente dos flashes de Carmem Miranda ou de Mick Jagger que brilhavam por alguns segundos no show de Transa, em Londres, 1971. Fora essa citação, não há nada da dança de Pina Bausch nas minhas dancinhas de Livro Vivo. Embora hoje haja muito de Pina Bausch em mim. (Trecho do Artigo: "Aquela coisa toda" sobre Pina Bausch. Folha de São Paulo, 2000). 

Prenda Minha é o Livro Vivo; era o nome da temporada e ia ser o nome do disco, mas a canção “Prenda Minha” era uma canção tão bacana - com aquele arranjo tirado do disco do Miles Davis - que a gente botou esse título. Foi o disco que mais vendeu em toda minha carreira, é completamente desproporcional à média de minha vida profissional. Vendeu mais de 1 milhão de discos, é uma coisa louca, porque - digamos - no ano anterior vendi 100 mil, nesse vendi 1 milhão e depois voltei aos 100 mil no outro ano. Mas foi uma série de fatores, eu gravei canções que não estavam no disco Livro. Tem sucessos e tem o Sozinho, que foi um fenômeno… porque era uma música que já tinha sido sucesso com Sandra de Sá e tinha uma versão espetacular com Tim Maia. No show eu cantava só ao violão, só pra ilustrar, quase nem entrou no disco… porque todo mundo adorava lá na gravadora. É linda a música, eu já tinha gravado outra do Peninha. Também já gravei Wando e Fernando Mendes, por conta de outros projetos. Pra vender nesse número, o Prenda Minha me surpreendeu bastante. Foi tudo junto: o apogeu do compact disc, o Sozinho com o resto do repertório, uma turnê de sucesso, tudo concorreu. Todo mundo quis comprar.” (Depoimento para a Coleção Caetano Veloso 70 anos, 2012).

"Não poderia fazer o show todo a partir da experimentação que foi feita no disco. Tive que reprimir algumas coisas e pôr elementos novos. Tem muita coisa no show que não há no disco. Não incluí Alexandre porque não decorei a letra. Tudo o que é narrativa me sai empurrando, o que é ensaístico sai fácil. Talvez mais tarde, se eu me sentir preparado, eu a inclua no show. Pensei em usar um formato menor, com um quarteto de cordas, em contraponto com a percussão. Adoro tudo do carnaval da Bahia e fiquei com saudade da experiência que tive com a Banda Didá na gravação de “Tieta". Queria chegar mais perto do período da minha formação inicial, no final dos anos 50. Pensei até em cantar My Buddy, que ouvia com Chet Baker, pensei em Miles Davis e na Bossa Nova. Coincidiu de, na época, achar uma caixa de Miles Davis e reouvir, juntos com outras coisas, o trabalho de Miles e Gil Evans. Foi quando decidi que deveríamos tender mais para os metais. João tocando violão parece uma 'big band', mais do que os metais que uso no show. Mas de todo modo é uma maneira de comentar que no arranjo de violão de João [em Na Baixa do Sapateiro] se ouve uma 'big band'. Faço um pouco de leitura do livro, e queria fazer um pouco mais. Tinha uns cinco trechos escolhidos, terminei com três, mas estreei com dois e assim ficou. Por causa do ritmo da sequência das canções não permitir tantas leituras. Até o momento da estreia, pensava em ler um trecho sobre a chegada ao Rio, no qual lembro de Edu [Lobo], que encontraria antes de Onde o Rio é Mais Baiano. Adoraria ler aquilo naquela passagem. Eu não estava certo que fosse fazer de novo com Eichbauer, por querer que esse show tivesse alguns elementos do show pop mais convencional, embora fosse bem radical no sentido oposto. Depois vi que, justamente por isso, só poderia fazer com ele, que é sofisticado o suficiente para chegar nesse ponto. Eu queria fazer algo que não usamos nos outros shows, que é fazer a luz se mover, com o ritmo e os temas. Porque a gente fazia a luz parada para cada canção e sem 'black out'. Cada canção tinha uma luz e quando ela acabava passava para a luz da outra canção sem 'black out'. Eichbauer fugiu de qualquer associação explícita com livros ou literatura, criando um cenário todo vermelho, do chão ao fundo. Ele me disse "Vejo tudo vermelho com os meninos tocando, e é algo que remete à rua. Você toparia fazer tudo, do chão ao fundo com veludo vermelho?". Ele também pensou num elemento para botar no meio, que é o móbile, mas é um móbile que não tem nada a ver com Calder, não é para parecer com Calder." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, maio/1998).

Foto: Marcos Hermes.

Show Livro Vivo (1998-2000).

Banda

Jaques Morelenbaum: Regência, cello e vocais
Luiz Brasil: Violões, guitarras, berimbau e vocais
Jorge Helder: Baixos acústico, elétrico e vocais
Ronaldo Silva: Bateria
Joatan Nascimento: Trompete e flugel
Rowney Scott: Saxofones
Roberto Silva: Trombone e trombone baixo
Márcio Victor: Percussão
Orlando Costa: Percussão (tabla em Terra)
Eduardo Josino: Percussão (solo de bacurinha em A Luz de Tieta)
Josino Eduardo: Percussão
Participação especial:
Moreno Veloso: Percussão em A Luz de Tieta,
Atrás da Verde-e-Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu e Vida Boa

Lista de Músicas

1 - Jorge da Capadócia
(Jorge Ben)

2 - Prenda Minha
(Tradicional)

3 - Meditação
(Tom Jobim, Newton Mendonça)

4 - Terra
(Caetano Veloso)

5 - Eclipse oculto
(Caetano Veloso)

6 - Texto de "Verdade Tropical"
(Caetano Veloso)

7 - Bem Devagar
(Gilberto Gil)

8 - Drão
(Gilberto Gil)

9 - Saudosismo
(Caetano Veloso)

10 - Carolina
(Chico Buarque)

11 - Sozinho
(Peninha)

12 - Esse Cara
(Caetano Veloso)

13 - Mel
(Caetano Veloso, Waly Salomão. Letra em espanhol: Willie Cólon)

14 - Linha do Equador
(Caetano Veloso, Djavan)

15 - Odara
(Caetano Veloso)

16 - A Luz de Tieta
(Caetano Veloso)

17 - Atrás da Verde-e-Rosa só não vai quem já morreu
(David Corrêa, Paulinho Carvalho, Carlos Sena, Bira do Ponto)
Inclusão de obra: Festa do Interior
( Moraes Moreira, Abel Silva)

18 - Vida Boa
(Armandinho, Fausto Nilo)

Faixas do DVD

1 - Minha Voz, Minha Vida / 2 - Jorge de Capadócia / 3 - Prenda Minha / 4 - Meditação / 5 - Terra / 6 - Eclipse Oculto / 7 - Texto: Verdade Tropical / 8 - Drão / 9 - Saudosismo / 10 - Carolina / 11 - Sozinho / 12 - Esse Cara / 13 - Mel / 14 - How Beautiful Could a Being Be / 15 - Linha do Equador / 16 - Texto: Verdade Tropical, Doideca / 17 - Odara / 18 - Não Enche / 19 - A Luz de Tieta / 20 - Os Passistas / 21 - Atrás da Verde Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu. 

Vamos às Letras.

1 - Jorge da Capadócia (Jorge Ben Jor)

Jorge sentou praça
Na cavalaria
Eu estou feliz porque eu
Também sou da sua companhia

Eu estou vestido com
As roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos
Tenham mãos e não me toquem
Para que meus inimigos
Tenham pés e não me alcancem
Para que meus inimigos
Tenham olhos e não me vejam
E nem mesmo pensamento
Eles possam ter para
Me fazerem mal

Armas de fogo
Meu corpo não alcançarão
Facas e espadas se quebrem
Sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes se arrebentem
Sem o meu corpo amarrar

Pois eu estou vestido
Com as roupas e as armas de Jorge
Jorge é de Capadócia


2 - Prenda Minha (Tradicional)

Tenho de ir para o rodeio
Prenda minha
No rincão do bem-querer
Noite escura, noite escura
Prenda minha
Toda noite me atentou
Quando foi de madrugada
Prenda minha
Foi-se embora e me deixou

Foto: Paulo Berton.

3 - Meditação (Tom Jobim, Newton Mendonça)

Quem acreditou
No amor, no sorriso e na flor
Então sonhou, sonhou
E perdeu a paz
O amor, o sorriso e a flor
Se transformam depressa demais
Quem no coração
Abrigou a tristeza de ver
Tudo isso se perder
E na solidão
Procurou o caminho e seguiu
Já descrente de um dia feliz
Quem chorou, chorou
E tanto que o seu pranto já secou
Quem depois voltou
Ao amor, ao sorriso e à flor
Então tudo encontrou
Pois a própria dor
Revelou o caminho do amor
E a tristeza acabou


4 - Terra (Caetano Veloso)

Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim, coberta de nuvens

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Mando um abraço pra ti
Pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses à Paraíba

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu estou apaixonado
Por uma menina, terra
Signo de elemento terra
Do mar se diz: Terra à vista
Terra para o pé, firmeza
Terra para a mão, carícia
Outros astros lhe são guia

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

De onde nem tempo, nem espaço
Que a força mande coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas no nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito

Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Foto: Frederic Reglain.

5 - Eclipse oculto (Caetano Veloso)

Nosso amor não deu certo
Gargalhadas e lágrimas
De perto fomos quase nada
Tipo de amor que não pode dar certo
Na luz da manhã
E desperdiçamos os blues do Djavan

Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia
Como se o coração tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida

Não me queixo
Eu não soube te amar
Mas não deixo
De querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?

Como nunca se mostra
O outro lado da lua
Eu desejo viajar
No outro lado da sua
Meu coração galinha de leão
Não quer mais amarrar frustação
Oh, eclipse oculto na luz do verão

Mas bem que nós fomos muito felizes
Só durante o prelúdio
Gargalhadas e lágrimas
Até irmos pro estúdio
Mas na hora da cama
Nada pintou direito
É minha cara falar
Não sou proveito
Sou pura fama

Nada tem que dar certo
Nosso amor é bonito
Só não disse ao que veio
Atrasado e aflito
E paramos no meio
Sem saber os desejos
Aonde é que iam dar
E aquele projeto ainda estará no ar

Não quero que você
Fique fera comigo
Quero ser seu amor
Quero ser seu amigo
Quero que tudo saia
Como som de Tim Maia
Sem grilos de mim
Sem desespero, sem tédio, sem fim

Foto: Jornal O Globo.

6 - Texto de "Verdade Tropical" (Caetano Veloso)

"Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele (pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo) dizendo: "Caetano, venha ver o preto que você gosta". Isso de dizer "o preto", sorrindo ternamente como ela o fazia (ou fez), tinha - teve, tem - um sabor esquisito que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como se somasse àquilo que eu via e ouvia uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, adensasse sua beleza. Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele - e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa - e minha mãe festejava comigo a descoberta." (Caetano Veloso. Livro: Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997).

Foto: Lívio Campos.

7 - Bem devagar (Gilberto Gil)

Sem correr
Bem devagar
A felicidade voltou para mim
Sem perceber
Sem suspeitar
O meu coração deixou você surgir
E como o despertar depois de um sonho mau
Eu vi o amor sorrindo em seu olhar
E a beleza da ternura de sentir você
Chegou sem correr
Bem devagar
Amor velho que se perde
Sai correndo para outro ninho
Amor novo que se ganha
Vem sem pressa, vem mansinho


8 - Drão (Gilberto Gil)

Drão
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n'algum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela estrada escura

Drão
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Entende-se infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Nossa caminha dura
Cama de tatame
Pela vida afora

Drão
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há
De haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão
Morrenasce trigo
Vivemorre pão
Drão


9 - Saudosismo (Caetano Veloso)

Eu, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado, aquela flor
E outras mumunhas mais
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar
Tentamos inventar
Tentamos inventar
Tentamos

A felicidade
A felicidade
A felicidade
A felicidade
Eu, você, depois
Quarta-feira de cinzas no país
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
Sim, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
A bossa, a fossa, a nossa grande dor
Como dois quadradões

Lobo, lobo, bobo
Lobo, lobo, bobo
Lobo, lobo, bobo
Lobo, lobo, bobo
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E eu fico comovido de lembrar
O tempo e o som
Ah, como era bom
Mas chega de saudade, a realidade
É que aprendemos com João
Pra sempre ser desafinados
Ser desafinados
Ser desafinados
Ser

Chega de saudade...

Comentário do autor: "Bem do início do Tropicalismo, é uma das músicas que fiz logo que me mudei para São Paulo, depois de me casar. É tudo em torno de João Gilberto. É um acerto de contas com a Bossa Nova." (Caetano Veloso. Sobre as Letras. Companhia das Letras, 2003). 

Foto: Lívio Campos.

10 - Carolina (Chico Buarque)

Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo

Eu já lhe avisei que não vai dar
Seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
E Carolina não viu

Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra agradar
Agora não sei como explicar

Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
E só Carolina não viu

Foto: Lívio Campos.

11 - Sozinho (Peninha)

Às vezes, no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado, juntando
O antes, o agora e o depois

Por que você me deixa tão solto?
Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho!

Não sou nem quero ser o seu dono
É que um carinho às vezes cai bem
Eu tenho os meus desejos e planos secretos
Só abro pra você mais ninguém

Por que você me esquece e some?
E se eu me interessar por alguém?
E se ela, de repente, me ganha?

Quando a gente gosta
É claro que a gente cuida
Fala que me ama
Só que é da boca pra fora

Ou você me engana
Ou não está madura
Onde está você agora?

Foto: Roseane Mendes.

12 - Esse Cara (Caetano Veloso)

Ah, que esse cara tem me consumido
A mim e a tudo que eu quis
Com seus olhinhos infantis
Como os olhos de um bandido
Ele está na minha vida porque quer
Eu estou pra o que der e vier
Ele chega ao anoitecer
Quando vem a madrugada, ele some
Ele é quem quer
Ele é o homem
Eu sou apenas uma mulher

Foto: Walter Carvalho/Ag. A Tarde.

13 - Mel (Caetano Veloso, Waly Salomão. Letra em espanhol: Willie Cólon)

Oh, abelha rainha
Faz de mim
Um instrumento de teu prazer
Sim, e de tua glória
Pois se é noite de completa escuridão
Provo do favo do teu mel
Cavo a direta claridade do céu
E abarco o sol com a mão
É meio-dia, é meia-noite, é toda hora
Lambe olhos, torce cabelos
Feiticeira, vamo-nos embora
É meio-dia, é meia-noite,
Faz zum-zum na testa
Na janela, na fresta da telha
Pela escada, pela sala
Pela estrada
Toda a fora
Anima de vida
O seio da floresta
O amor empresta
A praia deserta
Zumbe na orelha
Concha do mar
Oh, abelha, boca de mel carmin
Carnuda, vermelha
Oh, abelha rainha
Faz de mim
Um instrumento do seu prazer
Sim, e de tua glória
E de tua glória, e da tua glória
De tua glória, da tua glória
Da tua glória, e de tua glória
E de tua glória

Oh, mi abeja reina
Haz de mi un instrumento de tu placer
Si, y de tu glória
Pues si de noche
En completa oscuridade
Prueba el sabor de tu miel
Salgo directo a la claridad del cielo
Y agarro el sol con una mano
De medio dia, de media noche
A toda hora, miles abejitas hechizeras
Mejor vamonos ahora
De medio dia, de media noche
Un zun-zun en la cabeza
En la ventana, en las cortinas de tela
Por la escalera, por la puerta
Por la calle, todo afuera
Animo de vida, oh, seno de la floresta
Amor, en presta
A playa desierta, zumbi en la oreja
Concha de mar
Oh, abeja boca de miel
Carnuda, roja, colorada
Oh, mi abeja reina
Haz de mi un instumento de tu placer
Si, e de tu gloria


14 - Linha do Equador (Caetano Veloso, Djavan)

Luz das estrelas
Laço do infinito
Gosto tanto dela assim
Rosa amarela
Voz de todo o grito
Gosto tanto dela assim

Esse imenso desmedido amor
Vai além de seja o que for
Vai além de onde eu vou
Do que sou minha dor
Minha linha do Equador

Esse imenso desmedido amor
Vai além de seja o que for
Passa mais além do céu de Brasília
Traço do arquiteto
Gosto tanto dela assim
Gosto de filha
Música de preto
Gosto tanto dela assim

Essa desmesura de paixão
É loucura do coração
Minha Foz do Iguaçu
Polo sul, meu azul
Luz do sentimento nu

Esse imenso desmedido amor
Vai além de seja o que for
Vai além de onde eu vou
Do que sou minha dor
Minha linha do Equador

Mas é doce morrer neste mar
De lembrar e nunca esquecer
Se eu tivesse mais alma pra dar
Eu daria, isto pra mim é viver


15 - Odara (Caetano Veloso)

Deixe eu dançar
Pro meu corpo ficar odara
Minha cara
Minha cuca ficar odara
Deixe eu cantar
Que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que se sonhara
Canto e danço que dará


16 - A Luz de Tieta (Caetano Veloso)

Todo o dia é o mesmo dia
A vida é tão tacanha
Nada novo sob o sol
Tem que se esconder no escuro
Quem na luz se banha
Por debaixo do lençol

Nessa terra a dor é grande
E a ambição pequena
Carnaval e futebol
Quem não finge
Quem não mente
Quem mais goza e pena
É que serve de farol

Existe alguém em nós
Em muito dentre nós
Esse alguém
Que brilha mais do que
Milhões de sóis
E que a escuridão
Conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você
De mim
Que grita para quem quiser ouvir
Quando canta assim:

Eta
Eta, Eta, Eta
É a lua, é o sol, é a luz de Tieta
Eta, Eta!

Toda noite é a mesma noite
A vida é tão estreita
Nada de novo ao luar
Todo mundo quer saber
Com quem você se deita
Nada pode prosperar
É domingo, é fevereiro
É sete de setembro
Futebol e carnaval
Nada muda, é tudo escuro
E até onde eu me lembro
Uma dor que é sempre igual

Foto: André Durae.

17 - Atrás da Verde-e-Rosa só não vai quem já morreu
(David Corrêa, Paulinho Carvalho, Carlos Sena, Bira do Ponto)
Inclusão de obra: Festa do Interior ( Moraes Moreira, Abel Silva)

Me leva que eu vou
Sonho meu
Atrás da Verde-e-Rosa
Só não vai quem já morreu
Bahia é luz
De poeta ao luar
Misticismo de um povo
Salve todos orixás
Quem me mandou
Estrelas de lá
Foi São Salvador
Pra noite brilhar
Mangueira!
Jogando flores pelo mar
Se encantou com a musa
Que a Bahia dá
Obá, berimbau, ganzá
Ô, capoeira
Joga um verso pra iaiá
Caetano e Gil, ô
Com a Tropicália no olhar
Doces Bárbaros ensinando
A brisa a bailar
A meiguice de uma voz
Uma canção
No teatro opinião
Bethânia explode coração
Domingo no parque, amor
Alegria, alegria, eu vou
A flor na festa do interior
Seu nome é Gal
Aplausos ao cancioneiro
É carnaval, é Rio de Janeiro


18 - Vida Boa (Armandinho, Fausto Nilo)

Lua no mar
Vendo a canoa passear
A vida boa passa do real que há
Coração
Será que tá boa?
Na paz, depois
Depois da paz
Eu quero paz
Aonde o sonho vai, meu sonho vai
Meus sonhos vão
E a parte quente de repente tá na mão
Meu coração
Você que faz a minha vida variar
Tá na luz que passa pelo ar
Passa também pelo seu olhar
Ai, morena, faça o que eu sonhar
Que mágica boa!
Meu amor, cadê você?
Olê, olê, olá
Ê, você, olê, olá
Olê, olá que é pra canoa não virar
E a vida boa na cabeça vadiar
Coração
Será que tá boa?
Na paz depois
Depois na paz
Eu quero mais
Aonde você vai
Meu sonho vai
Meus sonhos vão
A parte quente que pressente a sua mão
Meu coração
Você que faz a minha vida variar
Tá na luz que passa pelo ar
Passa também pelo meu, seu, olhar
Ai, morena, abraça se eu chorar
Que mágica doida!
Meu amor, cadê você?
Olê, olê, olá
Ê, você, olê, olá



Foto: Walter Carvalho.



Foto: Hélvio Romero.

Foto: Hélvio Romero.

Foto: Acervo André Junior.

Foto: Mário Luiz Thompson

Foto: Marcello Rocha.

 



Foto: Marcos Hermes


Ficha Técnica

Dirigido por Jaques Morelenbaum
Direção Artística: Max Pierre
Gerência Artística: Ricardo Moreira
Gravado e Mixado por Antonio "Moogie" Canázio
Coordenação Executiva: Beth Araújo
Gravação ao vivo no Metropolitan (Rio de Janeiro)
10 a 13 de setembro de 1998 na Unidade Móvel Arp
Mixagem: Nrg Studios (Los Angeles)
Arranjos: Jaques Morelenbaum
(exceto em Terra Jorge da Capadócia: criação coletiva).

Ficha Técnica do show Livro Vivo

Direção Geral: Caetano Veloso
Direção Musical: Jaques Morelenbaum; Cenografia: Hélio Eichbauer
Figurino: Cláudio Gomes; Iluminação: Ivan Marques
Operador: André Botto; Cenotécnico: Pedro Girão
Técnico de P.A.: Vavá Furquim; Técnico de Monitor: Flávio Ricardo
Produção Executiva: Beth Araújo; Assessoria Pessoal: Virgínia Casé
Contra-regras: Jorge Ribeiro e Pimpa; Administração: Ivone Salgado.





Encarte via "Encartes Pop".

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