2002 - Bicho Baile Show - Caetano Veloso e Banda Black Rio
Bicho Baile Show uniu Caetano Veloso e a Banda Black Rio num mesmo espetáculo em 1977 e 78. Após voltar da Nigéria, onde participou por um mês de festivais de música ao lado de Gilberto Gil, Caetano fez Bicho ligado nas influências dos ritmos experimentados no outro continente. Para divulgar o álbum, quis fazer um show com uma banda de peso, "feito para dançar". Depois de falar com Oberdan, fundador da Banda Black Rio, Caetano estreou no Teatro Carlos Gomes com metade das poltronas retiradas para abrir uma enorme pista de dança. Críticos da imprensa chamaram aquilo tudo de alienação. Até mesmo durante o show, quando Caetano ia para a plateia dançar durante os temas instrumentais da banda, alguns expectadores o abordavam pedindo explicações sobre o atual direcionamento 'não-político' do seu trabalho. No registro resgatado para o box Todo Caetano (2002), além das canções de Caetano, compõem o repertório músicas de Maria Fumaça (1977), álbum de estreia da banda e considerado o símbolo do movimento Black Rio.
Caetano: "Quando o disco Bicho ficou pronto, apareceu também o movimento Black Rio e a Banda Black Rio. Eu quis então fazer um show com a Banda Black Rio em um lugar onde a gente tirasse as cadeiras para funcionar como pista de dança, ficando o público de pé. O Teatro Carlos Gomes aceitou e fizemos o espetáculo lá. Causou grande celeuma de público e de crítica, todo mundo falava mal, mas eu mantinha aquilo como um conceito. A crítica achava, naquela época, que dançar era uma alienação. Não se podia ir à discoteca e músicas que louvassem esse espírito eram consideradas alienantes, porque muito diferentes daquelas que, teoricamente, eram canções "que protestavam contra a repressão". Eu usava uma roupa cor-de-rosa, de cetim, cheia de franjas. Os bailes que eram apresentados pela Banda Black Rio representavam o início dos bailes funks, que agora dominam o Rio de Janeiro e que se transformaram com uma característica importante: hoje, eles produzem a própria música. Antes, só tocavam música estrangeira. O resultado desse show, que teve uma temporada curta, é esse, o disco Bicho baile show. Eu não sabia da existência dessas gravações, tão profissionais, tão boas, e que ficaram guardadas durante tantos anos. Para mim, foi um presente esse material aparecer. Fiquei fascinado e muito orgulhoso de poder ouvir o resultado dessa colaboração com aquela banda. Ficou bem, acho maravilhoso." (Caetano Veloso. Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002).
"Era um show para dançar e foi muito mal recebido pelo público e pela crítica. Eu estava voltando da África, tinha tocado na Nigéria, na Costa do Marfim e via no movimento Black Rio o surgimento da 'nova favela brasileira', a semente de tudo o que está aí hoje, o rap, o hip-hop; Bicho Baile Show foi um espetáculo muito à frente de seu tempo, do qual eu guardava lembranças agradáveis. Não sabia que existia registro sonoro do show, muito menos registro de boa qualidade. Quem descobriu foi o Charles Gavin." (Caetano Veloso, 2002).
"O Bicho Baile Show, onde havia um tema específico, era uma peça sobre um assunto: dançar. Como se você tem uma peça sobre discos voadores, tem que ter efeitos especiais, e sobre um bairro de Niterói, sei lá, tem que ter esse bairro. O Bicho Baile Show era sobre dança, então a banda tocava, eu cantava, a banda tocava de novo... Mas a maior parte das minhas coisas são espontâneas, mesmo." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 1978).
"Eu estava querendo fazer um show depois do disco e arranjar uma banda de peso. Isso para que o show tivesse o pique de música de peso, música mais animada, para dançar mesmo. Pensei em procurar o Oberdan (Magalhães, líder da banda Black Rio) para que ele me aconselhasse. Eu sabia que ele estava transando uma banda e um trabalho com o Dafé. E até pensei que fosse um trabalho fixo. Pensei 'de todo modo eu vou telefonar porque ele conhece todo mundo aqui no Rio'. Quando eu estava pensando nisso, ele pintou na minha casa. Trouxe a fita do elepê e pediu a minha opinião. Eu achei espetacular. Já tinha ouvido alguma coisa no disco do Dafé, mas nem sabia o nome da banda, nem nada. Sabia que eles queriam fazer uma coisa funk. Aí, o Oberdan me disse que a banda era uma coisa separada, com disco e nome. Achei genial. E pensei 'seria ideal uma banda com esse nível, com esse peso, tocar comigo'. Mas não propus ao Oberdan por modéstia, pensei que não interessasse. Mas ele próprio me perguntou com quem o Gil estava tocando pois eles queriam tocar com alguém. Comigo mesmo se eu quisesse. Eu disse, 'puxa, é exatamente o que estou procurando'. Porque o show é bem uma apresentação da banda. Eu estou presente, a minha transação se dá por inteiro. É bacana, mas é bem mais uma apresentação da banda. E eu fiz questão que fosse assim, porque eles são músicos muito bons. No Brasil, tem muito instrumentista bom, muito músico bom e não tem muito mercado. E quanto mais a gente puder trabalhar nesse sentido, melhor. Esse aspecto tem muita importância para mim. O nosso trabalho foi assim: eu mostrei o meu repertório ao Oberdan e aos outros componentes da banda e eles concordaram. Acharam uma boa. Durante a feitura, eu fiquei bem. Eu ofereci o repertório e não fiquei omisso, dizia o que achava legal e o que não achava. Mas a interferência propriamente musical eu procurei não exercer nenhuma. Primeiro, porque eles são músicos de 10.000 anos luz a mais do que eu. Eles são instrumentistas de muita transação musical. E eu tenho uma relação respeitosa com eles. Hoje em dia, eu tenho a cabeça mais livre e por isso é que deu para fazer exatamente esse trabalho. O sentimento musical deles é muito jazz-Rio. Quer dizer, samba e jazz carioca, que é a formação musical de quase todos eles. Agora, o resultado é de nível elevadíssimo. Musical, profissional e sob todos os pontos de vista. E cada um deles, individualmente, é um grande músico. Então, eu conseguir, hoje em dia, conviver numa boa, num trabalho com esses músicos é uma coisa espetacular. E eu acho que é espetacular para o ambiente. O que eu vi ontem na estréia, o que eu pretendo continuar vendo na temporada, tanto aqui como nos outros lugares em que a gente se apresentar, é que isso é uma coisa boa. Uma coisa que realmente é produtiva para o ambiente de música no Brasil." (Caetano Veloso para a Revista Música, 1977).
Caetano Veloso e Banda Black Rio.
Entrevista para o Jornal do Brasil, 02/10/1977
Para ler: clique na imagem.
Entrevista para o Jornal O Globo, 20/08/1978
Na entrevista que acompanha, para divulgação, o disco (Muito), você fala bastante da transição entre o Bicho Baile Show e o espetáculo do Clara Nunes, que resultou no Muito. E de como uma coisa não representava a negação da outra, ou seja, de como Muito não renegava o Bicho nem o trabalho com a Banda Black Rio.
CV: A passagem de uma coisa a outra foi inteiramente casual. Eu tinha um plano, já de muito tempo, de ter um som assim mais transado, tanto para mim quanto para os músicos, e isso foi tomando corpo com isso da gente tocar em casa, com amigos, surgindo daí essa banda, a Outra Banda da Terra. E a gente acabou subindo num palco porque o lance com a Banda Black Rio na Concha Verde não deu certo, porque eles estavam com problemas internos na banda e não queriam fazer o show naquela época. Só se fossem shows vendidos, porque aí eles tinham um dinheiro certo, e eles tinham medo de não lotar a Concha Verde, mas eu sabia que ia superlotar. Era o momento certo, a coisa tinha sido muito discutida, tinha sido sucesso em São Paulo, era uma volta... mas o pessoal da Black Rio não tinha nenhuma maturidade com relação a esse tipo de diálogo com as plateias. Porque o modo como o Bicho Baile Show transcorreu no Rio de Janeiro deu uma impressão muito negativa pra eles e eles demonstraram uma certa fragilidade, mas pra mim esse tipo de reação era uma coisa conhecida. Quer dizer, eles esperavam, porque eu tinha falado e tudo, sabiam que ia dar discussão, como eu achava que podia dar, mas mesmo assim havia mais otimismo do que reconhecimento verdadeiro de que poderia ser não uma mina de ouro mas um problema que a gente estava criando pra gente mesmo. E foi um problema, mesmo. E nem todos os participantes da banda estavam tão entusiasmados com o próprio tipo de música em que eles estavam oficialmente interessados. Havia uma discussão interna, uma discussão riquíssima, pra mim, importante e boa. O tipo de música que a maioria deles podia curtir era uma coisa mais ligada ao Bossa Rio, samba-jazz, mas o Oberdan e o Luís Cláudio tinham a cabeça feita para soul music e queriam fazer uma coisa nesse sentido, achando que era jóia, mas nem todos pensavam assim, achavam que talvez fosse um lance comercial da gravadora. Então a Banda Black Rio era, de certa forma, fragilizada profissionalmente por esses problemas estéticos que são fertilíssimos. E era uma banda de nível musical muito elevado.
E essa discussão interna da banda, embora fosse uma experiência rica para você, como observador - assim uma espécie de resumo da história dos músicos do Rio de Janeiro - não prejudicava também a força de seu próprio trabalho com ela?
Prejudicar, propriamente, não. Era uma fragilização profissional que já havia na minha própria coisa. Se eu tivesse pegado uma banda completamente ligada naquilo que ela realmente quer fazer, quer dizer, uma banda de...
E esses temas nos quais você estaria interessado seriam corpo, dança?
É, corpo, dança... e uma coisa que não foi pensada na época, porque eu não sabia o nome da banda, mas quando o Oberdan me falou que era Black Rio eu pensei, vai ter tanta, mas tanta confusão com isso, vão dizer que eu estou querendo me meter em movimento de Black Rio... e eu, nunca... eu li as reportagens que saíram, achei interessante, mas não queria me manifestar necessariamente sobre isso. Mas no fim das contas eu achei maravilhoso. Achei que tinha o assunto do negro naquela coisa toda, que tem a ver com a dança e tudo. Mas esse aspecto não foi pensado, embora, quando resultou, achei muito justo. Eu tinha ido à África, no disco Bicho eu falava de Pelé, da África, imitando música africana, falava na Nigéria, enfim eu estava naquela, realmente. E quanto ao Black Rio eu vi várias pessoas de nome, inteligentes, falarem, mas acho que eles estão por fora. Eu vi o Aldir Blanc falar, e o Ferreira Gullar, e o Sérgio Cabral... todos estão por fora, na minha opinião. Totalmente.
E como você vê o Black Rio?
Eu nem vejo, propriamente. Eu não gostaria nem muito de me exprimir assim tão peremptoriamente sobre o assunto. Mas eu acho que é o seguinte: o preto é preto, é uma coisa que é verdade, que é internacional em qualquer lugar do mundo. Essa coisa de que o preto brasileiro tem de ser assim ou assado é uma coisa totalmente injusta, porque, quando o samba é produto industrial de São Paulo e nas áreas de escola de samba as pessoas se interessam por 'soul', e os pretos de Itapoã na Bahia 'soul music', não teria sido uma coisa muito real. Quando eu combinei o trabalho com Oberdan eu nem sabia o nome da banda, combinei porque ele falou o nome dos músicos, a gente ia fazer uns arranjos, uma coisa assim de banda pesada. Mas eu tinha consciência naquela altura, como tenho hoje, que eu não posso fazer o show do Tim Maia. Ele faz uma coisa maravilhosa nessa linha, mas eu só queria estar perto disso. Então o que aconteceu era o mais real possível, passou a informação mais limpa. Tinha que ser uma coisa entre uma coisa e outra, com os conflitos internos. Para o meu trabalho, foi o certo.
E a reação negativa, aqui no Rio? Seria a decepção das pessoas por encontrar você quase como crooner da banda, dividindo o espetáculo com eles em vez de fazer um show só seu?
Bom, isso, sem dúvida, era muito forte. Mas em São Paulo não houve problema nenhum, de espécie alguma. Foi uma coisa inteira, as pessoas dançavam muito, aplaudiam muito, gritavam, quiseram fazer uma passeata no primeiro dia, porque acabou e não queriam ir embora do teatro, ficavam gritando e pulando e cantando. Em Belo Horizonte foi mais discussão ainda do que no Rio, foi uma loucura. Era estranho demais, assobiavam, gritavam coisas, me pegavam pelo braço quando eu descia na platéia, discutiam, diziam que eu era alienado. Foi uma coisa muito cheia de conflito. Eu não queria fazer assim. Não gostei. Assim não dá, não estou aqui pra criar polêmica. Estou a fim que se veja e se transe e se tente perceber que eu estou interessado em determinadas coisas, em determinados temas. Pode não encher a casa nem me dar dinheiro, mas tem que saber disso. Mas não quero também criar uma polêmica, ficar um ano discutindo se as pessoas devem ou não dançar, não dá.
Ouvem 'soul' e dançam 'soul' no carnaval, dançam música de Bob Marley, tocam Bob Marley em Itapoã, é impressionante... então é uma coisa que está na cara, não é? Eu vi na televisão um sujeito dizer: "Samba tá por fora, quadra de escola de samba é lugar de quem espicha o cabelo". Eu não sei no que vai dar, não sei o que é, nem sou preto, já disse, sou mulato, meu filho se chama Moreno, acho ótimo essa coisa de morenidade e tudo isso, mas não acho que a gente tenha uma questão racial resolvida, aqui, e que todas as expressões culturais que saíram disso já bastam e que isso não vai se movimentar. Eu acho que você não admitir que isso se movimente é você ter muito medo da realidade e querer tapar o sol com a peneira. As pessoas pretas são pessoas, estão aí, não sei o que elas querem, não posso falar por elas mas também não posso impedi-las de falar, de se manifestar. E se alguém impede acho que está errado. Eu achei repressivo dizer que não pode, que está errado, que tem de dançar samba. Eu acho que isso não pode ser decidido assim, que história é essa? Em bom português: agradecemos muitos aos senhores negros que já deram um pouco de colorido, sal e pimenta à nossa cultura e agora podem morrer. Não, tá errado.
A maior parte das críticas ao seu trabalho no Bicho Baile Show e no disco Bicho eram justamente com relação a esses temas que você escolheu. Dança, corpo, isso foi visto como uma coisa alienante.
Isso foi uma coisa mais pessoal com relação ao que eu estava fazendo. O que eles estavam querendo de mim era que eu quisesse entrar nessa trip politizante da abertura, não sei o quê. E eu não me sinto na obrigação de entrar. Eu não acho que seja necessariamente a coisa menos alienante o que um artista possa fazer, agora. Eu não me sinto nem um pouco inclinado a fazer coisas assim como o show da Elis, ou como o disco Meus Caros Amigos, do Chico, enfim, coisas assim que eu acho maravilhosas, mas que eu não me acho na obrigação de fazer também. Eu não curto. Entendo tudo isso, essa necessidade de se falar em redemocratização, em liberdades, justiça social, distribuição da renda, eu acho certo, mas não é só isso. Isso é muito complicado, politicamente, de repente uma coisa nem está desempenhando o papel que deveria estar... mas mesmo assim eu não estou interessado nisso. Tem gente que está muito interessada nisso. O Glauber, por exemplo. Ele fala muito, diz um monte de coisas, e eu acho que ele é um artista e tem uma necessidade enorme de dar opiniões políticas e tem opiniões políticas originais, tem uma coisa pra dizer, está discutindo, aí. Ele tem interesse nessa área bem superior ao meu, e mesmo assim tem um tipo de opinião diferente da que os outros artistas em geral têm quando se trata de política. Quanto mais eu, que não estudo essas coisas, não fico ligado. E todo esse pedido que vinha pra mim pra que eu fizesse uma coisa que eu nunca fiz, na verdade. Jogavam na minha cara: Você fez, deixou de fazer... nunca fiz! Nunca fiz! Sempre fiz o que eu faço: uma coisa que é o que vem de mim, que é o que eu sinto das coisas, nunca foi nada disso, nunca fiz onda de política. Essas pessoas que estão assim na minha classe, classe média, que compram disco, que vão à universidade, que vêm filme, que falam de coisas, essa gente, nós, dessa nossa área, estão sempre reclamando. Tanto que eu nem liguei muito, nem quis discutir. Não deu pra ficar falando muito, já falei tudo isso antes.
E os temas do Bicho - dança, corpo - foram adiados, cancelados, ou correm paralelos dentro desse trabalho (Muito), agora?
Correm paralelos. É a mesma coisa. Com o grupo com que eu estou, agora, dá pra ter isso incorporado. Você vê que o Arnaldo é um baixista muito 'funky', a gravação de Odara era dele. O disco Bicho foi feito antes de eu encontrar a Banda Black Rio, não dependeu da Banda Black Rio eu ter esse interesse.
Mas, como um todo, os trabalhos de Bicho e de Muito resultaram inteiramente diferentes.
É, completamente diferentes. Mas você entenda bem que de uma certa forma tanto o Bicho como o Bicho Baile Show eram mais uma referência ao assunto dançar do que a produção da melhor música para dançar. Eu acho que a maioria das pessoas que fazem coisas dançantes no Brasil fazem melhor do que eu. E eu não pensava dar o melhor produto no gênero dançante: eu pensava em me referir à coisa, fazer coisas vinculadas a isso. Eu não vou fazer músicas de discothèque, não vou me treinar para isso, nem pretendo. Eu nem gosto muito de discothèque. Só gostava do "Dancin' Days" da Gávea, porque era um lugar onde eu me sentia à vontade , me sentia entre pessoas que eram iguais a mim. O novo eu nem vi direito, não sei. Mas as outras, eu não gosto de nenhuma.
E da música de discothèque?
Eu gosto da música, muitas coisas. Eu não gosto muito de Donna Summer, essa coisa alemā, com uma mulher de voz fraquinha, eu não gosto. Mas essa coisa tribal, de ritmo batido, tudo o que é 'Soul'... Barry White , por exemplo, eu achei maravilhoso.
Música de discothèque não lhe parece uma coisa exclusivamente industrializada?
É uma coisa industrializada, mas é também uma coisa tribalizada. Tem um lado que já fica baixo astral, o de ser uma coisa feita só para dar grana, mas o acontecimento em si... que não é novo, discotèque já era muito sucesso em 68, com ritmos parecidos, 'Soul music' e tudo, no final dos Beatles a discotèque já era uma coisa da moda, no Brasil. Só que agora ficou de massa, discothèques maiores, mas baratas, proliferou. E eu acho que é uma coisa boa, um modo mais tribal de ser, uma vontade expressa pelos produtos humanos das sociedades industriais em geral de retribalizar-se. Isso já apareceu no rock, não é por acaso que Mick Jagger adora e imita música de discothèque. Aliás os Rolling Stones também não fazem uma boa música de discotèque, mas não se incomodam de imitar. Numa certa medida o que eu faço é isso, também, num outro nível inteiramente diferente, porque é Brasil, porque sinto que a gente é outro lance de moda, uma produção em série.
E é, mas acontece que desde a década de 60 a gente já desbaratinou esse problema do produto industrial. Hoje em dia ou você supera a situação industrial ou você já topa. Não se fica mais pensando em arte nobre e arte industrial, tudo isso dançou nos anos 60. E, pra mim, dançou mesmo, eu sou assim super-refinado, quero a coisa super-refinada, mas num lance de quem já topou a arte industrial, já passou por esse lance todo. Às vezes é um conjunto de fatores dessa coisa industrial que vai resultar em algo jóia, que não foi ninguém que criou. Como foi em alguns momentos o cinema de Hollywood, como hoje é, em alguns momentos, a televisão. Eu sou contra o baixo astral das relações econômicas, esse baixo astral de dominação, exploração, engano, mentira, isso que as relações econômicas produzem e significam, no estágio em que estão. Mas eu acho que o que interessa pode vir de qualquer lugar. Mesmo porque o comércio e a moda se movimentam de acordo com as necessidades das pessoas, no caso, dançar, ter uma coisa espontânea, menos pensada... eu acho uma coisa boa. O que não sei resolver é o baixo astral de dominação humana, do poder do homem, como isso pode se exercer de uma forma luminosa, bela, e não de um modo injusto... isso eu não sei como é. Mas eu procuro e acho que todo mundo deve procurar. Eu penso essas coisas, mas na verdade, na verdade mesmo, eu faço música e vivo disso. Isso é uma coisa de que eu me lembro sempre, e é uma coisa muito forte em si, que define muito o que eu sou. Por mais que eu pense sobre o mundo, não posso realmente decidir os destinos do mundo. Posso falar um monte de coisas, como falei agora, que a gente deve se libertar para uma coisa maior. Mas, principalmente, eu faço música e vivo disso.
Caetano toma uma Coca-Cola no camarim do Bicho Baile Show, 1978.
Banda Black Rio
Oberdan P. Magalhães - Sax-soprano, Sax-alto e Sax-tenor
Lúcio J. da Silva - Trombone
J. Carlos Barroso - Trompete
Jamil Joanes - Baixo
Luiz Carlos Santos - Bateria
Cláudio Stevenson - Guitarra
Cristovão Bastos - Teclados
Músico Convidado: Cidinho Moreira - Percussão
Lista de Músicas
1 - Intro / Odara
(Caetano Veloso)
2 - Odara
(Caetano Veloso)
3 - Tigresa
(Caetano Veloso)
4 - London, London
(Caetano Veloso)
5 - Na Baixa do Sapateiro
(Ary Barroso)
6 - Leblon Via Vaz Lobo
(Oberdan)
7 - Maria Fumaça
(Oberdan, Luiz Carlos)
8 - Two Naira Fifty Kobo
(Caetano Veloso)
9 - Gente
(Caetano Veloso)
10 - Alegria, Alegria
(Caetano Veloso)
11 - Baião
(Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira)
12 - Caminho da Roça
(Oberdan, Barroso)
13 - Qualquer Coisa
(Caetano Veloso)
14 - Chuva, Suor e Cerveja
(Caetano Veloso)
Vamos às Letras.
1 - Intro / Odara (Caetano Veloso)
Instrumental
2 - Odara (Caetano Veloso)
Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara
Minha cara minha cuca ficar odara
Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que se sonhara
Canto e danço que dará
3 - Tigresa (Caetano Veloso)
Uma tigresa de unhas negras
E íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza
Que me aconteceu
Esfregando a pele de ouro marrom
Do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom e o bem cruel
Enquanto os pelos dessa deusa
Tremem ao vento ateu
Ela me conta sem certeza
Tudo o que viveu
Que gostava de política
Em mil novecentos e sessenta e seis
E hoje dança no Frenetic Dancin' Days
Ela me conta que era atriz
E trabalhou no Hair
Com alguns homens foi feliz
Com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração
Que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor
Mas ela ao mesmo tempo diz
Que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis
Inventando um lugar
onde a gente e a natureza feliz
Vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que o leão
As garras da felina
Me marcaram o coração
Mas as besteiras de menina
Que ela disse não
E eu corri pra o violão num lamento
E a manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um instrumento
4 - London, London (Caetano Veloso)
I'm wandering round and round, nowhere to go
I'm lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I'm wandering round and round here, nowhere to go
While my eyes go looking for flying saucers in the sky
Oh Sunday, Monday, Autumn pass by me
And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
He seems so pleased to please them
It's good, at least, to live and I agree
He seems so pleased, at least
And it's so good to live in peace
And Sunday, Monday, years, and I agree
While my eyes go looking for flying saucers in the sky
I choose no face to look at, choose no way
I just happen to be here, and it's ok
Green grass, blue eyes, grey sky
God bless silent pain and happiness
I came around to say yes, and I say
But my eyes go looking for flying saucers in the sky
Yes, my eyes go looking for flying saucers in the sky
While my eyes go looking for flying saucers in the sky
Foto: Revista Amiga, 1978.
5 - Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso)
Instrumental
6 - Leblon Via Vaz Lobo (Oberdan)
Instrumental
7 - Maria Fumaça (Oberdan, Luiz Carlos)
Instrumental
8 - Two Naira Fifty Kobo (Caetano Veloso)
No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé
Faz força com o pé na África
O certo é ser gente linda e dançar, dançar, dançar
O certo é fazendo música
A força vem dessa pedra que canta Itapuã
Fala tupi, fala iorubá
É lindo vê-lo bailando ele é tão pierrô, pierrô,
Ali no meio da rua lá
Caetano e Banda Black Rio.
9 - Gente (Caetano Veloso)
Gente olha pro céu
Gente quer saber o um
Gente é o lugar
De se perguntar o um
Das estrelas se perguntarem se tantas são
Cada, estrela se espanta à própria explosão
Gente é muito bom
Gente deve ser o bom
Tem de se cuidar
De se respeitar o bom
Está certo dizer que estrelas estão no olhar
De alguém que o amor te elegeu pra amar
Marina Bethânia Dolores Renata Leilinha Suzana Dedé
Gente viva brilhando estrelas na noite
Gente quer comer
Gente que ser feliz
Gente quer respirar ar pelo nariz
Não meu nego não traia nunca essa força não
Essa força que mora em seu coração
Gente lavando roupa amassando pão
Gente pobre arrancando a vida com a mão
No coração da mata gente quer prosseguir
Quer durar quer crescer gente quer luzir
Rodrigo Roberto Caetano Moreno Francisco Gilberto João
Gente é pra brilhar não pra morrer de fome
Gente deste planeta do céu de anil
Gente, não entendo gente nada nos viu
Gente espelho de estrelas reflexo do esplendor
Se as estrelas são tantas só mesmo o amor
Maurício Lucila Gildásio Ivonete Agripino Gracinha Zezé
Gente espelho da vida doce mistério
10 - Alegria, Alegria (Caetano Veloso)
Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço, sem documento
Eu vou
Eu tomo uma Coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do brasil
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não, por que não
Caetano em ensaio com a Banda Black Rio.
11 - Baião (Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira)
Instrumental
12 - Caminho da Roça (Oberdan, Barroso)
Instrumental
13 - Qualquer Coisa (Caetano Veloso)
Esse papo já tá qualquer coisa
Você já tá pra lá de Marrakesh
Mexe qualquer coisa dentro, doida
Já qualquer coisa doida, dentro, mexe
Não se avexe não, baião de dois
Deixe de manha, deixe de manha
Pois, sem essa aranha, sem essa aranha, sem essa aranha
Nem a sanha arranha o carro
Nem o sarro arranha a Espanha
Meça tamanha, meça tamanha
Esse papo seu já tá de manhã
Berro pelo aterro, pelo desterro
Berro por seu berro, pelo seu erro
Quero que você ganhe, que você me apanhe
Sou o seu bezerro gritando mamãe
Esse papo meu tá qualquer coisa e você tá pra lá de Teerã
14 - Chuva, Suor e Cerveja (Caetano Veloso)
Não se perca de mim
Não se esqueça de mim
Não desapareça
A chuva tá caindo
E quando a chuva começa
Eu acabo perdendo a cabeça
Não saia do meu lado
Se grude em meu pierrot molhado
E vamos embolar ladeira abaixo
Acho que a chuva ajuda a gente a se ver
Venha veja deixa beija seja
O que deus quiser
A gente se embala se embora se embola
Só pára na porta da igreja
A gente se olha se beija se molha
De chuva suor e cerveja
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Ficha Técnica
Show produzido por Caetano Veloso e Banda Black Rio, no Teatro Carlos Gomes,
Rio de Janeiro, segundo semestre de 1978.
Gravado ao vivo por Mazola; Assistente de gravação: Liminha
Masterizado por Ricardo Garcia no Magic Master, Rio de Janeiro, setembro de 2002
Assistente: Sergio Chataigner
Editado por Guilherme Calicchio e Charles Gavin
Pesquisa, supervisão e produção executiva: Charles Gavin
Supervisão geral: Caetano Veloso
Fotos Caetano: Orlando Abrunhosa; Fotos Banda Black Rio: Arquivo / Agência O Globo
Projeto gráfico: Pós Imagem Design; Revisão: Dani Dias
Coordenação gráfica: Gê Alves Pinto e Geysa Adnet
Agradecimentos: Paula Lavigne, Conceição Lopes e Orlando Abrunhosa
Uma produção Natasha Produções, licenciada para Universal Music