2002 - Eu Não Peço Desculpa - Caetano Veloso e Jorge Mautner


Eu Não Peço Desculpa (2002) reuniu Caetano Veloso e Jorge Mautner num mesmo disco. A ideia surgiu de Caetano depois das conversas que teve com o amigo que conheceu ainda em Londres, no exílio. Todo Errado inicia o álbum, ganhou clipe com a Esquadrilha da Fumaça e foi inspirada em duas falas: a primeira, do pai de Mautner, dizia que não importa o que você fizer, estará sempre errado. E a segunda, de Thomas Mann, declarava: "O amor está em quem ama e não no ser amado". Feitiço responde Noel Rosa, cita a música famosa na voz de Ivete Sangalo e põe no mesmo caldeirão antropofágico Princesa Isabel e Zumbi dos Palmares. Mautner gravou Cajuína e transportou a canção do nordeste brasileiro para as suas raízes familiares do leste europeu. Maracatu Atômico ganhou um toque baiano com a percussão comandada por Márcio Victor ao mesmo tempo em que Lágrimas Negras ficou belíssima na voz de Caetano. Gilberto Gil empresta seu violão em Coisa Assassina, parceria sua com Mautner. O Namorado é o espelho da canção feminina de Carlinhos Brown e Urge Dracon brada ao preceder os tambores do candomblé: "Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista!". Entre o cômico e o trágico, o disco soa, de fato, com a leveza de um papo entre amigos que falam de sexo, da vida, do amor e da morte. A banda dos shows de divulgação do disco contou com Nelson Jacobina, Pepe Cisneros, Domenico Lancellotti, Kassin, Pedro Sá e André Júnior.

Caetano: "Foi uma coisa maravilhosa. Eu não Peço Desculpa, que é a primeira frase da canção Todo Errado, né? E a gente botou como título do disco. Eu que inventei essa onda, fiquei falando com Mautner pra gente fazer e ele ficou animado. Então fizemos e planejamos fazer umas canções inéditas para o disco mesmo, fazer uma parte do repertório especial para o disco. Saíram umas canções incríveis. Muito boas... Tarado é linda. Tem várias. E eu adoro a minha gravação do Maracatu Atômico, adoro porque é a percussão que o Márcio Victor fez. Aquele maracatu feito por um baiano. Ele criou aquele negócio com a catedral de percussão que ele é capaz de construir quase que sozinho dentro do estúdio. Chama dois amigos e faz um negócio estupendo. E o Mautner com aquelas ideias divinas, né? A graça divina. Tem uma música que se chama Graça Divina. Nós fizemos um show que é um dos shows de que eu mais gostei também de fazer na vida. Um show junto com o Mautner. Sobretudo, aqui no Canecão, no Rio, era uma beleza. A gente cantava a música de Maysa, Resposta, porque Maysa foi figura importante para ele (aparece mesmo no primeiro livro dele) e importante para mim. Uma música de Rock'n'roll dos anos 50 por causa do que aparece no livro dele: Rock Around the Clock e nossas canções. Todo Errado, a gente cantando junto... Manjar de Reis ainda com o Nelson Jacobina tocando com a gente. O Mautner traz uma atmosfera que pra mim é uma felicidade porque eu não tenho aquilo, entende? Ele traz toda uma coisa que eu não tenho." (Caetano Veloso em entrevista nos seus 70 anos, 2012).

“As nossas conversas eram muito engraçadas. Mas o disco tem um tom mais jocoso que as conversas.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 2002).

"Quis fazer um disco com Mautner para dizermos coisas que só poderíamos dizer em conjunto. É uma necessidade minha, fiz mais para mim do que para ele. Fiquei fascinado pela alta frequência do erotismo no disco. Eu sei, e acho que ele sabe, que o conteúdo central de tudo é o sexo." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2002).

"O disco saiu na época perfeita, porque teve tempo de amadurecer. Não falamos de amarguras, mas das alegrias. Comecei a sentir o mundo estranho quando os talibãs destruíram os budas do Afeganistão e estive em Nova York no dia 10 de setembro. Isso e outras questões me trouxeram uma amargura que só se interrompeu no carnaval, quando vi Mautner cantando o Hino do Carnaval Brasileiro num trio elétrico. Daí surgiu o disco. Fomos direto ao conteúdo das coisas. Agora, como há 30 anos, Mautner trouxe novidade ao nosso modo de olhar as coisas, uma avaliação nova, não só na música, mas na política, na vida, em tudo." (Caetano Veloso para O Estado de S. Paulo, 2002).

Mautner: "Tratamos de medo e terror, risos e gargalhadas, mas o assunto central é conciliação e reconciliação." (Jorge Mautner para O Estado de S. Paulo, 2002).

"Eu caí para trás. É o primo rico e o primo pobre, é Hades [deus dos mortos] dos infernos elevado ao Olimpo." (Jorge Mautner para a Folha de S. Paulo, 2002).

"A responsabilidade de se gravar um disco com um amigo é diferente. Você talvez não precise pensar em tudo, compor tudo, mas por outro lado é com um amigo que você está trabalhando. As músicas vêm das nossas conversas." (Jorge Mautner para o Jornal O Globo, 2002). 

Caetano e Mautner. Foto: Divulgação.

Release

As risadas e os sustos que as conversas com Mautner sempre provocam excitaram minha imaginação de modo especial nos encontros que tivemos entre outubro e dezembro de 2001, o que me levou a desejar fazer um disco em colaboração com ele. A amizade que mantemos desde que nos vimos pela primeira vez, em Londres, no começo da década de 1970, é e foi sempre muito importante para mim. Mas nunca tive tão clara em minha mente a pergunta sobre minha verdadeira ambição quanto durante esses papos mais recentes: certamente o que ambiciono não é a fama e menos ainda a riqueza "material"; será a poesia?, a política? ou... a profecia?

Foi essa hipótese da ambição profética que me levou a propor a Mautner o disco conjunto. Porque Jorge é uma improvável mistura de paganista com profeta de Israel. Daí é que vem o fascínio que sua curiosa personalidade paraliterária, paramusical, e parapolítica (sua instigante personalidade 'tout court') exerce sobre mim. Sem dúvida, é dessa combinação que vieram suas inclinações de adolescência para liderar movimentos com características quase fascistas, o que, paradoxalmente (?), o levou aos altos círculos do Partido Comunista e, sobretudo, à produção de um romance assombrosamente forte chamado "Deus da Chuva e da Morte". A experiência, na extrema juventude, de debruçar a imaginação mítica sobre informações secretas da política pesada deu-lhe uma visão única (e mais contraditória na aparência do que na realidade) de como se joga com o poder no mundo. Uma visão que ele não cansa de reconstruir, me virar, atualizar.

Os terríveis acontecimentos de 11 de setembro de 2001, envolvendo Nova Iorque, cidade amada por ele e por mim, e repercutindo na situação de Israel, país que adoramos, e no vasto islã, que nos fascina e nos remete à pergunta pelo destino da idéia central do povo judeu, o monoteísmo, nos levaram a conversas sobre o mundo, o Brasil, a vida dos homens. Nessas conversas, às vezes eu sentia medo. Pois bem: foi para espantar o medo que decidi pedir a Jorge que deixássemos tudo desaguar em canções. Depois de vê-lo, no carnaval de 2002, em Salvador, cantar o Hino do Carnaval Brasileiro, num trio elétrico, em meio a um verão singularmente amargo para mim, entendi que o disco teria de ser feito logo que eu voltasse para o Rio. As canções que fizemos não lembram ou ilustram essas conversas de que falei. São, em geral, canções pop-paródicas: elas exibem o distanciamento que Mautner mantém em sua permanente metamorfose apaixonada. Fazem rir e podem fazer chorar.

Algumas eu fiz sozinho, mas não as teria feito se não fosse para um disco com Jorge Mautner. Tudo no disco tem a ver com o clima dele ­- ou com o clima a que ele me transporta. Hipertropicalista, porque tropicalista 'avant la lettre', Mautner não pode conceber o que venha a ser uma necessidade de criar-se o antitropicalismo (uma necessidade genuína que muita gente mais jovem confessa sentir -­ o que não deve ser confundido com as, talvez, mais freqüentes manifestações de mesquinhos desejos de substituição de celebridades): ele reanima as motivações elementares daquele movimento, que são, afinal, as mesmas que movem seus principais líderes: eis por que Gil foi chamado para cantar conosco o meu Feitiço (uma resposta ao Feitiço da Vila, de Noel) e para pôr música nos versos de Coisa Assassina, de Mautner. É não apenas o Gil tropicalista que está ali: é o Gil que excursionou com Mautner nos anos 1980 com o show O Poeta e o Esfomeado. Mas Mautner é hipertropicalista também porque ele não foi, à época do movimento, um tropicalista: estes eram bossa-novistas que se subvertiam; Mautner era, tal como Raul Seixas, um amante do rock-'n'-roll e das baladas country norte-americanas (além dos samba-canções de Adelino Moreira) que exibia (até no texto de seus primeiros livros) desprezo pela bossa nova. De fato, ao gravar com ele Todo Errado (de onde, afinal, saiu o título do disco), pensei muito em Raul e nas coisas da letra de Rock'n'Raul. Assim, Eu Não Peço Desculpa é também uma continuação de Rock'n'Raul, essa canção que me parece tão grandiosa quão mal compreendida.

Gravei Lágrimas Negras e o Maracatu Atômico porque acho esta uma obra-prima obrigatória e aquela uma das mais belas canções sobre a tristeza já feitas. E porque queria pontuar o disco com lembretes do peso da obra de Jorge. Pedi a ele que escolhesse algo meu para regravar: ele chegou ao estúdio com essa Cajuína que ele acreditava ser puramente nordestina e se revelou tão eslava em sua voz e em seu violino que Kassin, que produziu o disco comigo (ou para mim), resolveu adicionar palmas e um fole (que às vezes toca uma terça menor em choque com a terça maior de um acorde recorrente). Sem Kassin, aliás, este disco não seria o que é. Kassin, que conheci através de Moreno ­- que, por sua vez, o conheceu por intermédio de Pedro Sá -,­ é um talento imenso e muito peculiar. Totalmente do mundo dos novos miniestúdios com ProTools, informadíssimo, inspiradíssimo, ele tem tão pouco medo do ridículo quanto Mautner -­ e a mesma capacidade de estar sempre roçando a paródia. Tem também um suingue inacreditável. Seu baixo bate no tempo de modo tão gostoso e moderno (sem fazer sotaque de baixista suingado de jazz-fusion) que parece que não tem ninguém tocando, que é o próprio tempo dizendo-se, sem um ego chato para atrapalhar. Pedro Sá, Davi, Domenico, Moreno e outros músicos convidados entravam e saíam da sala minúscula do estúdio.

Nelson Jacobina estava sempre lá: o grande Nelson, o Carneirinho, principal parceiro de Jorge (não só o mais freqüente, como também co-autor das obras-primas). Fabiano, pilotando, só transmitia tranqüilidade, doçura e segurança. Tarta, quase que só doçura. Havia também uma foto da Luana Piovani pregada na porta, do lado de dentro do estúdio. Dizíamos que ela era a nossa padroeira: ela foi a madrinha da bateria do nosso samba. Um dia eu a levei lá. Em carne e osso. Parecia uma visão irreal. Ela ficou até o fim da sessão. Todos os rapazes ficaram extasiados. Ninguém se recuperou ainda direito. Quem canta seus males espanta. Este disco é para a gente atravessar esses tempos de homens-bomba, especulação globalizada, dengue e insegurança. Com a ajuda da lua de Jorge -­ e das Luanas ­ - chegaremos vivos a um outro ambiente. (Release do CD Eu Não Peço Desculpa - 2002).

Foto: Leonardo Aversa.

Lista de Músicas

1 - Todo Errado
(Jorge Mautner)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Bateria: Domenico / Guitarra e violão de aço: Pedro Sá / Violino: Jorge Mautner / Hammond: Pepe Cisneros / Baixo: Kassin.

2 - Feitiço
(Caetano Veloso)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Violão: Caetano Veloso / Pandeiro, Timbau e Surdo : Marcio Victor  / Pandeiro,  Timbau e Sheik: Du / Pandeiro e Timbau: Jó e Serginho Todo Grande / Acordeom: Guilherme Maravilhas / Baixo: Kassin / Trombone: Paulo Williams.

3 - Manjar de Reis
(Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Violão: Nelson Jacobina / Bateria: Domenico / Guitarras: Pedro Sá / Baixo e programação: Kassin / Violino: Jorge Mautner / Rhodes: Pepe Cisneros / Bateria: Stéphane San Juan.

4 - Tarado
(Caetano Veloso, Jorge Mautner)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Baixo, banjo, glockenspiel e programação: Kassin / Bateria: Domenico / Guitarra: Pedro Sá / Bongô: Marcio Victor / Pedal Steel: Rick Ferreira / Violino: Jorge Mautner.

5 - Maracatu Atômico
(Nelson Jacobina, Jorge Mautner)
Voz: Caetano Veloso / Guitarras: Pedro Sá / Baixo e programação: Kassin / Caixa, agogô, surdo, campana, atabaque,  aro de surdo, cowbel e caixa dobrada: Marcio Victor / Caixa, agogô, surdo e campana: Serginho Todo Grande / Caixa, agogô, surdo, campana, cowbel e rocar: Jó / Caixa, agogô, surdo, campana, cowbel e tambor maracatu: Du / Programação: Berna Ceppas.

6 - O Namorado
(Caetano Veloso)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Bateria: Domenico / Guitarra: Pedro Sá / Baixo, shamissen, guitarra, vocoder e pandeirola: Kassin / Hammond: Pepe Cisneros / Conga: Marcio Victor / Sininho: Serginho Todo Grande / Erhu: Moreno Veloso / Cowbel: Jó / Gho Zheng: Dado Villa Lobos
+
Urge Dracon
(Jorge Mautner)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Violão: Nelson Jacobina / Caixa, atabaque, agogô, garrafa e pandeiro: Marcio Victor / Caixa, atabaque, agogô e campana: Jó / Caixa, atabaque e garrafa: Serginho Todo Grande / Caixa, atabaque, agogô, surdo e campana: Du / Trompete: Jessê Sadoc / Trombone: Aldivas Ayres / Trompas: Ismael de Oliveira e Francisco de Assis Soares / Tuba: Eliezer Rodrigues / Trompete: Gesiel Nascimento / Arregimentação: Paschoal Perrota / Arranjo de metais e regência: Laércio Freitas / Coro: Caetano Veloso, Kassin, Nelson Jacobina, Davi Moraes, Dadi Carvalho e Berna Ceppas. 

7 - Coisa Assassina
(Gilberto Gil, Jorge Mautner)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Violão: Gilberto Gil / Violino: Jorge Mautner / Programação: Berna Ceppas e Kassin. 

8 - Homem Bomba
(Jorge Mautner, Caetano Veloso)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Violão, banjo e bandolim: Davi Moraes / Pandeiro e timbau: Marcio Victor / Timbau e Sheik: Du / Timbau, surdo e pandeiro: Jó / Timbau e tamborim: Serginho Todo Grande / Violão 7 cordas: Paulão / Programação: Kassin.

9 - Lágrimas Negras
(Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
Voz: Caetano Veloso / Bateria: Domenico / Violão: Nelson Jacobina / Guitarras: Pedro Sá / Rhodes e sintetizador: Pepe Cisneros / Baixo e programação: Kassin. 
+
Doidão
(Jorge Mautner)
Voz: Jorge Mautner / Violão: Nelson Jacobina / Caixa, surdo e pandeiro: Marcio Victor / Caixas: Jó, Du e Serginho Todo Grande / Baixo Synth e efeitos: Kassin.

10 - Morre-se Assim
(Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Violão e guitarra: Nelson Jacobina / Violino: Jorge Mautner / Baixo e programação: Kassin / Guitarras: Pedro Sá / Bateria: Domenico / Rhodes e congas: Pepe Cisneros. 

11 - Graça Divina
(Caetano Veloso, Jorge Mautner)
Vozes: Jorge Mautner e Caetano Veloso / Violão: Pedro Sá / Bandolim: Davi Moraes. 

12 - Cajuína
(Caetano Veloso)
Voz e violino: Jorge Mautner / Violão: Nelson Jacobina / Acordeom: Guilherme Maravilhas / Pandeiro árabe: Moreno Veloso / Palmas: Caetano Veloso,  Moreno Veloso,  Domenico,  Daniel Carvalho,  Berna Ceppas,  Kassin e Jorge Ribeiro.

13 - Voa, Voa, Perereca
(Sergio Amado)
Voz e violão: Caetano Veloso.

14 - Hino do Carnaval Brasileiro
(Lamartine Babo)
Vozes: Caetano Veloso e Jorge Mautner / Guitarra: Davi Moraes / Violão: Nelson Jacobina / Timbau, surdo virado, xequerê, bongô com baqueta: Marcio Victor / Timbau e bacurinha: Du / Timbau e surdo virado: Jó e Serginho Todo Grande / Sinth e baixo: Kassin.

Vamos às Letras. 

1 - Todo Errado (Jorge Mautner)

Eu não peço desculpa
E nem peço perdão
Não, não é minha culpa
Essa minha obsessão
Já não aguento mais
Ver o meu coração
Como um vermelho balão
Rolando e sangrando
Chutado pelo chão

Psicótico, neurótico, todo errado
Só porque eu quero alguém
Que fique vinte e quatro horas do meu lado
No meu coração, eternamente colado
No meu coração, eternamente colado

Comentário de Caetano: "É claro que poderíamos ter contratado outros ótimos músicos, mais experientes, que tocam seus instrumentos divinamente, mas esses meninos, além de dominarem as técnicas modernas de gravação como ninguém, encaram tudo naturalmente, sem preconceitos. A música de abertura, por exemplo, Todo Errado, é uma mistura de rock-balada com música brega, country americano e outras coisas, cheia de auto-ironia. Eles entenderam perfeitamente até onde a ironia deveria ir." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2002).

Foto: André Vieira / The New York Times, 2002.

2 - Feitiço (Caetano Veloso)

Nosso samba
Tem feitiço,
Tem farofa,
Tem vela e tem vintém
E tem também
Guitarra de rock 'n' roll,
Batuque de candomblé

Zabé come Zumbi
Zumbi come Zabé
Zabé come Zumbi
Zumbi come Zabé
Tem Mangue bit, berimbau
Tem hip-hop, Vigário Geral
Tem reagge pop, Fundo de Quintal
Capão Redondo, Candeal
Tem meu Muquiço, meu Largo do Tanque
Tem funk, o feitiço indecente
Que solta a gente

Comentário de Caetano: "Feitiço é quase a reprodução exata de uma conversa nossa [com Mautner], com essa referência a Noel Rosa e a Aquele Abraço, de Gil." (Caetano Veloso sobre o Jornal O Globo, 2002).

“Lembro que o (crítico musical José Ramos) Tinhorão baseou o ataque que ele fez contra a bossa-nova numa argumentação em que punha Noel como um representante da classe média que tinha se aproximado do samba como se deve, e não fazendo uma apropriação indevida, como a bossa nova veio a fazer. Ora, o Feitiço da Vila é uma obra-prima cuja letra é um manifesto de apropriação violenta pela classe média do samba dos pretos do morro ou dos que vieram da Bahia! Limpando o samba de feitiço, de farofa, de vela, das características africanas. É com amor que eu respondo a ele, num samba que não me teria vindo à mente se eu não tivesse feito um disco com Jorge Mautner.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 2002).

Show Eu Não Peço Desculpa. Canecão, 2002. 

3 - Manjar de Reis (Jorge Mautner, Nelson Jacobina)

Tu és manjar de reis
Dos mais finos canapés
Mas agora é minha vez
De te fazer mil cafunés
Quero a tua nudez
Da cabeça aos pés
Quero que, sem timidez,
Tu chupes picolés
Quero que tu me dês
Tudo que tu és
Quero que tu me dês
Tudo que tu és

Foto: Bárbara Almeida, 2014.

4 - Tarado (Caetano Veloso, Jorge Mautner)

Gosto de ficar na praia deitado
Com a cabeça no travesseiro de areia
Olhando coxas gostosas por todo lado
Das mais lindas garotas, também das mais feias
Porque são todas gostosas e sereias
Pro meu olhar de supremo tarado
Tarado

Comentário de Mautner“Letra inferior de Jorge Mautner, música superior de Caetano Veloso.” (Jorge Mautner para o Jornal do Brasil, 2002).

Comentário de Caetano: "Tarado, por exemplo, era um poema do Jorge que eu musiquei sem mudar nem uma palavra. É curioso, porque é uma música que fala de um cara que olha as coxas das mulheres na praia e tem uma melodia sublime, celestial. E a música fala de sexo, erotismo, como várias outras do disco, mas de maneira ingênua." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2002).

“Eu vi que ali estava o sublime. De todas as canções do disco, Tarado é a que mais traz à tona a ideia da compaixão, que é uma coisa muito importante no imaginário de Jorge. É a canção mais cristã de todas do disco porque ela tem o dom da compaixão. Não só pelas mulheres que são vistas igualitariamente, mas sobretudo pela identificação com o tarado.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 2002).


Foto do encarte do disco.

5 - Maracatu Atômico (Nelson Jacobina, Jorge Mautner)

Atrás do arranha-céu, tem o céu, tem o céu
E depois tem outro céu sem estrelas
Em cima do guarda-chuva, tem a chuva, tem a chuva
Que tem gotas tão lindas que até dá vontade de comê-las

No meio da couve-flor, tem a flor, tem a flor
Que além de ser uma flor, tem sabor
Dentro do porta-luva tem a luva, tem a luva
Que alguém de unhas negras e tão afiadas esqueceu de pôr

No fundo do para-raio tem o raio, tem o raio
Que caiu da nuvem negra do temporal
Todo quadro negro, é todo negro, é todo negro
E eu escrevo o seu nome nele, só pra demonstra o meu apego

O bico do beija-flor, beija a flor, beija a flor
E toda a fauna-flora grita de amor
Quem segura o porta-estandarte, tem arte, tem arte
E aqui passa com raça eletrônico, maracatu atômico

Comentário de Caetano“Eu propus a ele que cada um gravasse uma canção do outro. O desafio era total, mas essa era uma canção que eu sempre tive vontade de gravar. O Gil fazia uma coisa mais pop e cantava muito bem a melodia. O Chico Science fez um maracatu, mas não cantava a melodia, praticamente falava a letra. Eu, então, canto a melodia de uma maneira bem lírica, em cima de uma base de maracatu.” (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 2002).

Foto: Folha de S. Paulo / Reuters.

6 - O Namorado (Caetano Veloso) / Urge Dracon (Jorge Mautner)

Ela é t´tudo de bom
Sabe qual é o som
Nada do leme ao Leblon

Usa um esmalte marrom
Batom do mesmo tom
Ela é m´mais que demais

Manda num gato malhado
Sempre colado ao lado
O par mais apaixonado

Mas
O namorado
Tem namorado
O namorado
Tem namorado

(Que importa o que se diz
Se a tarde cai num tom feliz
E a brisa bate leve e não tem medo
Se a onda quebra em pérolas e verdes tão sutis
E a luz do sol no céu não tem segredo)

O namorado
Tem namorado
O namorado
Tem namorado

Urge Dracon (Jorge Mautner)

Urge dracon
Ave Caesar
Urge dracon
Ave Caesar

Magnificus, supremus, augustus
Divinus, superbus, vitalicius
Professor, dictator, imperator
Professor, dictator, imperator
Evoé, colofé

Salve o nosso guia
Pro que der e o que vier
Salve o nosso guia
Jorge Mautner

Ou o mundo se brasilifica
Ou vira nazista
Jesus de Nazaré
E os tambores do candomblé

Foto: Fabio Motta / Acervo Estadão.

7 - Coisa Assassina (Gilberto Gil, Jorge Mautner)

Se tá tudo dominado pelo amor
Então vai tudo bem, agora
Se tá tudo dominado,
Quero dizer, drogado
Então vai tudo pro além
Antes da hora
Antes da hora

Maldita seja essa coisa assassina
Que se vende em quase toda esquina
E que passa por crença, ideologia, cultura, esporte
E, no entanto, é só doença,
Monotonia da loucura e morte

Comentário do autor: "Há aquele dizer de John Lennon: 'O álcool e as drogas me deram asas para voar, depois me tiraram o céu'. É um conselho inútil, mas eu diria que fundamental. Digo com experiência, porque a liberação era uma das bandeiras da revolução hippie e beatnik". (Jorge Mautner para o jornal Folha de S. Paulo, 2002).

Comentário de Caetano: "Não quis nem entrar na parceria, porque não tenho intimidade com esse negócio de drogas. Não gosto, quando tomei esses negócios foram os momentos mais infelizes que já passei. Uma das coisas que mais odeio é a cocaína. Odeio a economia abjeta que ela criou, o banditismo organizado e a corrupção policial que ela propiciou. Apóio esse posicionamento nítido do Mautner, e canto com um prazer enorme." (Caetano Veloso para o jornal Folha de S. Paulo, 2002).

Cena do clipe de Todo Errado, 2002.

8 - Homem Bomba (Jorge Mautner, Caetano Veloso)

Lá vem o homem bomba
Que não tem medo algum
Porque daqui a pouco
Vai virar egun

Mas até lá, mata um, mata dois
Mata mais de um bilhão
Não vai deixar sobrar nenhum
Mas eu sou contra essa ideologia da agonia
Sou a favor do investimento
Pra acabar com a pobreza
Sou pelo estudo e o trabalho em harmonia
O amor e o Cristo Redentor
Poesia na democracia

Comentário de Mautner: “Sobre o enaltecimento da democracia.” (Jorge Mautner para o Jornal do Brasil, 2002).

Foto: Fabio Motta / Acervo Estadão.

9 - Lágrimas Negras (Jorge Mautner, Nelson Jacobina) / Doidão (Jorge Mautner)

Na frente do cortejo
O meu beijo
Forte como o aço
Meu abraço
São poços de petróleo
A luz negra dos seus olhos
Lágrimas negras saem, caem, doem
Por entre flores e estrelas
Você usa uma delas como brinco
Pendurado na orelha
Astronauta da saudade
Com a boca toda vermelha
Lágrimas negras saem, caem, doem
São como pedras de moinho que moem
Roem, moem
E você, baby
Vai, vem, vai
E você, baby
Vem, vai, vem
Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas
Pelo sofrimento
Lágrimas negras saem, caem, doem

Doidão (Jorge Mautner)

Eu sou doidão, eu sou doidão
Eu sou doidão, doidão, doidão
Mas tenho bom coração
Bão ba la lão, bão ba la lão
Ah, me esqueci do resto da canção
Que papelão

Cena do clipe de Todo Errado, 2002.

10 - Morre-se Assim (Jorge Mautner, Nelson Jacobina)

No meio das névoas e mergulhado na melancolia, ao lado de tristes ciprestes, ajoelhado, derramando quentes lágrimas de saudade, perante o túmulo da minha amada

Morre-se assim
Como se faz um atchim
E de supetão
Lá vem o rabecão

Não não não não não não não não
Não não não não
Sim sim sim sim sim sim sim sim sim
Mas porém contudo todavia
No entanto outrossim

Uma bala perdida desferida na rua dos paqueradores de travesti voou e foi alojar-se no crânio de uma velha senhora que lia com fervor a sua bíblia lá no Morumbi

No cemitério, pra se viver é preciso, primeiro, falecer. Os vivos são governados pelos mortos. Que nada, os vivos são governados pelos mais vivos ainda. E, no cemitério, devota Alice, nós, os ossos, esperamos pelos vossos.

Foto: O Estado de S. Paulo.

11 - Graça Divina (Caetano Veloso, Jorge Mautner)

Ao seguir aquele vulto
Que percorria o labirinto
Descobri que era eu mesmo, oculto
Dentro das coisas que sinto
E que só sei dizer em prosa e verso
E quando as canto, eis que pronto surge
A rosa do universo
Que desfila ao meu lado
Entre as mãos de um negro anjo alado
Que distribui lá do meio da neblina e da fumaça
A graça que vem de cima
E vem de graça
Porque é a graça
E é divina

Foto: Fabio Motta / Acervo Estadão.

12 - Cajuína (Caetano Veloso)

Existirmos a que será que se destina
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos, intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina

Comentário de Mautner: "Peguei Cajuína e fui cantar achando que tinha concebido uma interpretação totalmente nordestina." 

Comentário de Caetano: "Quando ele cantou, eu e Kassin nos entreolhamos, já rindo, pensando como ele tinha dado aquele clima russo a uma música que fala no Piauí."
(Caetano Veloso e Jorge Mautner para o Jornal O Globo, 2002).

Cena do clipe de Todo Errado, 2002.

13 - Voa, Voa, Perereca (Sergio Amado)

Coitada da perereca dela
É tão bela, é tão bela
Coitado do meu passarinho
Tão sozinho, tão sozinho

A perereca quer voar
Voa, voa perereca
Mas não deixe aqui nesse cantinho
Tão sozinho, meu passarinho

Comentário de Mautner“Marcha-rancho nostálgica e erótico-buliçosa de fábula infantil, de um Brasil antigo e eterno.” (Jorge Mautner para o Jornal do Brasil, 2002).


14 - Hino do Carnaval Brasileiro (Lamartine Babo)

Salve a morena
Da cor morena do Brasil fagueiro
Salve o pandeiro
Que desce o morro para fazer a marcação
São, são, são, são quinhentas mil morenas
Louras, cor de laranja cem mil
Salve, salve, meu carnaval, Brasil

Salve a lourinha
Dos olhos verdes, cor das nossas matas
Salve a mulata
Cor do café, a nossa grande produção
São, são, são, são quinhentas mil morenas
Louras, cor de laranja cem mil
Salve, salve, meu carnaval, Brasil

Ficha Técnica

Uma produção Universal Music dirigida por Kassin e Caetano Veloso
Direção artística: Max Pierre
Gerência artística: Ricardo Moreira
Supervisão executiva: Conceição Lopes - Natasha Enterprises
Produção executiva: Beth Araújo
Gravado e mixado no Estúdio Monoaural por Fabiano França
Assistente: Luciano Tarta; Rodie: Jorge Ribeiro
Masterizado no Magic Master por Ricardo Garcia
Projeto gráfico: Zoy e Domenico
Fotografia: Daniela Dacorso
Assistente de design: Philippe Leon
Maquiagem: Ricardo dos Anjos
Coordenação gráfica: Gê Alves Pinto e Geysa Adnet










Encarte via "Encartes Pop".

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