2007 - Cê Ao Vivo - Caetano Veloso


Multishow Ao Vivo: Cê foi gravado num 12 de junho na Fundição Progresso (Rio) e lançado em setembro de 2007. No repertório, quase todas as canções do disco de estúdio (Porquê? ficou de fora) e novas versões para músicas de discos próximos ao Transa (You Don't Know MeNine Out Of Ten) e Velô (O Homem Velho). A única inédita é Amor Mais Que Discreto, feita a partir de Ilusão À Toa quando o disco já estava adiantado. Um Tom foi dedicada ao maestro Jaques Morelenbaum, "extraordinário e generosíssimo músico brasileiro, sem o qual eu não teria perdido tanto quanto perdi do medo da música". Os sambas de Sampa (para Os Mutantes) e Desde que o Samba é Samba e o frevo de Chão da Praça ganharam a sonoridade da BandaCê, reafirmando essa nova etapa da vida e da carreira de Caetano Veloso. 

Caetano: "Vendo agora, gostei dos números. Lembro que neste dia saímos com a sensação de não termos feito um dos nossos melhores shows. Mas, revendo a performance, creio que tem qualidade, dentro da realidade de um show ao vivo. Nosso disco tem essas duas vertentes. Fizemos este show nos palcos mais diferentes, do Canecão e do Circo Voador a teatros acadêmicos, e sempre nos sentimos bem. Nos apresentamos diante de públicos bem jovens, de senhores de meia-idade e até da minha idade, que é bem mais que meia idade. Fui assistir a um show do Max de Castro. Ele me chamou para uma canja, e a banda atacou de Fora da Ordem. Eu não lembrava a letra. Prometi a eles que no próximo show cantaria inteira. Ela acabou se mostrando atual. Sendo mais adequada agora que na época em que foi feita." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2007). 

Sobre Amor Mais Que Discreto: "É linda! Essa daí é mesmo gay. Porque ela fala de 'o amante do amante'. Eu adorei chegar nessa expressão porque não fica duvidoso, está explícito: é um cara que é, ou pode ser, ou desejaria ser, amante de outro cara. Eu tinha falado com os meninos, até brincando, que o tem muita mulher. [...] Aquele modelo grego do homem com o adolescente é um arquétipo na cabeça da gente. E eu, no texto, gosto muito desse momento que diz 'eu sou um velho, mas somos dois meninos', que é diferente da nossa moral convencional cristã burguesa. E é diferente também do modelo grego, em que [o sexo entre um homem adulto e um adolescente] era quase que um tipo especial de heterossexualidade. [Em "Amor Mais que Discreto"] são dois caras brincando, dois caras curtindo o sexo deles, um com o outro. É um tema meu. Não entro em ambiente nenhum sem meus temas principais. Não iria deixar isso de fora. Independentemente de ser ou não relevante para todas as pessoas, a mim esse tema sempre interessou." (Caetano Veloso para a Revista Rolling Stone, 2007).

"Amor Mais Que Discreto eu compus quando a gente já tinha ensaiado todas e já tinha gravado. Assim como O Herói, mas o O Herói deu pra ficar pronta a tempo, mesmo dentro do estúdio, mas ficou. E Amor Mais Que Discreto só terminei de fazer depois que o disco já estava prensado. Acho uma canção gay pioneira no Brasil. Não é pioneira porque nunca houve. Claro que há outras e até melhores, mas ela é a mais explícita e com um tom mais consciente daquilo, entendeu? Eu acho isso bacana." (Caetano Veloso em entrevista nos extras do DVD Cê Ao Vivo, 2007). 

Caetano rejeita "virtude" da velhice
Entrevista para a Folha de S. Paulo, 11/05/2007

O integrante mais velho da banda de Caetano Veloso, 64, é o guitarrista Pedro Sá, três décadas mais jovem que o compositor. Junto com os dois, sobem ao palco do Citibank Hall hoje, amanhã e domingo, o baterista Marcelo Callado e o contrabaixista Ricardo Dias Gomes, ambos na casa dos 20 anos.
Caetano e sua novíssima banda voltam, enfim, a São Paulo com a turnê de "Cê" e músicas sobre sexo, amores mal resolvidos, democracia racial e... velhice. Como não levá-la em conta cercado de rapazes amigos do seu filho? Sobre ela, a velhice, Caetano se apóia em Montaigne: "Não tenho vontade de considerar como virtude as minhas deficiências por causa da velhice". Inspirado nela, cantará "O Homem Velho" e a nova "Homem", em um show que inclui todas as músicas do disco lançado no ano passado, como "Não Me Arrependo" e "Rocks", além de "Sampa", "London, London" etc.
Na entrevista a seguir, Caetano também conta porque é mais rebelde que Lobão e defende a liberação da biografia de Roberto Carlos.

Folha - Por que decidiu voltar a cantar as músicas do "Transa", de 1972 ("You Don't Know Me" e "Nine Out Of Ten")? Há bastante tempo não apareciam em seus shows, não?

Caetano - Quando fiz o disco "Velô" (1984), eu retomei o "Transa", na regravação de "Nine Out Of Ten". Mas ao longo dos anos deixei de cantar essas músicas em inglês do período que morava em Londres. No final dos anos 80, voltei a cantar "It's a Long Way", que as pessoas pediam muito.

Folha - Qual a ligação entre o "Transa" e o disco novo, "Cê"?

Caetano - O "Cê" é o disco mais de banda que eu já fiz. Embora eu seja velho, a banda é nova, com sonoridade nova. Isso tem um parentesco com "Transa", que também é um disco de banda pequena. Tive outras bandas, mas não só eram maiores, como havia mais variação, músicos convidados. "Transa" e "Cê" são enxutos. 

Folha - O repertório do show apresenta, a meu ver, um homem indeciso entre a resistência e aceitação da velhice. Você concorda?

Caetano - No mínimo. Não quero ser pretensioso, mas penso como Montaigne: não tenho vontade de considerar como virtude as minhas deficiências por causa da velhice. Estou bem, não me sinto velho [enfatiza a palavra], mas há diferenças, agora preciso usar óculos pra ler. Não penso como Platão e [o cineasta espanhol Luis] Buñuel, que acreditavam que ficar sem potência sexual seria uma bênção porque te liberta de um tirano que é o desejo; isso está em "A República", de Platão, e Buñuel disse na sua autobiografia. Montaigne diz o contrário: jamais vou considerar minha decadência sexual como virtude. 

Folha - Nesse show, "Sampa" ganhou uma versão mais obscura. É um sinal de que a cidade piorou dos anos 70, quando a música foi composta, para cá?

Caetano - Não acho que há esse pensamento no modo como o arranjo se apresenta. O novo arranjo é condizente com a banda, com o acorde fechado, simplificando a harmonia. E o Pedro Sá foi fazendo aquela resposta de guitarras distorcidas. A canção, no original, era terna, mas um pouco melancólica. Agora fiz uma versão que tem a ver com a tradição do rock em São Paulo, uma homenagem também sonora a Rita Lee e aos Mutantes.

Folha - Por que a inclusão de "Como Dois e Dois", música sua que ficou famosa com Roberto Carlos?

Caetano - Porque o Marcelo Callado me sugeriu e achei pertinente. Também porque o Roberto Carlos é uma figura importantíssima na inserção do rock no Brasil, foi o mais emblemático na adesão de jovens relativamente ingênuos ao pop-rock internacional. 

Folha - Por falar em Roberto Carlos, você tem acompanhado esse caso da biografia que, após acordo judicial, está sendo recolhida?

Caetano - Não gosto da decisão, o livro deveria estar sendo vendido livremente. Vão queimar os livros? Se ainda fosse uma coisa caluniosa e ofensiva e que causasse danos objetivos... Sou contra. 

Folha - Se você estivesse no lugar de Roberto Carlos...

Caetano - Faria o que Mick Jagger fez. No livro ["Jagger Não-Autorizado", de Christopher Andersen], fala-se que ele transou com Eric Clapton e ninguém levantou um dedo mindinho para reclamar. David Bowie, Rudolf Nureyev, Keith Richards, tudo bem, mas Eric Clapton?! Sobre os demais, todo mundo sabe que no início da carreira não é impossível que tenha acontecido [a transa], mas Eric Clapton?! E Jagger não chiou. Não acho que no livro tenha havido um desrespeito, é favorável ao Roberto.

Folha - Você gosta do livro?

Caetano - Sim, e já havia gostado do outro livro dele [Paulo Cesar de Araújo], "Eu Não Sou Cachorro, Não" [ sobre a música cafona]. Conta muitas histórias interessantes, inclusive sobre a Folha [além de diversas citações de reportagens do jornal, o livro faz menção a um editorial publicado em 8 de setembro de 1971, que manifesta apoio ao governo Médici. 

Folha - Em recente entrevista à Folha, Lobão disse que voltou a assinar contrato com uma grande gravadora, uma das chamadas majors, porque elas são melhores empresas do que eram anos atrás. Dias depois, Rita Lee afirmou que as majors continuam cheias de vícios antigos. Qual a sua opinião?

Caetano - Acho sempre que a Rita Lee está com a razão. Mas gosto do Lobão. Ele sempre me punha como principal alvo das críticas. Mas só nos jornais; quando me encontrava, era amor puro. Ele voltou agora a gravar, o que pode ser bom, ele tem músicas lindas. Agora, não há nenhum indício de que as majors estejam melhores, estão mal porque não conseguem vender CDs. Tenho um temperamento mais rebelde que o Lobão. Ele é legal, mas um pouco conservador. Não dou a menor importância a majors e minors, tenho desprezo pelo capital. Acho que até estou errado, admiro quem tem vocação para os negócios, tenho tesão até, porque são diferentes de mim. 

Folha - Essa rebeldia contribui para o seu marketing, não?

Caetano - Não quero fazer nada que seja mau para o meu marketing, estou apenas dizendo a verdade. Se é bom para o meu marketing, ótimo. Se não, foda-se. Sou rebelde mesmo.

Foto: Fernando Rabelo/Folha Imagem.

Release

"Cê" é antes de tudo um disco de banda. Registrar essa banda em atividade num show seria o procedimento a se adotar o mais prontamente. E assim foi feito. Gosto de pensar na banda do "Cê" como uma das bandas de que Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes participam. Felizmente, no Rio de Janeiro há um bom número delas. Gosto de vê-la também como uma das bandas que Pedro Sá poderia criar e liderar. Não que não goste de que ela seja a expressão de minhas próprias necessidades musicais agora. Acho o som que fazemos com "Cê" o que melhor mostra o que sempre tenho sido. E isso justamente por parecer opor-se a tanto do que fiz. Ele me livra um pouco de mim mesmo para que eu me aproxime mais de ser quem sou. No show é que se vê melhor a semelhança com "Circuladô", "Livro" ou "Noites do Norte" - e também com "Jóia", "Qualquer Coisa", ou "Bicho". Mais que tudo, a identidade com "Uns", "Velô" e "Transa". Além da proximidade imediata com o "Eu não peço desculpa" que dividi com Jorge Mautner. Mais longe, a luz sobre a Tropicália. Termos em mãos agora esse registro do show, em som e imagem, vale muito, por tudo isso. Os três da banda e eu estamos atarefadíssimos desde que o disco saiu. Já fizemos um número enorme de apresentações e há mais muitas por vir.

Foi em meio a essas atividades tantas vezes diversas - o show é basicamente o mesmo mas, dependendo do lugar onde o apresentamos, pode parecer um show de rock convencional ou um espetáculo teatral minimalista que comenta tanto os shows de rock quanto o sentido da minha carreira individual - foi em meio a essas atividades assim cambiantes, dizia eu, que se gravaram o CD e o DVD que agora lançamos. Já não vivemos aquele tempo de fausto das gravadoras, em que até artistas pouco comerciais (como fui a maior parte do tempo ao longo de 40 anos) filmavam seus espetáculos em película e requintes de produção cinematográfica. Sabíamos que teríamos de trabalhar com câmeras de vídeo e, na parceria com o Multishow, realizar ao mesmo tempo o DVD e um especial para o canal televisivo. Mas desde cedo a produção me informou de que a captação do som (CD e DVD) estaria a cargo de Moreno, e a captação de imagem (DVD), a cargo de Mauro Lima. Moreno é a quem já devíamos a clareza do som do disco de estúdio - e é, além do grande artista que vem se afirmando no grupo +2, na Orquestra Imperial, nas participações com Adriana Calcanhoto ou com João Donato, meu filho e conselheiro. Devo a ele o encontro com Pedro Sá e Kassin (que produziu o disco que fiz com Mautner), com toda uma geração de músicos inventivos. Quanto à captação de imagens, a escolha caiu sobre Mauro Lima, que é o diretor do que para mim é o vídeo de música mais poético e mais bonito já feito no Brasil: o clip de "Todo errado", a canção que abre "Eu não peço desculpa" (o título do disco é o primeiro verso dessa canção). Mauro Lima é o diretor desse pequeno filme de 9 minutos que fez com a canção de Mautner, na interpretação que este e eu lhe demos, o que só um poeta faria.

Assim, nas mãos Mauro Lima e Moreno, deixei rolar o que viesse. Tínhamos nossos arranjos, o cenário de Hélio Eichbauer e a luz de Maneco Quinderé. A produção teria que optar por um show com platéia ruidosa e participativa (em que ele fica com ares de show de rock convencional) ou um show em sala quieta (onde ele fica com ares de peça minimalista pretensiosa). No primeiro caso perde-se a clareza de intenções da série de músicas do repertório, o valor dado aos silêncios, e a composição espacial das formas no espaço; no segundo perde-se a animação que as canções mais aceleradas sugerem. Optou-se por uma sala animada. A Fundição Progresso foi uma escolha feliz porque as negociações, o convívio profissional e pessoal com a turma de Perfeito foram sempre ótimas, e isso pesou mais do que as dificuldades acústicas da grande e simpática sala. Não posso negar que nós quatro sobre o palco sentimos que não estávamos podendo render o melhor show do "Cê" de que já éramos capazes então (hoje, com o amadurecimento, tudo foi ficando ao mesmo tempo mais agulhado e mais solto). Mas o que se fez com o que apresentamos é um registro justo do que é o "Cê" ao vivo. E é uma peça elogiável por seus próprios méritos.

O som ficou vivo e limpo, rico e despojado. A imagem ficou com uma textura sofisticada que a distancia das meras transmissões televisivas. A captação de detalhes da ação dos músicos com seus instrumentos ficou elegante e sempre fiel à realidade musical no corte final. A entrevista que se pode ver nos extras foi conduzida com a maior simplicidade e sinceridade, num tom muito pouco usual nesse tipo de coisa. Eu, que falo muito e não aguento mais me ver falando, achei que até para mim a conversa soa bem (e as imagens do passado a pontuam em ritmo adequado). Enfim, mais alguma coisa boa que esse grupo de pessoas pode oferecer a um grupo maior de possíveis interessados. Esperamos que dentre estes muitos a recebam com prazer e proveito. (Caetano Veloso, 2007).

Cenário do show por Hélio Eichbauer.

Lista de Músicas

1 - Outro

2 - Minhas Lágrimas

3 - Chão da Praça

4 - Nine Out of Ten

5 - Um Tom

6 - O Homem Velho

7 - Homem

8 - Amor Mais Que Discreto

9 - Odeio

10 - Como Dois e Dois

11 - Sampa

12 - Desde Que O Samba É Samba

13 - Não Me Arrependo

14 - London London

15 - Fora da Ordem

16 - Rocks

17 - You Don't Know Me

Todas as músicas da autoria de Caetano Veloso,
exceto Chão da Praça, de Moraes Moreira e Fausto Nilo. 

Faixas do DVD incluem Ilusão à Toa / A Voz do Violão / Waly Salomão / Um Sonho / Musa Híbrida / Deusa Urbana / O Herói / Descobri Que Eu Sou Um Anjo.

Vamos às Letras.

1 - Outro

Você nem vai me reconhecer
Quando eu passar por você

Você nem vai me reconhecer
Quando eu passar por você

Você nem vai me reconhecer
Quando eu passar por você

De cara alegre e cruel
Feliz e mau como um pau duro
Acendendo-se no escuro

Cascavel
Eriçada na moita
Concentrada e afoita

Eu já chorei muito por você
Também já fiz você chorar
Agora olhe pra lá porque
Eu fui me embora

Você nem vai me reconhecer
Quando eu passar por você

Caetano em show na Europa.

2 - Minhas Lágrimas

Desolação de Los Angeles,
A Baixa Califórnia e uns desertos ilhados por
Um pacífico turvo
A asa do avião
O tapete cor de poeira de dentro do avião
A lembrança do branco de uma página
Nada serve de chão
Onde caiam minhas lágrimas

Foto: José Goulão.

3 - Chão da Praça (Fausto Nilo, Moraes Moreira)

Olhos negros cruéis, tentadores
Das multidões sem cantor
Olhos negros cruéis, tentadores
Das multidões sem cantor

Meu amor quem ficou nessa dança
Meu amor tem fé na dança
Nossa dor meu amor é quem balança
Nossa dor o chão da praça

Sei que já detonou som na praça
Sei que já todo pranto rolou
Olhos negros cruéis, tentadores
Das multidões sem cantor
Olhos negros cruéis, tentadores
Das multidões sem cantor

Eu era menino, menino um beduíno
Com ouvido de mercador
Lá no oriente tem gente com olhar de lança 
Na dança do meu amor

Tem que dançar a dança
Que a nossa dor balança o chão da praça
Tem que dançar a dança
Que a nossa dor balança o chão da praça

Balança o chão da praça
Balança o chão da praça

Foto: Ryan Dombal.

4 - Nine Out of Ten

I walk down Portobello road to the sound of reggae
I'm alive
The age of gold, yes the age of old
The age of gold
The age of music is past
I hear them talk as I walk yes I hear them talk 
I hear they say
"Expect the final blast" 
I walk down Portobello road to the sound of reggae 
I'm alive

I'm alive, vivo muito vivo feel the sound of music
Banging in my belly 
Know that one day I must die 
I'm alive 
And I know that one day I must die 
I'm alive
Yes I know that one day I must die

I'm alive vivo muito vivo
In the Electric Cinema or on the telly
Nine out of ten movie stars make me cry
I'm alive
And nine out of ten movie stars make me cry
I'm alive

5 - Um Tom

Um tom pra cantar
Um tom pra falar
Um tom pra viver
Um tom para a cor
Um tom para o som
Um tom para o ser

Ah como é bom dormir
Ah como é bom despertar
O céu é mais aqui
Um tom é um bom lugar

Tanta coisa que cabe
Tanta pode caber
Canta e pode fazer cantar
Nova felicidade
Novo tudo de bom
Deixa-se cantar um tom

Um tom pra gritar
Um tom pra calar
Um tom pra dizer
Um tom para a voz
Um tom para mim
Um tom pra você
Um tom para todos nós


6 - O Homem Velho

O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de neon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal


7 - Homem

Não tenho inveja da maternidade
Nem da lactação
Não tenho inveja da adiposidade
Nem da menstruação

Só tenho inveja da longevidade
E dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos
Eu sou homem
Pele solta sobre o músculo
Eu sou homem
Pêlo grosso no nariz

Não tenho inveja da sagacidade
Nem da intuição
Não tenho inveja da fidelidade
Nem da dissimulação

Só tenho inveja da longevidade
E dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos
Eu sou homem
Pele solta sobre o músculo
Eu sou homem
Pêlo grosso no nariz


8 - Amor Mais Que Discreto

Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer
Eu não cheguei a ser

Eu sou um velho
Mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes
O grande espelho

E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha
Talvez bem mais que a minha
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal
Eu chegasse a ver que você vinha

E isso é tanto que pinta no meu canto
Mas pode dispensar a fantasia
O sonho em branco e preto
Amor mais que discreto
Que é já uma alegria

Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo
O seu agora, seu antes, seu depois
Sem ser remotamente
Sequer imaginado
Sequer imaginado
Sequer imaginado sequer
Por qualquer de nós dois

Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer
Eu não cheguei a ser

Foto: Eliza.

9 - Odeio

Veio um golfinho do meio do mar roxo
Veio sorrindo pra mim
Hoje o sol veio vermelho como um rosto
Vênus, diamante, jasmim
Veio enfim o e-mail de alguém

Veio a maior cornucópia de mulheres
Todas mucosas pra mim
O mar se abriu pelo meio dos prazeres
Dunas de ouro e marfim
Foi assim, é assim, mas assim é demais também

Odeio você, odeio você, odeio você
Odeio

Veio um garoto do arraial do cabo
Belo como um serafim
Forte e feliz feito um deus, feito um diabo
Veio dizendo que sim
Só eu, velho, sou feio e ninguém

Veio e não veio quem eu desejaria
Se dependesse de mim
São Paulo em cheio nas luzes da Bahia
Tudo de bom e ruim
Era o fim, é o fim, mas o fim é demais também

Odeio você, odeio você, odeio você
Odeio

Foto: Ricardo Brito.

10 - Como Dois e Dois

Quando você me ouvir cantar
Venha não creia eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo, deixo no ar
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar
Tudo vai mal, tudo
Tudo é igual quando eu canto e sou mudo
Mas eu não minto, não minto
Estou longe e perto
Sinto alegrias tristezas e brinco
Meu amor
Tudo em volta está deserto tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco

Quando você me ouvir chorar
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar
Tudo vai mal, tudo
Tudo mudou, não me iludo e contudo
A mesma porta sem trinco, o mesmo teto
E a mesma lua a furar nosso zinco
Meu amor
Tudo em volta está deserto tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco

Foto: José Goulão.

11 - Sampa

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes

E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

Foto: Kostas Pap.

12 - Desde Que O Samba É Samba

A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
A noite, a chuva que cai lá fora
Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora

O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja, o dia ainda não raiou
O samba é o pai do prazer
O samba é o filho da dor
O grande poder transformador

Foto: Leonardo Jorge.

13 - Não Me Arrependo

Eu não me arrependo de você
Cê não me devia maldizer assim
Vi você crescer
Fiz você crescer
Vi cê me fazer crescer também
Pra além de mim

Não, nada irá nesse mundo
Apagar o desenho que temos aqui
Nem o maior dos seus erros
Meus erros, remorsos
O farão sumir

Vejo essas novas pessoas
Que nós engendramos em nós
E de nós
Nada, nem que a gente morra
Desmente o que agora
Chega à minha voz
Nada, nem que a gente morra
Desmente o que agora
Chega à minha voz

Foto: Milena Jesenska.

14 - London London

I'm wandering round and round, nowhere to go
I'm lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I'm wandering round and round here, nowhere to go
While my eyes go looking for flying saucers in the sky

Oh Sunday, Monday, Autumn pass by me
And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
He seems so pleased to please them
It's good, at least, to live and I agree
He seems so pleased, at least
And it's so good to live in peace
And Sunday, Monday, years, and I agree
While my eyes go looking for flying saucers in the sky 

I choose no face to look at, choose no way
I just happen to be here, and it's ok
Green grass, blue eyes, grey sky
God bless silent pain and happiness
I came around to say yes, and I say

But my eyes go looking for flying saucers in the sky
Yes, my eyes go looking for flying saucers in the sky
While my eyes go looking for flying saucers in the sky

Foto: Nelson Faria.

15 - Fora da Ordem

Vapor Barato, um mero serviçal do narcotráfico,
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho da rua
O asfalto, a ponte o viaduto ganindo pra a lua
Nada continua
E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito
mais bonita e
muito mais intensa do que no cartão postal.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Escuras coxas duras tuas duas de acrobata mulata,
Tua batata da perna moderna, a trupe intrépida em que fluis
Te encontro em Sampa de onde mal se vê quem sobe ou
desce a rampa
Alguma coisa em nossa transa é quase luz forte demais
Parece pôr tudo à prova, parece fogo, parece parece paz
Parece paz
Pletora de alegria, um show de Jorge Benjor dentro de nós
É muito, é grande, é total.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Meu canto esconde-se como um bando de curdos na montanha
Na minha testa caem, vêm colocar-se plumas de um velho cocar
Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano
Cuspo chicletes do ódio no esgoto exposto do Leblon
Mas retribuo a piscadela do garoto de frete do Trianon
Eu sei o que é bom.
Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem
juízo final.

Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial.

Foto: Nuno Moreira.

16 - Rocks

Tatuou um ganesh na coxa
Chegou com a boca roxa de botox
Exigindo rocks
Animais, Metais
Totais, Letais
Eu não dei letra

Tu é gênia, gata, etc
Mas cê foi mermo rata demais
Meu grito inimigo é

Você foi
Mó rata comigo
Você foi
Mó rata comigo
Você foi
Mó rata comigo

Você foi concreta
E simplesmente
Rata comigo demais
Rata comigo demais
Rata comigo demais
Rata

Foto: Ryan Dombal.

17 - You Don't Know Me

You don't know me
Bet you'll never get to know me
You don't know me at all
Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There's nothing you can show me
From behind the wall
Nasci lá na Bahia
De mucama com feitor
O meu pai dormia em cama
Minha mãe no pisador
Laia, ladaia, sabadana
Ave-Maria
Laia, ladaia, sabadana
Ave-Maria
You don't know me
Bet you'll never get to know me
You don't know me at all
Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There's nothing you can show me
From behind the wall
Eu agradeço ao povo brasileiro
Norte, Centro, Sul, inteiro
Onde reinou o baião

Foto: Site Ego.

Foto: Lorenzo Avico.

Ficha Técnica

Gravado ao vivo na Fundição Progresso, Rio de Janeiro (RJ), no dia 12 de junho de 2007 por Moreno Veloso.

Uma produção Universal Music dirigida por Moreno Veloso
Direção artística: Daniel Silveira
Coordenação técnica: Marcelo Vilella
Produção executiva: Paula Lavigne
Coordenação executiva: Clarice Saliby

Assistente: Leonardo Moreira
Unidade móvel de gravação: DB Áudio
Coordenação: Renato Guerra e José Almeida
Técnico mx 2424: Ricardo Raposo
Técnico pro tools: Max Williams
Assistentes: Rafael Quintanilha e Wilson Junior

Mixado no AR Studios - Rio de Janeiro (RJ) por Daniel Carvalho
Assistente: Igor Ferreira
Masterizado no Magic Master por Ricardo Garcia

Arranjos: Caetano Veloso, Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes

Equipe técnica e de produção do show:
Técnico de p.a.: Vavá Furquim
Técnico de monitor: Daniel Carvalho
Roadies: Amilcar Cruz (Pimpa), Gabriel Nunes (Gnomo) e Luciano Silva
Produção Caetano: João Franklin
Assistente de produção: Miguel Lavigne
Assistente pessoal de Caetano: Giovana Chanley
Empresa de sonorização: Spectale

Conceito de capa: Caetano Veloso
Projeto Gráfico: Pedro Koechlin e Pedro Einloft
Fotografias: Washington Possato
Coordenação gráfica: Gê Alves Pinto e Geysa Adnet

Agradecimentos: Zezé, Fatinha, Edu Costa, Bruno Stheliing, Sidney Costa, Companhia dos Técnicos, Euza, Microfones Sennheizer, Dominique, Berna Ceppas, Alexandre kassin, Gabriel Muzak e Fabiano França.

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