2009 - Zii e Zie - Caetano Veloso
Zii e Zie (2009) é o segundo álbum de Caetano Veloso em parceria com a BandaCê, gerado após a temporada de "Obra em Progresso", série de shows experimentais - cinco no Vivo Rio (maio e junho) e dois no Teatro Oi Casa Grande (agosto) - realizados em 2008 no Rio de Janeiro com o objetivo de mostrar o desenvolvimento da sonoridade e do repertório do novo disco. A cada show, participações especiais, como Jorge Mautner, Nelson Jacobina, Jaques Morelenbaum, Arnaldo Brandão, Teresa Cristina, Moreno Veloso e Davi Moraes. Os espetáculos, por serem semanais, continham algum viés jornalístico, com Caetano comentando os principais fatos da semana em tom descontraído e bem humorado. Shows em progresso, Hermano Vianna teve a ideia de criar um blog que acompanhasse a criação do álbum, onde Caetano interagia bastante e internautas chegaram a escolher através de votação popular a versão de Incompatibilidade de Gênios que seria gravada. Em Zii e Zie, transambas nasceram das batidas do violão de Caetano e foram submetidos ao filtro de uma banda de rock, com ritmos melódicos e frases da tradição do mito. O título foi escolhido por ser meio absurdo e ininteligível à primeira vista, parecendo com nomes de álbuns de rock do sul da Europa. Zii e Zie ("tios e tias" em italiano) vem da tradução de "Istambul" (prêmio Nobel de literatura), escrito pelo turco Orhan Pamuk, e é um modo de fazer chegar até São Paulo um disco essencialmente carioca.
Caetano: "Estava com saudades do Rio, de meus filhos, e pensei que seria bom poder passar uma temporada maior aqui. Durante o verão em Salvador, escrevi duas músicas novas, depois, no Rio, fiz mais três, e a ideia evoluiu para um show no qual experimentarei o repertório do novo disco. Daí o título "Obra em progresso". Vai se chamar "Transamba" ou "Transsamba" ou mesmo "Trans-samba", com hífen. Nessas palavras o "s" pode ter o som de "z", o que também pode soar interessante, num elo com Transa. Ousado teor experimental de abordar o samba com um trio de rock moderno. A decisão é ir, por esse meio, mais longe do que já fomos em Cê, na criação de um som novo e nosso." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2008).
"Quando a banda estava começando a engrenar, pensei: "Não posso desperdiçar isso, agora que conseguimos uma sonoridade tão original, que tanto me agrada". Então construí um CD em torno dessa sonoridade, algo que já fiz algumas vezes na minha carreira, em discos como Transa e Velô. Antes de Transa, eu não opinava quase nos arranjos. No Cê, fomos criando o som e fazendo as músicas ao mesmo tempo; agora, a sonoridade já existia. Não queria sair do Rio em 2008. Então pensei naquela temporada de shows semanais, no Vivo Rio e depois no Teatro Casa Grande, durante a qual tocaríamos as músicas que estavam sendo feitas para o novo disco. Assim ficávamos por aqui, e o disco ia nascendo. Bastava eu dizer o que queria, de que forma, que eles faziam exatamente o que eu estava pensando. Não repetíamos nada, tudo saía rapidamente. Acho o disco muito longo. Queria tirar Diferentemente, mas meus filhos Moreno e Tom não deixaram. Ainda argumentei com eles, que são religiosos, ao contrário de mim, que não seria bom terminar o disco com a frase "Eu não acredito em Deus". Mas não colou." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2009).
"Tudo começou porque eu queria passar o ano todo no Rio: a excursão do Cê durou uns oito meses. O ano de 2007 significou muita saudade dos meu filhos e da minha neta. Queria prosseguir com o que venho fazendo com Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. Aí pensei em fazer shows semanais em que fosse apresentando o crescimento de um novo repertório e o desenvolvimento de novos arranjos. No escritório, me disseram que íamos perder dinheiro. Insisti. Fiquei feliz à beça quando finalmente estreamos no Vivo Rio. Abri o show com uma canção inédita e, durante o show, cantei mais três. A platéia mostrou que essas músicas novas se imprimiam nas mentes. Depois, as pessoas já me falavam de cada música individualmente. Claro que A Base de Guantánamo era mais nítida e pregnante. Mas houve quem falasse primeiro em Por Quem? (não sabiam o título, mas diziam: “aquela que você canta em falsete” ou “a que fala em 'ranhuras da montanha”). Outros perguntavam sobre a do “biquíni amarelo” ou “a da bunda”. Etc. A cada quarta-feira, novas canções. E a história se repetia: gente dizia que Sem Cais é a mais bonita. Pessoas contavam que Perdeu vinha crescendo. Mas teve as antigas: Três Travestis, O Maior Castigo, Feitiço da Vila, Vingança, Incompatibilidade de Gênios. E canções do Cê. E sucessos, como O Leãozinho ou Nosso Estranho Amor. De fato, perdemos dinheiro. Ou, pelo menos, não ganhamos. Sinceramente, fui para a Europa para ganhar o que preciso para manter a vida de separado com dois filhos. Mas só penso na Obra em progresso. Fico deslumbrado com Roberto Carlos cantando Jobim e me acho um privilegiado por estar por perto. Mas minha energia criativa está toda voltada para as músicas que estamos mostrando e que gravaremos a partir do dia 1°. Prova disso é o tempo que encontro para estar presente no blog www.obraemprogresso.com.br. Ali se vê e ouve tudo que se refere à feitura desse novo disco: os números dos shows, os comentários que fui fazendo a respeito (por escrito ou de viva voz), as idéias que passam pela minha cabeça à medida que vou fazendo o disco. A palavra "transamba" foi uma dessas idéias. Nunca me decidi a tê-la como título do disco - e depois descobri que Marcos Moran já a tinha usado num disco dos anos 70 - mas ela diz muito sobre o que estamos fazendo, a Banda Cê e eu. É aquela máquina urgente que produziu os sons de Cê se aproximando do samba. Ou melhor: exibindo suas relações internas com o mistério do samba. E é rock'n'roll. A Lapa é a inspiração. Nos shows do Oi Casa Grande, vamos mostrar mais duas músicas novas (já são 10): uma se chama Lobão tem razão e a outra simplesmente Lapa. Transrock. Todo o projeto é profundamente enfronhado no Rio de Janeiro. É um disco em homenagem ao Rio. E uma reza irreligiosa ou arreligiosa ou anti-religiosa pelo Rio. Estou muito cansado de tanto trabalho e não consigo escrever curto nem bem. Mas estou feliz com o andamento da obra." (Caetano Veloso para o Jornal do Brasil, 2008).
"O ponto de partida foi desenvolver os tratamentos do ritmo de samba na guitarra elétrica, sugerido pelo modo como Pedro Sá cria "riffs" com sonoridades refinadas. As novas composições, em que comecei a trabalhar no verão em Salvador, serão concebidas tendo em vista esses experimentos rítmicos. Meu desejo é ir mostrando semanalmente o progresso desse trabalho." (Caetano Veloso no blog Obra em Progresso, 2008).
"Quando decidi fazer shows semanais para mostrar o desenvolvimento do repertório do novo disco, Hermano [Vianna; responsável pelo site] logo propôs fazermos um blog. Ele gosta muito da internet e das mudanças que ela traz às idéias de autoria, direitos e obra acabada. Aceitei imediatamente, pois, embora eu não goste tanto dessas coisas quanto ele, não me sinto em oposição a elas. O intuito é mais mostrar o desenvolvimento do repertório do que auscultar a reação dos ouvintes (tanto no blog quanto nos shows). Não há interferência dos internautas na estruturação das canções. Pedi a Hermano para botar os dois arranjos que gravamos no estúdio para Incompatibilidade de Gênios. Os internautas votarão e daí sairá a decisão de qual dos dois vai para o disco". (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2008).
"Eu só fiquei com vontade de pegar umas maneiras bem simplificadas de tocar samba no violão (a partir de umas estilizações que Gil fazia – e que eu usei em Madrugada e Amor e Eleanor Rigby) e levá-las para a banda de rock que armei com Pedro Sá pro Cê. Fui compondo já pensando nisso. Como era uma espécie de reprocessamento de elementos rítmicos do samba, me ocorreu a palavra transamba para apelidar o lance. O Marcos Moran já tinha usado essa palavra num disco dos anos 70 [Transamba, 1973]. Mesmo assim, mantive a palavra na capa do disco (nunca foi pensada para ser o título). Agora, a motivação histórica eu não sei. O samba é tema perene para quem lida com música no Brasil. Mas não posso deixar de notar que esse disco sai num período em que muita gente grava samba. Há também uma fagulha rebelde: samba e rock são as áreas mais protegidas criticamente e as que mais autorrespeito exibem – mexer nesses santuários me excita." (Caetano Veloso em entrevista para a Revista Cult, 2009).
"Depois que eu tinha feito o Cê, comecei a compor as canções para o próximo disco. Pensava na banda e fazia um negócio com características do samba, não só rítmicas, mas coisas melódicas dos sambas mais antigos, que o Francisco Alves (1898-1952, um dos mais populares cantores brasileiros de seu tempo) cantava. Isso aparece em Falso Leblon, em Lobão Tem Razão." (Caetano Veloso para a Revista Billboard Brasil, 2011).
"Chamei as músicas que compus de 'transambas' pensando na banda Cê - um 'power trio' com gosto de 'pós-punk' - e usando o ritmo do samba. E 'transrock', ao som que a banda produz quando toca aquelas músicas". (Caetano Veloso para o Jornal EL Mundo, 2010).
Sobre o título do disco: "A maneira como nos chamam os meninos que fazem malabarismo nos sinais ("zii e zie" significa "tios e tias", em italiano)... enfim. Uma maluquice da minha cabeça." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2008).
BandaCê
Caetano Veloso: violão, voz e palmas
Pedro Sá: guitarra, coro e palmas
Ricardo Dias Gomes: baixo, Rhodes, coro e palmas
Marcelo Callado: bateria, coro e palmas
Marcelo, Pedro, Ricardo, Moreno e Caetano. Foto: Fernando Young.
Release
Um passo a dar com a banda do "Cê" (hoje BandaCê) e a lembrança permanente daquele disco de Clementina com Carlos Cachaça. "Incompatibilidade de gênios" e "Ingenuidade" estão em "Zii e zie" porque são as faixas núcleo daquele disco, as que ficaram sempre acesas na memória. Não tenho um exemplar do disco de Clementina comigo. Talvez um vinil tenha ficado na casa de Dedé e hoje Moreno o achasse. Mas nem perguntei a ele. Num dos primeiros ensaios da série Obra em Progresso, aquele em que Jaquinho foi o convidado, quis ensaiar "Incompatibilidade" e comentei com Pedro, Ricardo e Marcelo que na minha lembrança Clementina cantava em, digamos, dó maior, em vez do lá menor do João Bosco. Tinha na memória uma harmonia mais convencional quando ouvi a gravação desse samba com o autor pela primeira vez: a que tinha ouvido antes com Clementina.
Achei que João Bosco tinha feito uma rearmonização e desejei voltar ao jeito que está no disco dela. Mas não estava certo de que minha lembrança não fosse uma ilusão. Jaquinho então disse: "por que você não faz em dó maior, se é isso que você está sentindo?". Tentei achar a gravação de Clementina ali na hora (Moreno não ia aos ensaios), na internet, mas não achei. Achei uma exuberante e espetacular de João Bosco ao vivo no You Tube. Em lá menor, claro. Me pergunto se há muita coisa melhor do que aquilo no mundo. Mas minha idéia era totalmente oposta à daquele tratamento jazzístico moderno e com um suingue de samba tão profundamente sentido por todos os músicos que chega a doer.
Voltei para a sala de ensaio com vontade de talvez nem cantar a música. E com a certeza de que, se o fizesse, seria em lá menor: o dó maior seria bonito numa versão ingênua que quisesse ser o que Clementina soava pra mim. Na versão simplificada mas nada ingênua que eu imaginava, o centro tonal em lá menor - e os acordes tensos ao seu redor - era o que se exigia. A batida monótona tinha de o ser tanto quanto a de "Perdeu", embora um tanto diferente: partindo da idéia básica da batida de Bosco. Experimentamos. E a canção entrou não só no show seguinte como está no disco. Me demoro contando sobre a entrada de "Incompatibilidade de gênios" (e algo sobre a de "Ingenuidade") em "Zii e zie" porque acho que isso joga luz sobre todo o sentido do novo disco. Conhecendo o que eu sugeri para "Perdeu" (e o que, juntos, conseguimos com esse transamba), os três caras da banda intuíam o que deveria estar em minha cabeça como tratamento para "Incompatibilidade". Mas as mudanças por que o projeto de arranjo passou em minha mente eles não acompanharam. Voltei do computador decidido a incluir a música no disco e dizendo que a versão de João era humilhante, mas que a gente faria um "transamba", enquanto ele fazia "samberklee". A piada era boa e fez rir. Não dá para competir: nossa versão apenas mostra uma abordagem diferente, que talvez suscite outras interpretações desse samba obra-prima. Isso diz muito do que fazemos, nesse disco, com o samba em geral.
De "Diferentemente" (a mais velha das canções do CD) a "Lapa" (a mais nova), todas as composições nasceram comigo usando batidas de samba no meu violão - e buscando frases melódicas que evocassem a tradição do gênero. As únicas exceções talvez sejam "Por quem?" e "Sem cais". Digo "talvez" porque para "Por quem?" sempre imaginei uma bateria dobrando uma transbossanova sobre o ternário às avessas do meu violão - e a balada de "Sem cais" já veio à mente de Pedro com muito samba dentro. Pode ser que alguém ache difícil reencontrar isso em "Menina da Ria" ou mesmo em "Lobão tem razão". Mas eu digo que, embora em "A cor amarela" haja explícitas palmas de samba-de-roda, há mais samba na base daquelas duas canções (e em "Tarado ni você") do que no axé light da menina preta. Mantive as minhas batidas de violão do momento da composição em todas as gravações. Sugeri relações de contraste ou de distorção entre elas e a atividade dos outros instrumentistas. Chegamos a coisas muito bonitas e, mesmo para nós, intrigantes.
"Zii e zie" é um disco feito com a BandaCê, concebido para ela. Ela tinha sido concebida para fazer o "Cê". Por isso há mais unidade na partida do "Cê" do que na chegada, ao passo que há mais unidade na chegada do que na partida do "Zii e zie". Para nós quatro foi custoso reconhecer essa verdade (que pareceu óbvia a ouvintes não envolvidos na feitura).
"Cê" foi concebido para criar uma banda. Mas foi um disco de letras muito pessoais minhas. Eu olhava para meu entorno próximo. Em "Zii e zie", as letras olham para mais longe. Atém-se majoritariamente ao Rio, mas aí vai a lugares variados: da favela ao Leblon, da Lapa à praia; de Chico Alvez a Los Hermanos; de anônimos típicos a celebridades atípicas, como Kassin, a combinações inusitadas de personalidades cariocas, como Guinga e Pedro Sá. Mas as letras olham para mais longe de mim também: Guantánamo, grutas do Afeganistão, Washington. Voltam os nomes próprios e o tom de comentário dos signos dos tempos que sempre fizeram presença em meu repertório.
Tudo contribuiu para que este viesse a ser um disco mais de banda do que o anterior. Moreno e Daniel Carvalho ficaram mais felizes com o material sonoro que produzíamos. E nós nos sentíamos ainda mais relaxados no diálogo com eles dentro do estúdio. Pedro foi mais um produtor que dirige a feitura da música. Moreno, mais um produtor que dirige a feitura do som. Daniel era responsável pela técnica de captação. Moreno tem um ouvido muito fino para gravação, mixagem e masterização. Ele ilumina os técnicos. E o tratamento sonoro que ele e Daniel trazem ilumina a música.
"Zii e Zie" é um disco muito claro e denso, nascido num ano de chuvas no Rio, um ano de nuvens pesadas e escuras, sem metáfora. É um disco que saúda a era Fernando Henrique/Lula e fala de ambições de ascensão do Brasil no cenário mundial num tom de tristeza íntima mitigada. Entro na velhice. Pedro e Moreno estão no auge da idade adulta. Marcelo e Ricardo chegam a ela. Somos pessoas de gerações diferentes partilhando interesses musicais e humanos semelhantes. E com assustadas expectativas de futuro soando em nossas cordas metálicas, plásticas, mucosas. (Caetano Veloso, Abril de 2009).
Página inicial do blog "Obra em Progresso", 2008.
Um dos shows "Obra em Progresso" no Teatro Casa Grande, 2008.
De volta, para registrar o progresso da obra
Entrevista de Caetano Veloso para o Jornal O Gobo, 18/08/2008
O Globo: No blog, você comenta que "Transamba" já tinha sido usado por Marcos Moran. O título do DVD será o do show, "Obra em progresso"?
Caetano: Não. "Obra em progresso" é uma piada por causa de James Joyce, que foi publicando trechos do grande livro dele numa revista e chamou "Work in progress". Pensei em usar para as pessoas errarem e dizerem "ordem e progresso" (e de fato muita gente comente esse erro engraçado). O título do CD não seria mesmo "Transamba". Adoro a palavra (e gostei de saber que Marcos Moran já tinha usado): ela deverá aparecer no disco, como subtítulo ou como aquelas indicações de gênero que saíam antigamente. Ou então pode só aparecer na letra de uma música.
O Globo: O show, que seria o laboratório para um CD de estúdio, vai virar DVD ao vivo?
Caetano: Isso não aconteceu. Com esse trabalho estamos preparando um disco de estúdio, que começará a ser gravado no dia 1º de setembro. O que a gravadora e meu escritório sugeriram foi juntar ao CD um DVD com as coisas que não entrarem no CD. Essas estão sendo gravadas ao vivo.
O Globo: Do repertório inédito, apresentado durante a temporada, alguma música não será aproveitada, não emplacou?
Caetano: Os shows não eram para testar se as canções emplacavam. São para exibir o processo de feitura de canções e arranjos de modo inédito: nunca se mostrou tanto o repertório e o som de um disco antes de ele ser gravado. É um modo de usar a internet.
O Globo: Durante a turnê europeia, com um show de violão e voz, você trabalhou, discutiu o conceito do "transamba" e de suas repercussões no blog "Obra em progresso". Você pretende continuar com o blog, que é um vício, como aqueles dos personagens de tua nova música, "Falso Leblon"?
Caetano: Imagino que o blog seja viciante. Esse não é meu: é do projeto. Gosto de escrever. Gosto de dialogar. Sou meio viciado em e-mail. Mas não escrevo muitos nem recebo muitos. No momento, estou totalmente absorvido pelas canções e pelos arranjos da "Obra em progresso". É difícil dizer se meu interesse pelo blog tem alguma independência disso. Estou quase incapaz de me envolver com qualquer outra coisa.
O Globo: Durante a turnê você compôs novas músicas, "Lapa" e "Lobão tem razão". Em que ele tem razão? E como Lula e FH passam pela Lapa?
Caetano: Lobão tem razão ao me dizer "chega de verdade", naquela música emocionante que fez para mim. A canção é diretamente para o Lobão. E indiretamente para a Paulinha, que me disse já muitas vezes "Lobão tem razão", pontuando críticas que faz a minha personalidade. É uma canção de amores desencontrados, cheia de imagens estranhas. Quanto a Lula e FH, aparecem numa música que fiz entusiasmado pelo que vejo na Lapa nos fins-de-semana. De modo fragmentário, a canção conta como, para mim, o uso de samba em jornais de cinema sobre futebol e, em seguida, a recuperação do Largo da Ordem, por Jaime Lerner, em Curitiba, significaram o começo da construção efetiva de um bom futuro por parte dos brasileiros, algo pós-bode de País do Futuro. E a Lapa restaurada, atraindo a fauna que atrai, é uma imagem de realização disso. É um ângulo do qual posso amar nosso tempo, apesar de tudo. E FH e Lula são figuras de liderança desse período. São, eles próprios, símbolos e veículos desse luxo que estamos tendo a petulância de começar a nos dar. Assim, apenas menciono os dois nomes - e tudo fica claro.
Gerando Zii e Zie: Daniel Carvalho, Moreno Veloso, Caetano e BandaCê.
Lista de Músicas
1 - Perdeu
(Caetano Veloso)
2 - Sem Cais
(Caetano Veloso, Pedro Sá)
3 - Por Quem?
(Caetano Veloso)
4 - Lobão Tem Razão
(Caetano Veloso)
5 - A Cor Amarela
(Caetano Veloso)
6 - A Base de Guantánamo
(Caetano Veloso)
7 - Falso Leblon
(Caetano Veloso)
8 - Incompatibilidade de Gênios
(João Bosco, Aldir Blanc)
9 - Tarado Ni Você
(Caetano Veloso)
10 - Menina da Ria
(Caetano Veloso)
11 - Ingenuidade
(Serafim Adriano da Silva)
12 - Lapa
(Caetano Veloso)
13 - Diferentemente
(Caetano Veloso)
Vamos às Letras.
1 - Perdeu (Caetano Veloso)
Pariu, cuspiu
Expeliu
Um Deus, um bicho
Um homem
Brotou alguém
Algum ninguém
O quê?
A quem?
Surgiu, vagiu
Sumiu, escapuliu
No som, no sonho
Somem
São cem
São mil
São cem mil
Um milhão
Do mal, do bem
Lá vem um
Olhos vazios
De mata escura
E mar azul
Ai, dói no peito
Aparição assim
Vai na alvorada manhã
Sai do mamilo marrom
O leite doce e sal
Tchau, mamãe
Valeu
Cresceu, vingou
Permaneceu, aprendeu
Nas bordas da favela
Mandou, julgou
Condenou, salvou
Executou, soltou
Prendeu
Colheu, esticou
Encolheu, matou
Furou, fodeu
Até ficar sem gosto
Ganhou, reganhou
Bateu, levou
Mamãe, perdeu
Perdeu, perdeu
Céu
Mar e mata
Mortos da luz desse olhar
Antes assim do que viver
Pequeno e bom
Não diz isso não
Diz isso não
A conta é outra
Tem que dar, tem que dar
Foi mal, papai
Anoiteceu
Brilhou, piscou
Bruxuleou, ardeu
Resplandeceu
A nave da cidade
O Sol se pôs
Depois nasceu
E nada aconteceu
O Sol se pôs
Depois nasceu
E nada aconteceu
O Sol se pôs
Depois nasceu
E nada aconteceu
Comentário do autor: "É a mais longa, um pouco triste, mas a letra não é pessoal como as de Cê, é meio samba." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2008).
"Eu fiz a música e eu não sabia nem o que botar na letra. Começaram a aparecer esses verbos e aí eu vi que estava aparecendo um personagem e eu deixei ele ser o personagem que ele pintasse. Terminou sendo o personagem tipo jovem do morro, traficante. Não conta a história porque é um pouco mais abstrata, entendeu? Você sente só aquele clima, porque isso também vem um pouco do negócio do rock que já está no Cê. São letras que não fazem questão de apresentar coerência de narrativa, de ideia. Você lança muitas frases sugestivas e já está dito." (Caetano Veloso em depoimento para o canal Obra em Progresso, 2008).
Foto: Fernando Young.
2 - Sem Cais (Caetano Veloso, Pedro Sá)
Catei colo
E o mar parou
Fui deitando
Pra perguntar
Nome, bairro
Amigo, amor
De onde vem
Parar o mar
Seu sorriso
Bateu aqui
'Inda posso
Me apaixonar
Quero tanto
Quero tanto
Quero tanto
Quero tanto você
Mar aberto
Mar adentro
Mar imenso
Mar intenso
Sem cais
'Tou com medo
'Tou com medo
'Tou com medo
'Tou com medo de ver
Que 'inda posso
Que 'inda posso
Que 'inda posso
Ir bem mais
Barra, Gávea
E Arpoador
Deuses brancos
De luz do mar
Deuses negros
Um esplendor
Quem é essa
E o que será
Quem me dera
Eu poder me dar
Todo a essa
Que eu nunca vi
Quero tanto
Quero tanto
Quero tanto
Quero tanto você
Mar aberto
Mar adentro
Mar intenso
Mar imenso
Sem cais
'Tou com medo
'Tou com medo
'Tou com medo
'Tou com medo de ver
Que 'inda posso
Que 'inda posso
Que 'inda posso
Ir bem mais
Comentário de Pedro Sá: "Quando a gente estava fazendo o Cê, o Caetano pediu para cada um da banda um pedaço de música, um pedaço de letra, poesia, enfim. Ele queria compor com a gente. E eu levei um teminha que eu tinha gravado há muito tempo, mas que eu achava bonito. Aí mostrei pra ele. Ele gostou, na hora ele falou: "é interessante, é bonito, mas acho que para agora não é esse trabalho aqui". Logo antes de a gente começar a ensaiar para esse show, ele me perguntou: "e aquela música, Pedrinho? Como é mesmo aquela música?". Eu toquei um pouquinho e senti que ele estava a fim de retomar isso. Aí ofereci a ele: "pô, põe uma letra, então". É muito rápida, toca duas vezes o tema, mas ao mesmo tempo é assim, um tema muito simples. Tem uma coisa assim de uma simplicidade, eu acho, não sei... da rapidez. Meio haicai, meio um poema rápido e dá vontade de ficar mais naquilo mas, ao mesmo tempo, é bonito que seja curto. (Pedro Sá em depoimento para o canal Obra em Progresso, 2008).
Foto: Leo Aversa.
3 - Por Quem? (Caetano Veloso)
Blush em minha fronha
Quem deixa
Esse cheiro bom assim?
Músculo que sonha
Vem
Ai, ai, ai, ai, ai, ai
Quem vai
Ai, ai, ai, ai, ai
Quem sai
Ai, ai, ai, ai, ai
De mim
Foi a noite
Negros asfalto
Pneu e mar
Ranhuras da montanha
Descem até o vale
Lágrimas vão de mim
Por quem?
Por quem?
Comentário do autor: "Eu fiz a música e não sabia o que botar na letra. Me veio assim fora do esquema dos ritmos, do negócio da batida que eu queria fazer. Eu fiquei com aquela melodia um tempão sem saber o que botar. Experimentei um tipo de letra com umas palavras que não entravam... Depois veio essa palavra 'blush' na minha cabeça que tem tudo a ver com uma porção de coisa que já aconteceu na minha vida com a música popular. Por exemplo, eu botei a palavra 'lanchonete' em Baby porque eu odiava a palavra. Se eu pudesse eu fazia o mundo voltar atrás para o Brasil não adotar aquela palavra, naquela época. Aí eu botei porque era tão feia, cafona e esquisita. Eu botei porque aquilo me liberava. Eu tinha uma raiva danada das pessoas dizerem 'blush' em vez de dizer 'rouge' porque sempre foi 'rouge' a palavra do que a pessoa põe no rosto. E 'rouge' é uma palavra bonita. 'Blush' é uma palavra que eu achava horrorosa. Aí botei 'blush', a primeira palavra. Botei "Blush em minha fronha" e fronha já é uma palavra que, em português, é meio difícil. Ela tem uma certa tristeza, ela é noturna. Aí vieram aquelas coisas de "negros, asfalto, pneu e mar". Essa parte é totalmente documental porque eu durmo aqui e, no silêncio total da madrugada, você ouve passar o carro, mesmo com o som bem amortecido, você ouve. E as ondas mais do que o carro. Você ouve esses sons de pneu e asfalto do mar e está tudo preto de noite. Foram vindo coisas assim." (Caetano Veloso em depoimento para o canal Obra em Progresso, 2008).
Foto: Fernando Young.
4 - Lobão Tem Razão (Caetano Veloso)
Lobão tem razão
Irmão meu Lobão
Chega de verdade
É o que a mulher diz
Tô tão infeliz
Um crucificado
Deitado ao lado
Os nervos tremem
No chão do quarto
Por onde o sêmen
Se espalhou
O mundo acabou
Mas elas virão
E nos salvarão
A ambos nós dois
O medo já foi
O homem é o próprio
Lobão do homem
Ela só vem
Quando os mortos
Somem
Ela que quase
Nos matou
Chove devagar
Sobre o Redentor
Se ela me chamar
Agora
Eu vou
Mais vale um Lobão
Do que um leão
Meto um sincerão
E nada se dá
O rock acertou
Quando você tocou
Com sua banda
E tamborim
Na escola de samba
E falou mal
Do seu amor
Chove devagar
Cobre o Redentor
Se ela me chamar
Agora
Eu vou
Comentário do autor: "A música do Lobão [Para o Mano Caetano], me toca como um todo. Mas esse "chega de verdade" é forte demais para mim. Fiquei admoestado, senti que alguma coisa teria que mudar em mim. É uma mania de verdade. A questão não é de ser verdade, é de precisar tanto dizer. A frase ainda tem a mesma repercussão na minha cabeça. Ele tem razão porque não consegui melhorar em nada quanto a isso." (Caetano Veloso para a Revista TPM, 2009).
Foto: Fernando Young.
5 - A Cor Amarela (Caetano Veloso)
Uma menina preta
De biquíni amarelo
Na frente da onda
Que onda
Que onda
Que onda
Que dá
Que bunda
Que bunda
É o melhor
Que podia acontecer
A cor amarela
Destacar-se entre o mar
E o marrom
Da pele tesa dela
O sol já têm muito
O que fazer
Na minha vida
Querida
Quem é você?
Que onda
Que onda
Que onda
Que dá
Que bunda
Que bunda
Comentário do autor: "Esse daí é totalmente documental. Foi aqui na frente, eu desci de casa sozinho para ir para a praia, aí vi uma menina com o biquíni amarelo, uma menina preta. Me lembrei que há uns dois anos atrás, não sei, eu vi uma moça preta, tão preta quanto essa menina de pele marrom escura com um biquíni amarelo mais ou menos daquele mesmo tom e eu fiquei maravilhado com aquela visão. Essa moça era uma moça bonita, de corpo bonito e o amarelo com a pele preta na praia ficava lindo. A onda aqui no Rio, quando está legal (quando não tem maré vermelha), quando sobe, ela fica verde. Bethânia sempre falava isso comigo: "Caetano, eu fico apaixonada com essas ondas aqui do Rio". Na Bahia, a água fica branca, transparente. Aqui no Rio fica verde. Verde e cintilante. Bethânia dizia: "parece que é uma coisa mais rica, luxuosa. É lindo. É uma coisa tão do Rio de Janeiro isso!". E era assim. Na frente dessa onda, a menina com esse biquíni. A onda vinha e depois não tinha a onda, ficava só areia. Aí depois a onda subia. Aquelas cores lindas... e terminei fazendo essa música." (Caetano Veloso em depoimento para o canal Obra em Progresso, 2008).
Foto: Fernando Young.
6 - A Base de Guantánamo (Caetano Veloso)
O fato dos americanos
Desrespeitarem
Os direitos humanos
Em solo cubano
É por demais forte
Simbolicamente
Para eu não me abalar
A base de Guantánamo
A base
Da baía de Guantánamo
A base de Guantánamo
Guantánamo
Comentário do autor: "Eu me correspondendo com uma pessoa amiga que falou desse negócio de Guantánamo, de Estados Unidos e Iraque e eu falei: "Eu vi esse filme A Caminho de Guantánamo." E botei assim: "o fato dos americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar". Eu escrevi assim no e-mail. E depois, porque eu tinha visto o filme, pensei que poderia fazer uma música, me lembrei da frase que eu tinha escrito, peguei o violão e criei aquilo com essa frase em prosa. É uma frase de e-mail, não é poesia." (Caetano Veloso em depoimento para o canal Obra em Progresso, 2008).
Foto: Fernando Young.
7 - Falso Leblon (Caetano Veloso)
Ecstasy, bala, balada
E me chama depois
Pra dar uma e dar dois
Ela é que causa
É que explana
E que acende os faróis
Mas o meu samba
Transcende
E apaga as pegadas
Que ela quer deixar
Falso Leblon
Big Brother
Tou fora do ar
Ai, amor
Chuva
Num canto de praia
No fim da manhã
E depois de amanhã?
O que faremos do Rio
Quando, enriquecendo
Passarmos a dar
As cartas
As coordenadas
De um mundo melhor
Quanta tristeza guardada
Na cara da moça bonita
Que dói
Francisco Alves
Seu Jorge, os Hermanos
Já foi
Ai, amor
Chuva
Num canto de praia
No fim da manhã
E depois de amanhã?
Drogas, tou fora
Tá foda
Agora vambora
Nem vinho tomei
Me sinto muito sozinho
E ela é a lei
Odeio a vã cocaína
Mas amo a menina
E olho pro céu
Ela se engancha por cima
De mim: quem sou eu?
Comentário do autor: "A primeira coisa que fiz em Falso Leblon foi a levada da bateria. Eu queria construir uma linha de baixo e, por fim, uma melodia em cima daquela levada. E de fato fiz as coisas nessa ordem. Sugeri algumas divisões rítmicas para o baixo, Ricardo as desenvolveu e multiplicou, disse a Pedrinho que encontrasse o lugar (e os timbres) dele entre esses dois elementos, e só então compus a melodia.
Não que tivéssemos armado uma base completa a que eu somei a melodia depois. Isso tudo foi apenas uma série de breves exemplos de combinações possíveis. Feitos num ensaio. Eu cantava a batida do contratempo e do bumbo. Quando Marcelo experimentou na bateria de verdade, passei a cantar (praticamente sem notas) as frases do baixo.
Quando voltei pra casa, depois do ensaio, esbocei a melodia. Vi que ela tinha uma semelhança com a de Perdeu: ambas são como clarinadas – o que combina tanto com o bandido de Perdeu quanto com o “Eu” da letra de Falso Leblon: um som matinal e masculino, com gosto do que em inglês se chama lindamente de “Morning Wood”.
São dois mundos. O do garoto favelado e o meu, isto é, o dos que compram as drogas que ele vende e têm opiniões cool sobre a violência no Rio. Aquela mesma divisão esquemática de “Tropa de Elite”. Mas, tal como em Perdeu, em Falso Leblon eu não tinha idéia do que iria pôr na letra, mesmo quando a melodia já estava pronta.
Para ser sincero, a única coisa que pensei que poria foi o nome de Francisco Alves, por causa da melodia tipo Serra da Boa Esperança da segunda parte da música. Quando vi, o resto estava se impondo. No caso de Perdeu, percebi logo que o que estava saindo era um Meu Guri que, em vez de ser um ladrãozinho (como disse Vinicius quando teve a casa assaltada), era um chefete do tráfico. (Quando mostrei a música aos caras da banda, fui dizendo: é uma espécie de Meu Guri, e fiquei contente quando li aqui no blog – e na imprensa – que muita gente pensou a mesma coisa.)
Mas as clarinadas de Falso Leblon anunciam uma manhã onde o sexo não perdeu o gosto pelo excesso (de atividade e, sobretudo, de poder) como em Perdeu, mas pelo clima de desesperança. Mal comparando, Falso Leblon está para Perdeu assim como os filmes de Antonioni estão para o neo-realismo.
É uma crônica fragmentária sobre o Leblon Big Brother e o retrato de alguma menina tão bonita quanto auto-destrutiva. É também sobre o mundo das celebridades, o meu – e isso não vai sem uma expressão de alegria talvez para alguns injustificável.
Em primeiro lugar, o título, que tirei de um dos versos que me ocorreram, me faz rir por ecoar a história (ou lenda) de que o bairro tem esse nome porque, como o Gantois na Bahia, ali foi a propriedade de uma família francesa, de nome Le Blond, ou Leblond (acho que há até um apart-hotel com esse nome), que quer dizer “o louro” (ou “o loiro”, como diria meu amigo paulista), o que dá ao título o sentido semi-oculto de “falso louro”, a bem dizer, um masculino para “falsa loura”.
Depois há os fotógrafos (que ganharam, por causa do personagem de Fellini, esse nome de paparazzi). Eles por vezes irritam (embora se diga que muitas vezes eles são chamados indiretamente pelas próprias vítimas), mas não deixam de compor o clima de charme sinistro das esquinas de Ataulfo de Paiva com Aristides Espínola e principalmente da rua Dias Ferreira no trecho correspondente.
Sinistro porque às vezes é assustador ver um cara surgir da sombra de uma parede, com um gorro preto e uma câmera preta. Charme porque é parte do folclore do Leblon de hoje. Breve histórico do jornalismo de celebridades: nascido do fascínio brega inglês pela família real, expandido depois para as autoridades políticas e para esses clones de imperadores romanos de filme holywood que são os rock stars; ele, com uma pitada da fofoca chapa-beje da Hollywood do período dos grandes estúdios, cresceu na Espanha depois que Franco caiu e o rei voltou e, a partir da Hola espanhola, virou Caras argentina e, depois, brasileira, tudo isso sendo finalmente potencializado pelo advento da internet.
O grau do meu desprezo por esse fenômeno eu meço pela ausência até de raiva em mim. Não que eu não tenha sentido raiva quando percebi que um desses espiões estavam criando problemas reais para mim. Mas o fato é que não desamo minha condição de celebridade.
A vida pode oferecer milhões de caminhos para você encontrar situações de felicidade. Ser famoso não é um impedimento. De minha parte, não entendo muito bem quando leio que há que separar a vida pessoal da fama profissional, e, sobretudo, que devemos proteger nossos filhos desse mundo pecaminoso em que nos metemos.
Somos atrizes dos anos 20 e 30 temendo que seus filhos sejam filhos de putas? E vejo Michael Jackson pondo burca nos garotinhos dele. Comigo não, violão. Há uma alegria em ser célebre. E é justamente por reconhecer isso que eu não sinto ansiedade em relação às situações inerentes à situação: eu entendo tão mal quem esconde os filhos quanto quem telefona para os sites de fofoca dizendo que está com Fulano de Tal no Sushi Leblon.
Claro, quando se trata de gente direita, cada um encontra o equilíbrio que lhe é mais adequado. Mas essa onda anti-celebridade é apenas o outro lado da moeda dos sites de fofoca. Tou fora. E realmente detesto drogas. Subjetiva e objetivamente. Em mim e nos outros. Espero que algo dessas decisões internas apareça nos versos, nas notas e nos tempos de Falso Leblon.” (Caetano Veloso para o blog Obra em Progresso, 2008).
Foto: Fernando Young.
8 - Incompatibilidade de Gênios (João Bosco, Aldir Blanc)
Dotô
Jogava o Flamengo
Eu queria escutar
Chegou
Mudou de estação
Começou a cantar
Tem mais
Um cisco no olho
Ela em vez
De assoprar
Sem dó
Falou que por ela
Eu podia cegar
Se eu dou
(Ai, se eu dou)
Um pulo, um pulinho
Um instantinho no bar
Bastou
Durante dez noites
Me faz jejuar
Levou
As minhas cuecas
Pro bruxo rezar
Coou
Meu café na calçola
Pra me segurar
Se eu tô
Devendo dinheiro
E vem um me cobrar
Dotô
A peste abre a porta
E ainda manda sentar
Depois
Se eu mudo de emprego
Que é pra melhorar
Vê só
Convida a mãe dela
Pra ir morar lá
Dotô
Se eu peço feijão
Ela deixa salgar
Calor
Mas veste casaco
Pra me atazanar
E ontem
Sonhando comigo
Mandou eu jogar no burro
E deu na cabeça
A centena e o milhar
Quero me separar
Comentário de Caetano: "Nesse daí, por exemplo, eu reduzi a batida de João Bosco a uma forma que se repete igual ao longo da canção inteira. Só tem uma mudança de dinâmica pra ficar um negócio hipnótico." (Caetano Veloso nos Extras do DVD Obra em Progresso, 2010).
Foto: Fernando Young.
9 - Tarado Ni Você (Caetano Veloso)
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado, tarado
Tarado
Tarado ni você
Tarado ni você
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado
Tarado ni você
Tarado ni você
Ni mim
No carnaval
Ni tudo
Ni todo mundo nu
Deixa eu gostar de
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado, tarado
Tarado
Tarado ni você
Tarado ni você
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado
Tarado ni você
Tarado ni você
Ni mim
No carnaval
Ni tudo
Ni todo mundo nu
Deixa eu gostar de você
Ni mim
No carnaval
Ni tudo
Ni todo mundo nu
Deixa eu gostar de você
Comentário do autor: "Foi a primeira que eu fiz em Salvador, no verão. Eu comecei com esse negócio de fazer um ritmo, uma batida bem... escolher uma das batidas possíveis do samba no violão e amarrar, fazer ela repetitiva. Aí eu ficava cantando, fazendo a música e cantando junto com o violão. Fui armando os acordes e vi que dava pra dizer "tarado". Me lembrei da música que tinha com o Jorge Mautner, aí veio "tarado ni você". "Ni" é um negócio da preposição "em" em iorubá, que eu aprendi na Nigéria nos anos 70. "Ni você"... aí veio "ni mim", um negócio narcisista. É interessante porque tem aquele prazer de ser você mesmo na hora que você está sentindo alguma coisa intensa, sobretudo nessas coisas coisas sexuais, você fica tarado ni você. Aí vem "no carnaval", né? Porque era período de carnaval em Salvador. "Ni tudo", "ni todo mundo nu" aí vem uma ideia de carnaval que sugere todo mundo nu, uma porção de gente nua junta, uma coisa assim. Tem aquele brack "deixa eu gostar de você", que é da marchinha de carnaval que eu botei no Nosso Estranho Amor. (Caetano Veloso em depoimento para o canal Obra em Progresso, 2008).
Foto: Leo Aversa.
10 - Menina da Ria (Caetano Veloso)
Uma moça
De lá do outro lado da poça
Numa aparição transatlântica
Me encheu de elegante alegria
(Ai, Portugal, ovos moles, Aveiro)
Menina da Ria
Menina da Ria
Menina da Ria
E uma preta
(Parece que eu estou na Bahia)
Tão linda quanto ela e pedia
No seu português lusitano:
"Pode o Caetano tirar uma foto?"
Menina da Ria
Menina da Ria
Menina da Ria
Arte Nova, um prédio art-nouveau numa margem
Em frente à marina miragem:
Os barcos na Ria. E depois
Uma taça sobre o pubis glabro, um estudo
Nenhum descalabro se tudo
É sexo sem sexo em nós dois
Menina da Ria
Menina da Ria
Menina da Ria
Comentário do autor: "[A ria] é uma característica da cidade [de Aveiro, em Portugal]. É muito bonita. Todo o mundo fala a ria. Eu comentei na hora do show, só de violão: eu vou fazer uma música chamada Menina da Ria. Eles riram muito, aplaudiram, fiquei com esse compromisso, cheguei no Brasil e fiz." (Caetano Veloso em entrevista divulgada pela editora Universal, 2008).
Foto: Fernando Young.
11 - Ingenuidade (Serafim Adriano da Silva)
Não,
Eu não podia me enganar assim
Com uma criança qualquer
Que veio ao mundo bem depois de mim
Eu não reclamo o que ela fez
Só condeno a mim mesmo
Por ter me enganado outra vez
Eu fiz o papel de um garotinho
Quando arranja a primeira namorada
Na ingenuidade acredita em tudo
Porque do amor não entende nada
Eu que tantas vezes machuquei meu coração
E levei tantos anos pra curar
Fui tornar a molhar meus olhos
Coisa que eu luto a tanto tempo pra enxugar
Foto: Fernando Young.
12 - Lapa (Caetano Veloso)
Samba canal 100
No meio dos 60
E nos 70
Era o Largo da Ordem
Tudo vinha
Desaguar na Lapa
Lapa, minha inspiração
Lapa, Guinga e Pedro Sá
Lição
Quem projetaria
Essa elegância solta
Essa alegria
Essa moça-vanguarda
Esse rapaz gostoso
Que é a Lapa
Lapa, Circo Voador
Lapa, choro
E rock'n'roll
Perdão
Cool e popular
Cool e popular
Cool e popular
A Lapa
Quem ia imaginar
Quem ia imaginar
Quem ia imaginar
Só eu
Eu sozinho
Só e solitário
Sob a chuva da Bahia
Pobre e requintado
E rico e requintado
E refinado
E ainda há conflito
Pelourinho vezes Rio
É Lapa
Lapa
Veio a salvação
Lapa
Falta o mundo ver
Assim
Água de Kassin
Lava a Nova Capela
Eu amo a PUC
E a gíria dos bandidos
Fundição Progresso
Eis a Lapa
Lapa
Lula e FH
Lapa
Amo nosso tempo
Em ti
Comentário do autor: "Logo os primeiros versos dão todo o histórico de como é esse negócio pra mim: "Samba Canal 100 no meio dos 60 / E nos 70 era o Largo da Ordem". Quando eu era menino, não existia Canal 100 [cinejornal sobre futebol]. Tocava fox quando passava futebol, resquício de que era um esporte britânico. Não havia vinculação entre futebol e samba. Eu pensava que, se colocassem samba no futebol, o Brasil iria se afirmar. Aí apareceu o Canal 100 com aquele samba "Que bonito é...", uma coisa maravilhosa. Isso é de uma importância enorme, era o Brasil vindo. Quando voltei de Londres, Curitiba se tornou minha cidade favorita. O Jaime Lerner tinha recuperado o largo da Ordem, que tinha a arquitetura mais tradicional da cidade. Mas Curitiba não tem relíquia arquitetônica. Zero, se comparar a Salvador, São Luís, Rio de Janeiro. Olhei para aquilo e disse: "Não posso nem sonhar, mas se isso fosse feito na Bahia ou em São Luís ou no Recife...". Uma década depois, Antônio Carlos Magalhães fez a recuperação do Pelourinho. Quando aconteceu, nem queria ouvir reclamação do pessoal de esquerda, que dizia "mas as pessoas foram removidas...". Conversa chata, demagógica. Aquela própria gente se beneficiaria tão ou mais de aquilo ter acontecido. Eu via aquilo como uma afirmação [do Brasil]. E era, e é. Depois, isso foi acontecendo na Lapa, de um jeito menos oficial que na Bahia. Fiquei muito emocionado. No Rio, esse efeito se multiplica, é muito maior. Levei uma amiga americana lá, e ela ficou impressionada com a Lapa era vital, elegante e popular." (Caetano Veloso para a Revista TPM, 2009).
Foto: Fernando Young.
13 - Diferentemente (Caetano Veloso)
Acho que ouvi numa canção de Madonna
"When you look at me,
I don't know who I am"
E desentendi
Pois comigo, é você quem me olhando, detona
A explosão de eu saber
Quem eu sou
Eu nunca imaginei que nesse mundo alguma vez
Alguém soubesse quem é
Mas se você me vê, seus olhos
São mais do que meus
Pois amo
E você ama
Então o indizível se divisa
E a luz de tantos céus inunda a mente
E, no entanto, diferentemente de Osama e Condoleezza
Eu não acredito em Deus
Ficha Técnica
Uma produção Universal Music
Produzido por Moreno Veloso e Pedro Sá
Direção artística: Daniel Silveira
Coordenação de A&R: Marcelo Vilella
A&R assistentes: Miguel Afonso e Patrícia Aidas
Coordenador executivo: João Franklin
Assistente do coordenador executivo: Miguel Lavigne
Gravado e mixado no AR Studios e Mega Studios no Rio de Janeiro por Daniel Carvalho e Moreno Veloso
Assistentes: Igor Ferreira, Luisão Dantas, Augusto César e Leo Ribeiro
Masterizado no Magic Master por Ricardo Garcia
Arranjos de Caetano Veloso, Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado.
Direção de arte: Caetano Veloso
Projeto gráfico: Pedro Einloft
Lomografia: Pedro Sá
Revisões: Luiz Augusto
Coordenação gráfica: Geysa Adnet