2012 - Abraçaço - Caetano Veloso


Abraçaço, lançado no final de 2012, encerrou a trilogia de Caetano com a bandaCê. Ao contrário de e Zii e Zie, discos de conceitos fechados em que a maioria das coisas já estavam predeterminadas na cabeça do cantor, nesse último álbum a banda composta por Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado teve maior liberdade de criação: "Já deixo o que vier deles. Indico o caminho e sugiro umas coisas, mas já vêm as coisas deles. A gente já está muito integrado", disse Caetano. A Bossa Nova É Foda, "o grito de guerra do Brasil", é uma ode à criação do mestre maior João Gilberto, o bruxo de Juazeiro, onde Bob Dylan é bardo judeu e Vinicius de Moraes, velho profeta. A espontaneidade do trabalho é traduzida em Um Abraçaço, palavra usada por Caetano para se despedir em e-mails e que sugere círculos concêntricos de abraços. Estou Triste, curta e depressiva como Etc. (disco Estrangeiro - 1989), explicita o tom melancólico do disco no verso: "o lugar mais frio do Rio é o meu quarto". A apreciação de um filme inspirou a composição de O Império da lei, estruturada em alusão ao ritmo amazônico do carimbó. Após a balada Quero Ser Justo, Caetano narra tédio, horror e maravilha na biográfica Um Comunista, sobre Mariguella: "questão de respiração histórica do ritmo dos tempos". Segue Funk Melódico citando ao avesso o samba Mulher Indigesta (Noel Rosa) e a poesia de Vinicius no verso "o ciúme é o perfume do amor". Vinco e Quando o Galo Cantou trazem a temática do sexo de maneira mais contemplativa e menos explosiva, ao contrário do que se ouviu em . Parabéns é a transcrição exata de um e-mail enviado por Mauro Lima e Gayana, do tropicalista Rogério Duarte, que recebeu inicialmente o nome "Hino Gay", encerra mais uma etapa na vida artística de Caetano numa íntima declaração de amor.

Caetano: "Adoro a palavra. Terminou aparecendo na letra de uma das canções. Acho bonito esse aumentativo em aço. Que tem em espanhol também, como em "golazo". No caso de abraço, esse aumentativo em aço dá um eco, parece que a pessoa errou na digitação. É bonito também de ver. É um abração. Como é bonita a palavra, parece um abraço que abrange mais, como círculos concêntricos, como uma onda que expande. Um abraço grande que se expande." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2012).

"A ideia que a palavra me dá é a de um abraço que se multiplica. Acho que é por causa do "açaç". Eu não esperava que o álbum tivesse esse espírito, dada a tristeza e introspecção de tantas de suas canções. Mas as pessoas, ao receberem o disco, transformaram todo esse meu sentimento de solidão num abraçaço mesmo. Talvez as imagens criadas por Fernando Young e Quinta-Feira para a capa tenham ajudado a criar essa receptividade. Talvez a canção Um Abraçaço, com seu refrão que se mostrou bom de cantar (todas as plateias o cantam comigo), talvez o clip de A Bossa Nova É Foda - o fato é que o disco se mostrou o mais comunicativo dos três que fiz com a BandaCê.

“Não sou roqueiro. Me interessei pelo rock a partir de 1966, ou seja, dez anos depois de sua explosão. Mas desde o tropicalismo que o rock é tema meu (e de Gil e de Tom Zé e de Gal). Acho que o CD  foi o mais pensado para valer como contribuição direta para a produção de rock no Brasil, embora minha voz de Chet Baker seja uma substância estranha ao mundo do rock. Zii e Zie e Abraçaço são menos cerrados nessa posição. Muita gente diz que Abraçaço é mais como meus discos de sempre (como se eles todos não tivessem sempre sido estranhos uns aos outros: Domingo e Transa, Jóia e Velô, Livro e  - o que cada um tem de semelhante a cada outro, exceto minha voz e minhas limitações pessoais?). Assim, só estou certo de que preciso fazer um trabalho menos barulhento: meu ouvido fica prejudicado demais com guitarras elétricas. Mas nunca sei o que exatamente vou fazer em seguida. Acho Abraçaço mais relaxado e frouxo, isso tem desvantagens e vantagens. É uma vantagem a banda e eu estarmos tão sintonizados que quase não é preciso um plano de arranjo para a coisa soar orgânica." (Caetano Veloso para a Tribuna do Norte, 2013). 

"O é mais pau duro. Tem até esse tema da amargura agora, que tinha no . Mas o era mais alegre. Abraçaço tem uma melancolia que não tinha antes. O tinha raiva, até angústia, mas não melancolia. Tinha a canção Minhas Lágrimas, que era triste. Mas Estou Triste é a mais triste da trilogia. A canção Um Abraçaço é bonita e melancólica. É muito simples, ela quase não existe, mas tem emoção. E essa emoção é cheia de melancolia, marcada pela melancolia." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2012).

"Com o Abraçaço, tomei involuntariamente uma certa distância que me fez perceber que algumas canções da fase BandaCê entraram na vida de um número considerável de pessoas. É bom perceber que, depois de décadas de composições, algumas novas possam entrar no páreo com as já conhecidas há muito tempo. E que elas têm um clima diferente, característico desse período tardio. É gozado. Parece um pouco com quando eu tinha 24 anos. Já cheguei a pensar que eu não deveria compor mais muitas canções, mas aí fiz o repertório do Recanto pra Gal, e meus discos com a BandaCê. A gente criou um entendimento rápido sobre o que queremos fazer, desde o primeiro ensaio para o . Tenho consciência de que é um trabalho modesto. Mas nem eu nem os caras da banda seremos os mesmos depois disso. Eles são jovens, isso é natural. Para mim, é difícil imaginar o que fazer depois dessa trilogia." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2014).

Caetano grava "Abraçaço" (2012). 


Banda Cê e Caetano Veloso avaliam Abraçaço.

Foto: Fernando Young.

 Faixa por faixa, por Caetano
(O Estado de S. Paulo, 30/11/12)

A bossa nova é foda: A que eu mais gosto. Um abraçaço: A mais nova de todas e feita já com o disco adiantado. Acho melancólica. Estou triste: É bonita. O império da lei: Fiz depois de ver o filme "Receberia a Pior Notícia dos Seus Lindos Lábios". Li o livro também e gostei muito. Quero ser justo: Uma balada de admiração pela beleza de outra pessoa. Um comunista: Uma canção sobre Mariguella. Funk melódico: Referência ao funk carioca, como fiz no disco da Gal. Vinco: Canção de amor físico. Quando o galo cantou: Também. Parabéns: Foi um e-mail que recebi de aniversário do Mauro Lima. Gayana: Rogério Duarte estava sumido, mas eu estive com ele na Bahia.

BandaCê

Violão e voz: Caetano Veloso
Guitarra e coro: Pedro Sá
Baixo, teclados e coro: Ricardo Dias Gomes
Bateria, percussões e coro: Marcelo Callado

Foto: Fernando Young.

"Adoro essa banda, tocar com ela. É miraculoso. Nunca tive com eles 10 segundos de atraso, de dizer uma ideia e esperar para que ela se resolva. Quando vai, já é. É incrível. Mais do que qualquer outra banda com a qual eu já tenha tocado". (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2012). 

Lista de Músicas

1 - A Bossa Nova É Foda
(Caetano Veloso)

2 - Um Abraçaço
(Caetano Veloso)

3 - Estou Triste
(Caetano Veloso)

4 - O Império da Lei
(Caetano Veloso)

5 - Quero Ser Justo
(Caetano Veloso)

6 - Um Comunista
Para Maria de Lourdes Mello Vellame
e para Barbara Browning
(Caetano Veloso)

7 - Funk Melódico
(Caetano Veloso)

8 - Vinco
(Caetano Veloso)

9 - Quando o Galo Cantou
(Caetano Veloso)

10 - Parabéns
(Caetano Veloso, Mauro Lima)

11 - Gayana
(Rogério Duarte)

Vamos às Letras

1 - A Bossa Nova É Foda (Caetano Veloso)

O bruxo de Juazeiro numa caverna do louro francês
(Quem terá tido essa fazenda de areais?)
Fitas-cassete, uma ergométrica, uns restos de rabada
Lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação
Pura-invenção
Dança-da-moda
A bossa nova é foda

O magno instrumento grego antigo
Diz que quando chegares aqui
Que é um dom que muito homem não tem
Que é influência do jazz
E tanto faz se o bardo judeu
Romântico de Minessota
Porqueiro Eumeu
O reconhece de volta a Ítaca:
A nossa vida nunca mais será igual
Samba-de-roda, neo-carnaval, rio São Francisco
Rio de Janeiro, canavial
A bossa nova é foda

O tom de tudo
Comanda as ondas do mar
Ondas sonoras
Com que colore no espacial
Homem cruel
Destruidor, de brilho intenso, monumental
Deu ao poeta, velho profeta,
A chave da casa
De munição
O velho transformou o mito
Das raças tristes
Em Minotauros, Junior Cigano,
Em José Aldo, Lyoto Machida,
Vítor Belfort, Anderson Silva
E a coisa toda:
A bossa nova é foda

Comentário do autor: "Canções com letras que parecem indecifráveis têm muito apelo, têm atração forte. Na língua inglesa é uma tradição de décadas, você praticamente não entende nada e, no entanto, as pessoas gostam daquelas canções. São sugestivas porque têm palavras escolhidas que calham bem naquela melodia. Estou lendo o livro do David Byrne, "How Music Works", em que ele conta como decidia as palavras que usava nas melodias. E elas muitas vezes partiam do som. Aquilo é sugestivo, não explícito, não mastigado. Qualquer Coisa foi um grande sucesso, mas é quase um texto abstrato. A Bossa Nova É Foda, do disco novo, é quase um jogo de palavras cruzadas, uma charada, mas o importante é o essencial. E o essencial é que a bossa nova é foda. Ali há outras referências. Ao ouvir "o bruxo de Juazeiro", não é possível que uma pessoa não saiba a quem estou me referindo. E mesmo que "o magno instrumento grego antigo" seja uma maluquice, como se fosse outro desafio de palavras cruzadas, em seguida você ouve que "diz que quando chegares aqui que é um dom que muito homem não tem que é influência do jazz". Não é possível que não perceba que eu estou falando de Carlos Lyra. Quando chegares aqui é o dom que muito homem não tem, da música Maria Ninguém, e a influência do jazz! São momentos-chave na história da composição de Carlos Lyra. E aí você pensa em magno, associa com Carlos. E instrumento grego antigo? Lyra. É uma brincadeira, mas não precisa a pessoa fazer isso. Eu faço, acho bacana." (Caetano Veloso para O Estado de S. Paulo, 2012).

"Ele [João Gilberto] era louco por boxe. Caracterizou o estilo dele de ataque dos acordes e de escolha das divisões como um golpe de caratê, quando voltou dos EUA, numa entrevista ao Tárik de Souza. E gostava de ver boxe, era fã de Mike Tyson e seguramente assiste MMA. Mas isso é o fato. Disso eu já gosto. O que eu acho também é que o MMA foi uma criação muito brasileira, porque é uma mistura de lutas, de tipos de luta que nasceu com os Gracie, em Belém do Pará. É mistura criada a partir do Brasil, entendeu? Então nesse ponto tem um paralelo com a bossa nova. E tem um desejo em toda a canção de fazer um retrato da bossa nova como gesto histórico e estético agressivo. Não o clichê da coisa doce e suave. Mas não é nenhuma novidade, é apenas uma maneira de dizer. Essa canção é outra maneira de dizer algo que vem sendo dito por mim, pelo Tom Zé, pelo Gil, por diversas pessoas há muito tempo. Tom Zé tem um disco todo sobre isso, e tem muitas falas dele em que ele apresenta a bossa nova como gesto histórico de grande violência. E eu gosto de dizer assim. Acho que também porque eu leio muito uns jornalistas americanos, ingleses, que falam como se a bossa nova fosse um negócio mole, doce. Eles estão errados." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2012).

"É mesmo verdade que escrever A Bossa Nova É Foda me deu um imenso prazer. É a canção de que mais gosto em todo o disco. As palavras aparecem como numa charada. Quem conhece música, percebe logo que "o bruxo de Juazeiro" é João Gilberto (o que remete a Machado de Assis, conhecido como "o bruxo do Cosme Velho"). Mas quase ninguém reconheceu Carlos Lyra debaixo das palavras "o Magno instrumento grego antigo" – que parece um conceito para se adivinhar num jogo de palavras cruzadas. É muito abuso, mas nesse caso é legítimo que seja assim: o tema e o tratamento já liberam a mente pra qualquer maluquice, o que não é o caso com O Império da Lei ou Um Comunista. E a banda faz tudo se ligar ao. Aliás, essa canção foi a única do Abraçaço que levei aos elementos da banda com o esboço do arranjo todo estruturado, como fiz com as canções do . A menção aos lutadores de MMA é complementação da homenagem a João, que gosta dessas lutas – e da presença cultural brasileira, inventiva e misturadora, que está na bossa nova e no nascedouro do UFC." (Caetano Veloso para o jornal Público, 2014).

"Moreno produz os discos desde que comecei a tocar com a bandaCê. Zeca e Tom são as primeiras pessoas a ouvirem todas as músicas novas que faço. E comentam, influem. Por exemplo, os nomes dos lutadores de MMA, o Tom e o Zeca que me ajudaram a escolher e pôr em ordem." (Caetano Veloso para a Revista Gol, 2013).

Bastidores do clipe de A Bossa Nova É Foda.

2 - Um Abraçaço (Caetano Veloso)

Dei um laço no espaço
Pra pegar um pedaço
Do universo que podemos ver
Com nossos olhos nus
Nossa lentes e azuis
Nossos computadores luz

Esse laço era um verso
Mas foi tudo perverso
Você não se deixou ficar
No meu emaranhado
Foi parar do outro lado
Do outro lado de lá de lá

Ei
Hoje eu mando um abraçaço

Um amasso, um beijaço
Meu olhar de palhaço
Seu orgulho tão sério
Um grande estardalhaço
Pro meu velho cansaço
Do eterno mistério

Meu destino eu não traço
Não desenho ou desfaço
O acaso é o grão-senhor
Tudo o que não deu certo
E sei que não tem conserto
Meu silêncio chorou chorou

Ei
Hoje eu mando um abraçaço

Comentário do autor: "A canção Um Abraçaço eu compus quando a gente já estava gravando, já tinha mais da metade gravada. Eu compus e ainda terminei dentro do estúdio, botando letra em cima da base já pronta." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2012).

Mixagem do álbum Abraçaço.

3 - Estou Triste (Caetano Veloso)

Estou triste tão triste
Estou muito triste
Por que será que existe o que quer que seja?
O meu lábio não diz, o meu gesto não faz
Eu me sinto vazio
E ainda assim farto
Estou triste tão triste
E o lugar mais frio do Rio
É o meu quarto

Comentário do autor: "Fiz porque estava mesmo triste e até fazer a canção me ajudou a superar aquele momento." (Caetano Veloso para O Estado de S. Paulo, 2012).

Clipe de A Bossa Nova É Foda.

4 - O Império da Lei (Caetano Veloso)

O império da lei há de chegar no coração do Pará
O império da lei há de chegar no coração do Pará
O império da lei há de chegar lá

Quem matou meu amor
Tem que pagar
E ainda mais quem mandou matar
Ter o olho no olho do jaguar
Virar jaguar

O império da lei há de chegar no coração do Pará

Comentário do autor: "Vendo o filme ["Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios"], fiquei muito emocionado e pensando nessa situação do interior do Pará, que a gente acompanha pela imprensa há muitos anos, com a sensação de que o império da lei ainda não pôs seus tentáculos ali de modo firme. No filme, Dona Onete canta sobre uma batida, eu queria essa batida para essa música. Falei com a banda, e eles entenderam logo. No filme,  a batida estava discreta, eu queria trazê-la para a frente. Queria algo bem forte, pra ser um brado mesmo. Pelo ritmo, tem um certo caráter de canção de festa, mas é nitidamente um brado de luta." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2012).

"O Império da Lei, nasceu de eu ter visto um filme brasileiro chamado "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios". A história passa-se no Pará e há assassinatos anunciados, como aconteceu com Chico Mendes e com a freira Dorothy Stang. Usei essa expressão "império da lei", tão repetida na lista de características das democracias liberais do Ocidente, o que é meio estranho. Parece que não abandono o espírito tropicalista de deslocar palavras, imagens e ideias dos seus contextos." (Caetano Veloso para o jornal Público, 2014).  

Ensaio.

5 - Quero Ser Justo (Caetano Veloso)

Disse que vinha e veio
Lá do Norte
O mar nos olhos
Era noite sem vento
E eu nem cri na minha sorte
Houve curiosidade e um calmo susto
Alguma palidez por trás do ouro
Do seu rosto
Quero ser justo:
Mesmo que não pudéssemos manter
A lua cheia acesa (ou não ainda)
Nem no seu nem no meu coração
Eu vi você:
Uma das coisas mais lindas da natureza
E da civilização


6 - Um Comunista (Caetano Veloso)

Um mulato baiano
Muito alto e mulato
Filho de um italiano
E de uma preta haussá
Foi aprendendo a ler
Olhando mundo à volta
E prestando atenção
No que não estava à vista:
Assim nasce um comunista.
Um mulato baiano
Que morreu em São Paulo
Baleado por homens
Do poder militar
Nas feições que ganhou
Em solo americano
A dita guerra fria
Roma, França e Bahia.

Os comunistas guardavam o sonho
Os comunistas, os comunistas.

O mulato baiano
O minimanual
Do guerrilheiro urbano
Que foi preso por Vargas
Depois por Magalhães
Por fim, pelos milicos
Sempre foi perseguido
Nas minúcias das pistas
Como são os comunistas.
Não que os seus inimigos
Estivessem lutando
Contra as nações-terror
Que o comunismo urdia
Mas por vãos interesses
De poder e dinheiro
Quase sempre por menos
Quase nunca por mais.

Os comunistas guardavam o sonho
Os comunistas, os comunistas.

O baiano morreu
Eu estava no exílio
E mandei um recado
Que eu que tinha morrido
E que ele estava vivo
Mas ninguém entendia.
Vida sem utopia
Não entendo que exista:
Assim fala um comunista.
Porém a raça humana
Segue trágica sempre
Indecodificável
Tédio, horror, maravilha.
Ó mulato baiano
O samba o reverencia
Muito embora não creia
Em violência e guerrilha
(Tédio, horror e maravilha).

Calçadões encardidos
Multidões apodrecem
Há um abismo entre homens
E homens, o horror!
Quem e como fará
Com que a terra se acenda
E desate seus nós
Discutindo-se Clara
Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Cadija, Sara.
O mulato baiano
Já não obedecia
As ordens de interesse
Que vinham de Moscou
Era luta romântica
Era luz e era treva
Feita de maravilha
De tédio e de horror

Os comunistas guardavam o sonho
Os comunistas, os comunistas.

Comentário do autor"É a música mais longa do disco. Eu gosto desse refrão porque ele parece um três sobre uma base de quatro tempos. Parece canção francesa sobre política, tem muito da tradicional canção de protesto, essa longura, esse tom narrativo e explicativo, embora seja mais complexa do que isso. E eu gosto que ela coincida com a chegada do livro, da biografia [escrita pelo jornalista Mário Magalhães], com o filme da Isa [Grinspum] e com a canção dos Racionais, que foi feita para o filme da Isa. Eu não fiz por causa de nada disso, eu fiz também. E ela contrasta muito com a música dos Racionais. E é interessante, porque ela é bem a canção de protesto feita por artistas da classe média, tal como Chico Buarque comparou quando disse que a canção está desaparecendo e que o rap é uma manifestação... Aliás, o Chico e o José Ramos Tinhorão coincidiram em dizer que o rap era a verdadeira canção de protesto, porque era dita por eles mesmos [as classes baixas], como dizia o Cacá Diegues a respeito dos filmes feitos pelos favelados sobre a favela. Diferentemente de uma referência aos desfavorecidos por parte de um artista da classe média, como era o caso na nossa geração, minha e de Chico. Então, nesse caso, eu volto àquela força da canção de protesto de classe média, mas é uma canção um pouco mais analítica, e também apresente umas imagens que balançam a cabeça do ouvinte.

O Jorge Amado sonhou sempre que se fizesse um monumento a Marighella em Salvador. Ele morreu com esse sonho. E é curioso, porque ele apoiava o Antonio Carlos Magalhães no fim da vida, e no entanto ele queria um monumento a Marighella em Salvador. Ele tinha muito orgulho do Marighella, que naturalmente conheceu pessoalmente, porque eram do mesmo partido (Partido Comunista Brasileiro). Só que o Marighella, no final, deixou a linha central do partido, como todo mundo sabe, e deixou de obedecer às ordens de Moscou. Aquilo, naquele ambiente romântico do tropicalismo, da contracultura, era muito atraente, era o que eu mais admirava em política. Eu gostava de marighella, e gosto até hoje. Nunca vi Marighella.

Eu tinha uma colega, Maria de Lourdes Mello Vellame, que foi guerrilheira junto com ele, era do Partido Comunista, saiu com ele pra luta armada, foi presa, muito torturada, causou uma impressão forte no Fleury, que era o torturador. Que ele, numa entrevista que eu tenho guardada, tenho uma fotografia das páginas na internet, ele se refere a ela como caso mais impressionante de resistência à tortura. Ela era minha amiga, era minha colega na Faculdade de Filosofia. Ela me pediu na época pra prestar apoio logístico à guerrilha de Marighella, e eu fiquei mais ou menos inclinado a talvez fazer isso, se me possível, se soubesse como, porque eu o admirava, mas eu temia, possivelmente não chegaria a fazer. Mas não sei, porque eu fui preso poucos meses depois, não por isso, porque eles me prenderam sem saber disso. Só se sabe disso hoje, que na altura só sabíamos disso a Lourdinha e eu. Só sabíamos os dois, a Dedé, minha mulher, teve uma altura em que ficou sabendo.

Nós estávamos em Londres, não fazia muito tempo que tínhamos chegado, ainda no primeiro ano, e chegou uma revista Manchete, ou Fatos e Fotos, uma revista da editora Bloch, foi um fotógrafo para nos fotografar no exílio. Ele nos fotografou, eu e Gil, em Londres, fez uma entrevista. A imprensa brasileira era muito limitada pela censura, não podia-se dizer que a gente estava exilado, apenas Caetano e Gil estão em Londres, etc. E tal. E a capa dessa revista era uma fotografia, eu e Gil, sorrindo, na frente do Big Ben, né, na ponte de Waterloo. E num boxe, assim, no alto da página, a foto de Mariguella morto, que era a notícia de Marighella morto. Então mandei um texto para o Pasquim, dizendo "A revista chegou e nós estamos na capa". E eu falava de minha tristeza e de Gil, dizendo assim: "nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós". Nem uma só pessoa das que viviam no Brasil e eram minhas amigas e que se correspondiam comigo, nem aquelas que conheciam essas, nem depois quando voltei e mencionei, na cabeça de nenhuma pessoa passou. Eles morando aqui e tal não sentiram o impacto que era ter Gil e eu aparecendo na capa da revista depois de exilados, sorrindo, e o Mariguella morto. O texto todo era sobre isso, sobre a capa da revista: "na capa duma revista...". Você vê que, quando a gente está fora, a gente não pode imaginar como é a cabeça das pessoas que estão dentro, porque ninguém sacou. Eu recebi várias cartas de gente dizendo: você está deprimido porque está aí, não sei quê, e de fato estava, mas tinha escrito isso porque eu tinha visto uma capa em que eu e Gil estávamos sorrindo no exílio e o Marighella morto a tiros nas ruas de São Paulo, e eu gostava de Mariguella, então achei aquilo um negócio meio terrível, assim. Escrevi e ninguém entendeu. É uma parte totalmente pessoal que aparece na letra da canção, que se refere a esse fato." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2012).


7 - Funk Melódico (Caetano Veloso)

Não aprendi nada com aquela sentimental canção
Nada pra alertar meu coração
Mulher indigesta, você só merece mesmo o céu
Como está no samba de Noel

Você produz raiva, confusão, tristeza e dor
Prova que o ciúme é só o estrume do amor

Vá numa sessão de descarrego ou num médico
Meu amor tem preço módico
Não tenho um tijolo nem um paralelepípedo
Só resta o funk melódico

(Não abrace abraçace essa letra-tijolo
Esse papo de céu
Foi só pelo Noel.
Nem com cheiro de flor
Bateria em você.
Não sou bravo nem forte
Nem mesmo do Norte
Sem canto de morte
No meu HD.
O paralelepípedo
É um jeito de verso
Que quer dizer raiva
E mais raiva e mais raiva
Raiva e desprezo e terror,
Desamor.
O tijolo é gritar:
Você me exasperou
Que você me exasperou
Você me exasperou
Você me exasperou
Você me exasperou)

Comentário do autor: "Gosto muito [de funk]. Eu ouço rádio, eu ouço FM O Dia no carro, de tarde toca muito funk, e às vezes na internet, mas eu ouço mais no rádio mesmo. Eu gosto de ouvir música no rádio porque você não sabe o que vai tocar, não é você que escolhe, vem por acaso. E eu gosto do funk desde que apareceu. Principalmente desde que começou a ter essa batida que vem muito de maculelê: "tum da da tum tum da". Isso é uma beleza e tem o uso curioso e inventivo de sons eletrônicos. Tem umas letras obscenas que, às vezes, não é tão legal mas é legal. É um obsceno com uma beleza na malícia. O fenômeno em geral eu acho muito forte, muito criativo. É um negócio que veio das áreas de favela e das áreas de periferia das cidades grandes brasileiras... o Rio de Janeiro, principalmente. Era o funk carioca e hoje cresceu em São Paulo. No princípio parecia que ia ser só imitação da música americana e depois foi começando a ter esse negocinho "tum da da tum tum da" que começou com uma tumbadorazinha. Depois isso tomou conta e agora em São Paulo dão uns vazios... tem coisas muito lindas. Eu fiz funk brincando, uma referência ao funk. Funk Melódico é o nome da faixa. Eu mesmo fiz o "tum da da tum tum da", gravei em casa no Garageband e depois Kassin usou na mixagem da final da faixa." (Caetano Veloso para o Popline, 2018). 


8 - Vinco (Caetano Veloso)

Eu que me posto exato entre teus lados
Determino teu centro, sou teu vinco
Finco o estandarte em teu terreno tenro
Em teu terreno tenro em teu terreno

Tu de par em par e essa passarela
Da veia de tua fronte até o vazio
Entre teus pés, teus pés outrora doces
Hoje amargados de asperezas-passos

Ásperos passos, pássaros sem fio
Que obrigas-te a evocar em danças-ansas
Danças que danças e lanças pra longe
De mim de mim de mim de mim de mim

Mesmo assim fundo o império no teu meio
China, gaucha pampeira, prenda minha
Palavras castelhanas, lhanas lhanas
As terras tenras, pés de terra e fluidos

Terra que sente o próprio gosto, terra
Vermelha e rosa de pétala íntima
Mas terra onde eu hasteio uma nação
De desfazer-me eu meu, eu eu, eu, eu


9 - Quando o Galo Cantou (Caetano Veloso)

Quando o galo cantou
Eu ainda estava agarrado
Ao seu pé e à sua mão
Uma unha na nuca
Você já maluca de tanta alegria
Do corpo, da alma e do espírito são
Eu pensava que nós
Não nos desgrudaríamos mais
O que fiz pra merecer essa paz
Que o sexo traz?
O relógio parou
Mas o sol penetrou
Entre os pelos brasis
Que definem sua perna
E em nossa vida eterna
Você se consterna
E diz: não,
Não se pode, ninguém pode ser tão feliz
Eu queria parar nesse instante
De nunca parar
Nós instituímos esse lugar
Nada virá
Deixa esse ponto brilhar
No atlântico sul
Todo azul
Deixa essa cântico
Entrar no sol no céu nu
Deixa o pagode romântico soar
Deixa o tempo seguir
Mas quedemos aqui
Deixa o galo cantar

Comentário do autor: "O funk me interessa mais como construção estética, é algo muito sofisticado. Mas gosto do pagode romântico por aquela brincadeira rítmica, uma corridinha na letra, que faço um pouquinho na canção, mas diferente do que os pagodeiros fazem. Não queria uma imitação. É mais uma homenagem, até mais no dizer a expressão "pagode romântico" na letra. Mas o principal é que Tom, meu filho, adora os dois gêneros, como bom jogador de futebol." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2012). 


10 - Parabéns (Caetano Veloso, Mauro Lima)

Tudo mega bom, giga bom, tera bom
Uma alegria excelsa
Pra você
No paraíso astral que começa
Hehe

Comentário de Caetano: "Aquele foi corta e cola, um e-mail inteiro, desde o título, o "subject" dos e-mails. E o texto era o texto do e-mail, até o "hehe" tem, foi o e-mail do [diretor] Mauro Lima para o meu aniversário de dois anos atrás." (Caetano Veloso para a Folha de S. Paulo, 2012).


11 - Gayana (Rogério Duarte)

O amor que vive em mim
Vou agora revelar
Este amor que não tem fim
Já não posso em mim guardar
Eu amo muito você
Eu amo muito você

Eu não vou mais me calar
Eu não vou mais esconder
Este segredo guardado
Bem lá no fundo do peito
Eu amo muito você
Eu amo muito você

Não adianta fugir
Não adianta fingir
Já me cansei de sofrer
Por não poder lhe dizer
Eu amo muito você
Eu amo muito você

Nem me interessa saber
Se alguém vai condenar
O meu amor é maior
Do que a terra e o mar
Maior que o céu e as estrelas
Maior que tudo o que há

E se um dia eu me for
Para onde Deus me levar
Mesmo assim meu amor
Com você vai ficar

Comentário de Caetano: "Rogério me enviou a canção por e-mail. Era um vídeo, e a figura dele, de barba longa, com um tapa-olho, cantando e tocando violão, apaixonou os músicos da banda e os técnicos do estúdio, além de Moreno, o produtor, que é afilhado de Rogério. É uma canção única. Muito direta e ao mesmo tempo misteriosa. Rogério é sempre uma referência importante para mim. Tem sido assim ao longo de todos esses anos. Antes ele só tocava violão clássico. Agora, de repente, começou a compor canções. Essa me encantou." (Caetano Veloso para o jornal Público, 2014).

"É uma canção de Rogério, letra e música. Ele me mandou por e-mail, num vídeo divino, em que ele aparece cantando e tocando violão com aquela barba longa e aquele tapa-olho. Os caras da banda ficaram maravilhados. Eu quis logo gravar. Aquela frase direta: "Eu amo muito você". E aqueles ecos da poesia hindu. Rogério é uma das inteligências mais impressionantes que já encontrei. Ele tem um jeito de deixar as palavras se formarem dentro dele que faz de qualquer argumento que ele apresente algo relevante e pertinente. Tudo parece vivido. E com intensidade. Quando ele me mandou a música, o título que ele próprio tinha escolhido era "Hino Gay", porque falava de um amor que não era dito até aquele momento e porque ele queria homenagear algumas figuras da história do pensamento que foram homossexuais. Depois, observando que Gayana é um nome hoje usual na Índia para meninas, e lembrando o sentido de "Gai" em sânscrito, ele apareceu com esse título que, na verdade, é muito mais bonito. E não interfere na canção, como o outro faria. Eu adoro saber que essa música era ouvida na novela [Joia rara] em que Caio Blat fez um monge budista. Fico vendo milhões de brasileiros ouvindo uma canção de Rogério em meio a imagens ligadas à Índia. Parece fazer muito sentido para mim." (Caetano Veloso para a Revista Muito - A Tarde, 2014).



Fotos: Fernando Young.

Ficha Técnica

Uma produção Universal Music dirigida por Moreno Veloso e Pedro Sá

Equipe Universal Music
Direção artística: Paul Ralphes
Supervisão de A&R: Miguel Afonso
Coordenação de A&R: Lucas Abude e Patrícia Aidas

Coordenação da produção: Natasha Enterprises LTDA.
Coordenação executiva: Paula Lavigne
Produção executiva: João Franklin
Assistente de produção: Miguel Lavigne

Gravado e mixado no Monoaural (RJ) por Daniel Carvalho e Moreno Veloso
Assistentes: Leo Moreira, Pedro Tambellini e Felipe Fernandes
Responsável técnico: Tilico

Roadies: Pimpa Cruz e Gabriel Gomes

Masterizado no Magic Master (RJ) por Ricardo Garcia

Músicos convidados:
Thalma de Freitas, Nina Becker, Lan Lan e Alinne Moraes:
Coro em Parabéns.
Moreno Veloso:
Baixo e pratos em Gayana.

Arranjos:
Caetano Veloso, Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado

Capa
Direção de arte e fotografia: Fernando Young e Quinta-feira
Styling: Felipe Veloso
Revisão de textos: Luiz Augusto (Revertexto)
Coordenação gráfica: Geysa Adnet



















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