À flor do Chico (27/06/2010)
Atravessando a ponte de volta a Juazeiro, vimos a lua refletida nas milhões de marolas que fazem o Rio São Francisco parecer que corre no sentido contrário àquele em que de fato o faz. Meus olhos estavam ainda molhados, e minha voz oscilava por causa do choro que não pude evitar quando cantei "O ciúme". Enquanto Giovana falava com o motorista petrolinense que nos conduziu aqui nestes dois dias - e ele aumentava o som do rádio porque percebera que estavam tocando uma gravação de "Imagine", de John Lennon, embora não fosse Lennon quem estava cantando, e sim alguém preto ou que cantava como preto -, eu pensava: que lugar!
Havíamos passeado um pouco por Juazeiro entre a passagem de som (que terminou às 21h) e o show (que começaria à meia-noite). Ao longo da orla, vários casais de namorados tinham as pernas entrelaçadas enquanto se beijavam ou conversavam (há uma mureta onde se pode sentar e amparar-se em canos de metal pintados de tinta a óleo) e, a intervalos irregulares, havia aglomerações em torno de alguma música: um canto com seu violão elétrico num restaurante, um auto-falante espalhando som de forró numa pequena quadra de esportes ao ar livre, outro impondo os compassos de bolero apressado do arrocha. Poucas pessoas dançavam, mas a impressão de bem-estar que emanava de todos os indivíduos e grupos era indiscutível - e inacreditável.
Pedi a Bosco, o motorista pernambucano, que percorrêssemos de novo a orla, mas dessa vez tomando-a bem mais para baixo (rio abaixo), para ver se eu reconhecia a casa onde morava dona Patu, a mãe de João Gilberto, que conheci quando estive aqui faz 34 anos. Com isso chegamos aos confins da cidade: uma parte humilde e digna que, segundo dizia Bosco, é conhecida como Aldeia dos Pescadores. Ele queria que víssemos o Nêgo d'Água, uma estátua - na verdade um boneco gigante - que se ergue para fora do rio. Estava escuro demais para que o víssemos satisfatoriamente. Mas as crianças que estavam andando pela rua eram de uma beleza incomum. Comentei com Bosco e Giovana que eu reencontrava aqui uma configuração racial que era exatamente a do Brasil - ao menos a do Recôncavo da Bahia - da minha meninice: pessoas de todos os tons de pele, sendo que um pardo escuro predomina, e dentre as quais se podem notar negros retintos e brancos descorados. Nenhum sinal da autoconsciência racial, do narcisismo estatístico que vivemos hoje em cidades como o Rio, Salvador, São Luís ou Recife. Era como se nesse recanto do Velho Chico, onde uma cidade baiana e outra pernambucana se unem e se separam, um aspecto angelical do Brasil tivesse sido preservado. Há algo de anacrônico, quase obsceno, na ingênua representação de democracia racial que Juazeiro e Petrolina oferecem. Bem, ao menos Juazeiro. Ou melhor: ao menos esse recanto dos pescadores de Juazeiro. Um pequeno bando de meninas numa idade difícil de precisar, já que a que tinha ares de líder já exibia seios crescidos - apesar de mesmo esta parecer uma criança em tudo o mais -, se aproximou do nosso carro. Todas eram cor de tijolo, e a líder, dando mostras de ter me reconhecido, praticamente barrou a nossa passagem.
- Ah, dê um autógrafo para minha mãe!
- Quantos anos você tem?
- Onze. Dê um autógrafo para minha mãe: ela é louca por você.
Parece que o nosso grupo dentro do carro - Bosco, Giovana e eu - hesitou em parar, já que restava pouco tempo para atravessarmos de novo a ponte e voltar ao local do show. Um grupo cada vez maior de pessoas de todas as idades, notando o bando de meninas em torno do carro e ouvindo meu nome gritado por algumas delas, se aglomerava. Essa menina era muito bonita. Havia outra também muito bonita ao lado dela - e todo o grupo das menores que as seguia era bonito -, mas a líder era extraordinariamente bonita.
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Acabo de achar aqui no meu HD o esboço de texto acima transcrito. Lembro que eu queria chegar a expor um pensamento interessante que me ocorreu então. E suponho que esse pensamento fosse a respeito de raça. Talvez Bosco tenha me contado o que ou quem era o Nêgo do Rio. Mas talvez fosse mais. A sensação de estar numa espécie de reserva da sociedade colorblind em que cresci era comovente e algo inquietante. Por cima disso, a sensação de sacralidade do lugar (Juazeiro, terra de João Gilberto, Galvão, dos Novos Baianos, e Ivete Sangalo), o mistério do amor, a assombrosa proximidade do que absolutamente não há.
Os comentários apressados que publiquei aqui faz uns domingos sobre o livro de Liv Sovik me fizeram reler este antigo pedaço de texto à luz do que ela sugere: que eu tenho saudade do Brasil não racialista, assim como Joaquim Nabuco tinha saudade do escravo. É um paralelo que soa pertinente. Preciso temperá-lo, no entanto, com a informação de que as cenas de que falo em "Haiti" foram vistas do alto de um palanque do Olodum, junto a membros do bloco, quase todos negros. Não consigo entrar no jogo que desqualifica o que Nabuco diz por ele falar "do lugar do senhor". É como se alguém estivesse usando palavra "senhor" como equivalente a "mal" e a palavra "escravo" como equivalente a "bem". Seja como for, não sou só eu a sentir saudade: nesse tempo - quando o tom racialista já predominava sobre o elogio da mestiçagem (fato de que os blocos afro de Salvador eram expressão notória) - o Olodum se anunciava assim pelas caixas de som: "OLODUM, A MAIOR DEMOCRACIA RACIAL DO MUNDO."
Caetano Veloso.
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