Aborto e casamento gay (17/10/2010)
Será mesmo impensável um candidato que não superdramatize os tópicos aborto e casamento gay? Marina, notoriamente religiosa, não se embaraçou com as questões que abalam padres e pastores. Já Serra e Dilma querem parecer mais religiosos do que ela. Por que nenhum dos dois imaginou uma atitude decente? Agindo de modo sensato, um deles exporia o ridículo do outro. Não é preciso negar a religiosidade para isso. Toda uma parte dos eleitores (e da cabeça de todos os eleitores) mostrou-se atraída justamente pela honestidade de Marinam sua firme franqueza. Será que nenhum dos outros dois imaginou que poderia dirigir-se a esse espaço mensal? Declaração de ateísmo não elege ninguém. Essa é uma regra aparentemente inabalável. Todos se lembram de Fernando Henrique dizendo-se materialista e perdendo para Jânio Quadros uma eleição ganha. Mas esse mesmo descrente recebeu votações espetaculares para eleger-se e reeleger-se presidente da República. Há algo aí além da economia: há uma área no eleitorado (e em cada eleitor) que valoriza a veracidade da pessoa e a civilidade da figura pública. O Brasil se move. Ler os votos dados a Marina como representando temores pios é raso demais, é injusto com a lição de maturidade que os brasileiros acabam de dar.
Não apenas muitos dos que votaram em Marina não compartilham com ela convicções religiosas como muitos dos que o fazem são capazes de vislumbrar nos atos de um ateu as linhas tortas pelas quais Deus é famoso por escrever certo. A própria Marina diria, como disse a mística francesa Simone Weil, que muitos ateus estão mais perto de Deus do que certos crentes. A mim mesmo, que muitas vezes gosto de me dizer ateu, me dizem algumas boas almas que eu creio em Deus sem o saber. Fico lisonjeado porque sei que é um modo de dizerem que gostam de mim. Mas também fico um tanto irritado com a ligação automática de qualquer virtude a ideias religiosas, à existência de Deus e, finalmente, à Inquisição, aos apedrejamentos e às Cruzadas.
Marina disse, desde o início da campanha, que desejava reafirmar o Brasil que emergiu dos anos FH/Lula. Ela se pôs, antes de tudo, como progressista e moderna. É uma pobreza que os candidatos dos partidos que ela citou mostrem-se agora tão aquém de suas expectativas. Ela deve manter neutralidade nesse segundo turno. Mas o que ela diz, sem fazer escolhas, é que qualquer dos dois pode brilhar, caso chegue à presidência. Basta que estejam mais próximos do histórico dos respectivos partidos do que da baboseira que a má leitura das pesquisas eleitorais inspira.
Fui fã do PT logo que ele foi fundado. Cheguei a usar uma estrelinha vermelha por umas semanas. Não que eu sequer cogitasse filiar-me ao partido. Mas eu cria (e orgulho-me de ver que não estava errado) que ele significaria um avanço na nossa História política. Ferreira Gullar conta que teve de se opor aos seus companheiros comunistas porque estes achavam que Lula daria alegrias à CIA. Eu gostei de Lula justamente porque, apesar do sotaque marxista dos apoios acadêmicos, eu via que ele não representava o programa do PC soviético para o mundo. Eu era brizolista. Por intuição e afeto. Lula vinha do operariado bem pago e organizado, efeito da criação da indústria automobilística por JK. Ia ser coisa nova, mas (ainda) não se conectava com a parte mais funda do país como Brizola podia.
Votei em Lula contra Collor. Era sabido que Collor preferia ir para o segundo turno com Lula: como eu e muita gente, ele sentia que enfrentar Brizola era mexer num formigueiro gigante, enquanto Lula era um hype paulista. Todos os vícios da esquerda de sempre foram se unindo em torno do torneiro mecânico e eu fiquei frio. Votei em Fernando Henrique. Mas não me seria mais suportável imaginar o Brasil sem o PT. Fernando Henrique preparou o terreno para um Lula que eu temi que nunca surgisse. O governo FH foi educação política que prefaciou a vinda desse Lula pragmático. Não falo apenas do tripé da economia. FH foi também um exercício de respeito próprio por que passou o povo brasileiro.
Já contei que chorei ao votar em Lula em 2002. Havia muitos fatores para isso, mas o principal era saber que dávamos um passo de grande consequência. Se a chegada de Lula lá não tivesse sido precedida pela passagem de FH, ela não teria o significado que tem. É o que Marina diz. É o que a votação que ela teve confirma. Dói ver Dilma na foto ao lado de crentes que não creem que ela creia, nem sequer desejam que ela creia: apenas arrancam-lhe um compromisso de que não se fará casamento gay nem legalização do aborto. Tudo parte nobre do projeto do PT. Apesar do desespero eleitoral da militância, há muitos petistas rejeitando esses acordos prévios. Dói ver Serra fingindo que é Chalita. Mas essa visão não provoca pena, como no caso de Dilma, e sim riso de escárnio. O que Marina significa é a reafirmação dos avanços do PT e de FH. Mesmo o crescimento dos cultos pentecostais é parte dessa novidade. Sejam reação à força laica que cresce desde o iluminismo, sejam forte prova das lacunas deste, esses cultos são parte de nosso zeitgeist. Alguém leu o texto do Bispo Macedo sobre os homossexuais na "Folha Universal"? Eu li. Fez muitos crentes protestarem contra a abertura ali exigida. Por que Serra e Dilma têm que se agarrar aos aspectos mais primários da marola religiosa? Ou ignoramos a tsunami que eles, sábios, veem?
Caetano Veloso.
© Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações.