Alegria (17/04/2011)

 O fato de Carlos Saldanha ser carioca contribuiu decisivamente para que, em "Rio", o Rio fosse abordado sempre de ângulos reveladores da experiência real de se estar na cidade. Meu filho de 14 anos comentou, ao sair do cinema, que "tudo aparece mais bonito do que na verdade é". Entendi que ele queria dizer que percebe o lado de publicidade turística ostensiva que o desenho exibe. Já uma amiga me disse que, ao contrário, o Rio que ela vê estando aqui (ela não é brasileira) é sempre mais bonito do que a cidade estilizada no filme. Outra amiga (esta, paulistana abaianada) simplesmente detestou o filme, pela pobreza da música, pelo caricato da simpatia das pessoas, pelo artificioso das cores. Eu adorei. Claro que "Rio", em parte, é como um chapéu de Carmen Miranda, ou um desenho de Disney na época da política de boa vizinhança, ou ainda os lugares-comuns sobre a alegria brasileira que às vezes aparece com ar sinistro em festivais de música na Europa. Mas a combinação do olho informado e íntimo de Saldanha com as diferenças entre nosso tempo e os tempos de Zé Carioca faz os clichês de "Rio" parecerem mais com a "História secreta do Brasil", de Cláudia Bernhardt de Souza Pacheco, do que com "Alô, amigos". Este foi feito em 1942, o ano em que eu nasci - o que me deixa com uma gama de estágios históricos para comparar muito maior do que pode ter meu filho de 14 anos. Não se pense que prefiro "História secreta do Brasil" a chapéus de Carmen ou filmes de Disney. Apenas concluo que a beleza da cidade no filme de 2011 está mais para Stefan Zweig do que para o Pato Donald.

As "três raças tristes" de Paulo Prado terminaram gerando alegrias obrigatórias, do carnaval da Bahia ao festival de Montreux. É inevitável o efeito "Orfeu negro", que, no caso de "A noviça rebelde", não poupou nem austríacos e alemães: ninguém gosta de ver sua vida adulterada para iludir incautos. Oswald de Andrade (que criou tantas fórmulas úteis para pensarmos sobre nós mesmos) cunhou a expressão "macumba para turista". Tudo isso me pareceu descabido diante de "Rio". A propaganda da cidade que sediará as Olimpíadas e a Copa do Mundo (com o país todo ansioso por conta do estado dos aeroportos - para dizer o mínimo), a reafirmação do país dos sonhos tolos, as cores de glacê de bolo de debutante - nada disso me abalou. Será que tudo se deve apenas à minha velha (velha mesmo) paixão pelo 3D? Há mais.

Há as visões do Sambódromo, impressionantemente fiéis ao que a vivência íntima ensinou. Sobretudo há o Sambódromo visto de Santa Teresa - ou de uma das favelas de Santa Teresa - em reprodução exata de minha lembrança de um carnaval em que saí, não do Morro dos Prazeres, mas da mansão dos Monteiro de Carvalho. É também a exata reprodução de uma epifania vivida pelo meu filho que viu o filme comigo. Ele costumava contar que esse tinha sido o momento mais feliz de sua vida (ele dizia isso aos 10, 12 anos, referindo-se ao que ocorrera quando ele tinha 9): para evitar o trânsito, o motorista, criado nos Prazeres, decidira chegar à cidade por Santa Teresa: A passagem pela favela foi cheia de suspense e a luz da pista de desfile das escolas de samba surgiu numa lombada de pico. Ele conta que a felicidade não veio dessa visão: ela já estava profundamente feliz - a passagem pela favela, revelação de algo grande e importante ainda desconhecido, produzira a alegria grave e selvagem de ver desvelar-se o que parecia fadado a ficar-lhe para sempre vedado -, o Sambódromo superiluminado apenas coroou uma sequência de percepções cruciais para o meu menino. Pois perguntei-lhe hoje se ele não tinha se lembrado disso ao ver o filme - e ele me disse que sim, mas não demonstrou que o reconhecimento o tivesse comovido. Comentei que, naturalmente, esse não era mais o momento mais feliz de sua vida, que ele já deve ter tido vivências mais intensas. E ele balançou a cabeça, como dizendo "é... mas mais ou menos". Tanto quanto com o próprio filme, eu estava mais emocionado com a lembrança dessa sua lembrança do que ele. Conto isso para dar a ideia de que é assim de fundo o efeito que o Rio de Saldanha e da Hollywood do século XXI causou em mim. O tipo de mestiço que é o garoto da favela; as visões das calçadas portuguesas; o movimento de quadril do macaco funky que leva um relógio com o mostrador sobre o púbis; as circulações em torno dos arcos da Lapa. É assim de fundo e mais ainda de amplo. Vejo o Quinto Império de Vieira se insinuando, os meus mais recônditos delírios - que me acompanham desde a adolescência -, o mundo pós-USA.

Esse livro sobre a "História secreta" já me tinha sido dado de presente e eu o tinha deixado de lado: o ufanismo místico apresentado sem sofisticação acadêmica tinha-se-me afigurado uma ridicularização involuntária das intuições mais vulneráveis de minha puberdade. Pois olhando-o agora eu vi mais do que quereria. A capa, com letras góticas e mapa do Brasil em estranha perspectiva, me parecia o cúmulo do mau gosto visual. Agora - e isso se deve a "Rio" - dizia outra coisa. E o principal era que fosse São Paulo o ponto de luz intensa, o Sambódromo surgindo além da favela da epifania do meu filho, o centro do Quinto Império futuro. São Paulo, finalmente mais brasileiro do que todo o Brasil, por sua inacreditável concentração de energia, é algo mais bonito na capa desse livro absurdo do que o Rio em "Rio". E pelas mesmas razões.

Caetano Veloso. 

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