Alegria, alegria (08/08/2010)

Helsinque. Aqui anoitece à meia-noite e amanhece às três e meia. No verão. No inverno quase não tem dia. O pôr do sol na Bahia dura poucos minutos. Li no YahooNews que a Finlândia foi considerada a segunda nação mais feliz do mundo. Foi uma pesquisa cujo critério é engraçado. Eles fazem duas perguntas: "Você está satisfeito com a sua vida?" e "Como foi seu dia ontem?". Claro que países como o Brasil ou os Estados Unidos não estão no páreo. Mas ser rico importa muito. Sobretudo quando se contam as respostas à primeira pergunta. Mesmo nos países campeões, as classes mais abastadas tendem a dizer "sim" à pergunta sobre estar satisfeito com a vida que construíram. Os mais pobres só sobem pela alta frequência de boas lembranças do passado imediato. O país mais feliz das Américas, nessa enquete, é a Costa Rica. Em países assim, sobe muito a porcentagem de aprovação do dia de ontem em relação à satisfação com o rumo geral da vida de cada um. No país africano que ficou em primeiro lugar entre seus pares, essa proporção se mostra ainda mais acentuada. Parece que os ricos estão mais contentes com o que conseguiram assegurar e os pobres com a noite passada.

Nunca pensei no Brasil como um país feliz. Quando eu era menino, era comum dizer-se que éramos um povo triste. Ouvi repetidas vezes esse lugar-comum antiquado em casa e na escola. Talvez tudo fosse eco das "três raças tristes" de Paulo Prado. Li muito anos depois que o livro dele fez imenso sucesso quando de sua publicação. A geração de meu pai deve ter sido grandemente influenciada por isso. E a própria ideia de Prado não era peculiaridade sua: a expressão "três raças tristes" nos soa tão apenas bonita como misteriosamente adequada. Toda a reputação de alegria de que o Brasil desfruta hoje parece com a alegria da axé music, tão insistentemente lamentada por centenas de brasileiros (sobretudo baianos) que têm voz pública. Lembro uma entrevista de meu amigo Emanuel Araújo à revista "Muito", do "A Tarde" de Salvador. Quão triste o fazem as alegrias obrigatórias do carnaval baiano! O próprio Antônio Risério, autor de alguns clássicos protoaxé, contorce-se de mal estar diante das turbas sob a ditadura da alegria. Viajando pelo mundo, perceber que há uma expectativa de demonstração da alegria de nossa parte é às vezes exasperante. Não tanto por não gostarmos de alegria ou por crermos que a tristeza é mais chique, mas pelo horror à falsidade. Não podemos alardear o que apenas mal conseguimos.

Kaarina, a finlandesa da produção daqui, me disse que riu muito ao ler que a Finlândia era o segundo país mais feliz do mundo: "É o primeiro em taxa de suicídio e também em número de alcoólatras: talvez a soma dessas duas características dê um povo feliz." A ironia não parecia tão amarga na voz dela. À noite, no jantar depois do show, ela levantou-se e fez um discurso carinhoso. Dizia nunca ter visto gente tão doce e alegre. Meu filho Zeca fez amigos finlandeses em um dia - e me chamou para encontrá-los numa esticada pós-jantar. Fomos a um bar cheio de pessoas bonitas, 99% louras. Ahmed, um iraquiano que trabalha no balcão, veio dizer que quer me mandar umas músicas do Oriente Médio que ele acha que eu devo ouvir. Eu estava cansado mas Zeca queria esticar ainda mais, num clube de música eletrônica chamado Butterfly. Muita gente loura mas também muitos com cara de Ahmed e muitos pretos. Havia grupos de pretos em que as moças lembravam baile funk carioca e os moços, hip-hop. Havia casais de louro com preta e de preto com loura. Zeca observou: tem muito mais preto do que nos clubes da Zona Sul do Rio. E corrigiu-se: lá não tem preto. Lembrei-o dos comentários que vimos fazendo há anos sobre a quase total ausência de negros nas escolas particulares onde estudou. Mas disse também que em lugares como a Estudantina (a gafieira da Praça Tiradentes) há uma situação racial que não tem similar em outra parte: mulatos de todas as tonalidades, pretos, brancos, sem que se consiga sequer imaginar uma contagem para definir hegemonia. É a imagem que faço do nosso povo quando penso em sua configuração: foi assim que o conheci. 

De fato, sinto como se eu tivesse atravessado uma tripla barreira: do tempo da minha infância (quando as escolas públicas eram as melhores, e pretos, mestiços e brancos estavam sempre misturados); da minha classe de origem (baixa classe média); e da região onde nasci (o Recôncavo Baiano, onde a maioria é preta e mulata, com também brancos de olhos claros que não sentimos como diferentes). Dentro da Butterfly, sou mais o racialismo de Celso Athayde: cotas ou violência. O Brasil deveria mostrar-se triste por estar produzindo mais separação racial do que teve há umas quatro décadas. E não são as cotas que criam artificialmente esse abismo: é a natural concentração de não negros em áreas ditas nobres e em escolas ditas boas.

Os idiotas que dizem que há um "apartheid" nos blocos de carnaval da Bahia, infelizmente, não são meros imbecis: são também porta-vozes de tendências ocultas na sociedade brasileira. Seus delírios são sintomas de outras doenças que não a exclusivamente deles. A alegria compulsória da axé music e da imagem dos brasileiros no mundo parece asquerosa porque não estamos acertando a resolver os problemas dolorosos de nossa vida. Hoje não dá para falar da perspectiva da vida Estudantina. 

Caetano Veloso.

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