América (21/11/2010)

As calçadas de Nova Iorque (não acho bonito escrever Nova York, o "JB" sempre punha Nova Iorque, como eu: Nova York é como se a gente escrevesse Nova England em vez de New England ou Nova Inglaterra) não são de se lamber). Sujas e sempre cheias de gente apressada e surpreendentemente simpática. Fui até o escritório da Nonesuch encontrar Bob Hurwitz e de lá saímos para ver "Biutiful", o filme de Iñárritu, numa sala privada de projeção, já que o filme, espanhol, não foi lançado nos States. Os atendentes do prédio onde fica a Nonesuch, na Sexta Avenida (que é a Avenida das Américas, mas, ao contrário da Madison ou da Park, nunca é referida pelo nome pomposo e sim pela numeração, que é o nome de todas as outras avenidas sem nome), são incrivelmente cordatos e relaxados. Os mecanismos de segurança são muitos, mas o pessoal é quente e quase sempre alegre.

Chegar a New York vindo de Los Angeles é experimentar um contraste violento. Woody Allen faz piadas ótimas em "Annie Hall" sobre isso. Há o comentário de que a única coisa boa em LA é o carro poder avançar o sinal vermelho se for dobrar à direita. Los Angeles nos deu o valet parking - em Nova Iorque pouca gente anda de carro. Muitos táxis e o aproveitamento intensivo do metrô. Todos chamam o país de "América". Quando eu morava em Londres a chegada de um americano era como o encontro com um brasileiro: comparados aos europeus, os americanos são muito próximos de nós. Com um inglês então... Eles têm algo essencial que você não encontra nem em países latinos (mesmo ibéricos) da Europa: a sensação de ser vira-lata. Não é necessariamente o "complexo de vira-lata", que Nelson Rodrigues via em nós. É a viralatice triunfante. Isso também temos. Embora não sejamos um triunfo histórico (meu amado amigo Emanuel Araújo diz que o Brasil é um país de fracassado). Mas são vira-latas até nossos orgulhos e momentos de autorrespeito. É assim em toda a América. Nas Américas. Ninguém matou tanto índio quanto os colonizadores de língua inglesa. Mas todos traficamos gente negra para escravizar. Sempre senti os Estados Unidos como um país mestiço, a despeito da segregação. Cresci vendo Louis Armstrong e Doris Day cantarem. O rock'n'roll foi a virada de quadril de um branco esquisito que enxertou rithm&blues na country music, a música caipira branca do sul.

Gosto de Nova Iorque. Em "Verdade tropical" me estendo sobre isso. É uma cidade que só poderia ter surgido nos Estados Unidos. Os americanos dos estados centrais são vistos (e se sentem) como os verdadeiros americanos, os sofisticados habitantes das costas Leste e Oeste sendo uns "liberais" universalistas. Nada foi tão representativo do impulso revolucionário dos Estados Unidos do que a eleição de Barack Obama. Mas o país vive a ressaca dessa farra histórica. Obama é o presidente mais inteligente e elegante que este país já teve. O ódio contra ele agora é proporcional a isso. Claro, todos entendemos que se a economia vai mal (e não tinha como não ir mal, depois do que fizeram com o reaganismo-thatcherismo - ou do que esse estilo fez com a sociedade capitalista), os eleitores votam contra o governo. O contrário do que aconteceu no Brasil. Mas a ala mais conservadora da população está sonhando em ver Sarah Palin na presidência e chamando Obama de "socialista" (um xingamento aqui) e de "nazista" (um xingamento em qualquer lugar). Tudo se explica pelo horror à presença do governo na vida dos cidadãos. Mas há conteúdos racistas, nacionalistas e religiosos - além de velhas amarras ao grande dinheiro - que quase nunca são explicitados).

Hoje também foi exibido aqui, não sei bem onde, "Uma noite em 67". Soube porque alguns amigos meus americanos me disseram que iam ver. já estávamos na sala onde se projetaria "Biutiful", quando eu disse a Hurwitz que esse filme estava possivelmente sendo exibido em algum outro lugar da cidade. Ele disse que se eu tivesse dito antes ele teria sugerido irmos vê-lo juntos. Fico curioso de ver que reação teria Bob diante daquelas primeiras apresentações tropicalistas - mas penso que seria chato para mim rever esse filme aqui, numa exibição única. O filme de Iñárritu é bem como os filmes dele: claramente feito por alguém que nasceu para fazer filmes - e composto do fascínio naturalista pela degradação (parece que quanto mais degradado mais verdadeiro) e dos resquícios melodramáticos do cinema mexicano da minha infância. Há uma dureza de olhar (seringas, feridas, sujeira, cinismo, excrementos0 e uma sentimentalidade levada a sério. E a música competente e macetada de Santaolalla (com um Ravel redentor no final). Saí da sessão para as ruas de New York pensando no México, na minha meninice, no rumo de nossas vidas nesse continente que pegou o nome de um aventureiro mentiroso e teve seu nome roubado pelo país que soube enriquecer e sofisticar-se. Sermos americanos nos diz muito sobre nossas chances e deveres. Os Estados Unidos estão imprimindo dinheiro para quebrar o galho (e dificultar as exportações de países como o Brasil), numa queda de braço com a China (que mantém a moeda subvalorizada). É gozado ver países querendo que suas moedas valham menos. Esse mundo é um pandeiro. Mas os EUA ainda são o país mais hospitaleiro para quem queira pensar, experimentar, pesquisar. Basta ter isso em mente - nem precisa lembrar Gershwin - para entender que o antiamericanismo é prova de fraqueza de espírito. 

Caetano Veloso.

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