Analfabeto (12/12/2010)
Quando eu era menino, mais da metade da população brasileira era analfabeta. Santo Amaro era rodeada de áreas rurais onde quase ninguém sabia ler. Os vendedores da feira, os serviçais das casas, os varredores de rua rarissimamente eram (mal) alfabetizados. Entrei no curso secundário no ano em que o primeiro ginásio púbico foi inaugurado na cidade. Sou fundador do Colégio Estadual Teodoro Sampaio. Gostava muito do professor de português, Nestor Oliveira, um homem branco de olhos azuis e óculos grossos, obsessionado por análise sintática - e poeta. O diretor era o padre Antenor, que também dava aulas de latim - e às vezes de francês (e mesmo inglês), caso o titular faltasse. Gostava também de Édio Souza, que ensinava História em ritmo de conversa de bar.
Uma vez veio de Salvador um professor de Ciências chamado Edilberto. Ele era exigente e muito informado. O dissabor dos alunos que se sentiam pressionados e o catolicismo ameaçado da diretoria uniram-se para expulsá-lo: ele dizia abertamente que não acreditava em Deus e dava notas baixas a quem não se aplicasse aos estudos com proveito. Eu não me aplicava a estudos nenhuns, mas professor Edilberto falava com muita clareza e eu terminava exibindo rendimento. Não nego que também admirava seu ateísmo destemido: a miríade de hipocrisias que cercavam a religião me exasperava. Afora essas simpatias, eu não diferia muito da maioria dos colegas: ninguém sabia ao certo por que estava ali nem de que serviam as informações que chegavam. Éramos preguiçosos e desmotivados. Um adulto, cantor em serestas e no coro da igreja, chamado Binu, se matriculara entre os garotos de 11 anos e parecia ser o único a ter ideia do valor da educação. A mente analfabeta dominava o ambiente. Não tenho dúvida de que esse atraso pesa enormemente sobre nós.
Quando Wilson Martins desancou Chico Buarque e Jô Soares (num mesmo artigo!) por eles publicarem livros sendo estrelas de TV, o outro lado da moeda dessa deformação se mostrava. No caso Jabuti, esse lado reaparece repetindo um dos personagens. Penso que é inevitável que seja assim. A avaliação do Pisa mostra que estamos entre os dez piores países do mundo em aproveitamento escolar. A atração pela música popular a que não resistem as mentes excitáveis reflete algo dessa situação. A seriedade com que essa forma de expressão é tratada também é parte do sintoma. E a reação histérica a isso não o é menos. O analfabeto está em nossas pretensões intelectuais. Na canção, no cinema. Em "O cinema falado" - cujo título tirei de um samba de Noel - fiz alguém dizer que "formas bastardas de expressão, como o cinema e a música popular, tendem a ganhar demasiada importância entre nós" porque somos ignorantes. A exibição de falta de concentração que é esta coluna dominical já configura um exemplo. Então, entendo quando Wilson Martins ou Yara Chiara (uma mulher que li porque me mandaram um link do blog de Reinaldo Azevedo, cujo nome errei não por maldade mas por deficiência mental) se sentem na obrigação de desautorizar Chico a escrever romances. Eles erram, se enrolam, mas expressam um mal-estar real. Se há um erro de ortografia ou a possibilidade de se considerar uma imagem ("Olhei pelo alto o jornal da TV") inadequada (não é, e muito menos posta ali ingenuamente), eles se apressam em dizer que aquilo é prova de que quem faz canções admiráveis não podem escrever livros sequer admissíveis. No Canadá ninguém precisa fazer isso com Leonard Cohen. Tanto a exagerada exuberância vocabular de Euclides da Cunha quanto a ilusão de que Machado de Assis é o único escritor brasileiro digno desse nome nascem dessa mesma sensação de estarmos emergindo mal e mal do mundo iletrado. São expressões da mesma ansiedade.
No lançamento de "O cinema falado", três cineastas disseram horrores de mim a um jornal. Mesmo confessando não terem visto o filme, eles gritavam "Cada macaco no seu galho" e "Urubu da vanguarda" e "Cantor tem é que cantar: não está qualificado para fazer cinema". Pois bem, honra-me transferir votos de mala do ano, na vetusta lista de Axé Xexéo (mala leve, rasa e cheia de brinquedos), à Gadú. E repetir (já pela enésima vez, cara Chiara) que "Budapeste" é um bom romance. Saem montões de livros com que todos são benevolentes. Não entrei na briga entre Schwarcz e Lacerda. Quando li (depois), achei até a argumentação do Cara mais forte do que a do Luiz. Mas falar em "concurso de beleza" denota má vontade suspeita com Chico. Imperdoável, embora explicável pelo descrito acima. Eu escrever sobre Mangabeira (sem me preparar para isso, como planejara) serve mais como ilustração de sua descrição do estudante brasileiro, treinado para a dispersão, do que como notícia sobre o valor de seus escritos. O fato de Lula estar próximo do mundo do analfabeto contribui para a força de sua comunicação. O de eu não distanciar-me dele o suficiente, para a fraqueza minha. Mas sou tão teimoso quanto um homem de fé.
Enquanto isso meu amigo John Perry Barlow balança entre apoiar defensores anônimos do WikiLeaks e defender-se contra a opressão que pode vir deles.
Temos que voar do iletrado para o pós-letrado. Talvez nosso estilo desequilibrado se defina mais pela premonição desse voo do que pela dor do atraso. Nos bons momentos, Lula é figura épica, Chico, maior que Dylan e eu próprio, esperto por perceber isso.
Caetano Veloso.
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