Angústia (10/04/2011)

Foi a primeira vez que vi um espetáculo de Pina Bausch depois que ela morreu. Senti grandemente sua ausência na plateia, durante a apresentação, e no palco, para os agradecimentos. Alguns dos bailarinos, o cenógrafo (o genial Peter Pabst), a figurinista (a extraordinária Marion Cito) e os assistentes de direção (Dominique Mercy e Robert Sturm) foram jantar no Nova Capela depois da sessão. Fui com eles à Lapa. Rimos, conversamos, sentimos a presença forte da ausência dessa mulher incrível que parece ter morrido como os movimentos dos seus dançarinos ao se completarem no espaço: com uma suavidade perfeita, que, no entanto, não nos ilude quanto às razões da angústia. Já contei que ouvi falar de Pina como de uma artista do desespero, mas que, ao ver pela primeira vez um espetáculo seu, tive a impressão de estar diante da vida mesma, de toda a complexa trama de formas e sentidos que dão gosto à vida. Lembrei-me mais de “Aquela coisa toda”, do Asdrúbal Trouxe o Trombone, do que de Gerald Thomas. Pensei mais em Fellini do que em Bergman. Mas há Brecht e Kafka e modalismos africanos. Imagens fundas. Brilho intenso das superfícies. Como é que o movimento de um corpo chega até longe no ar, a um tempo reafirmando e superando a função de dobradiça dos cotovelos? O traje ocidental. A materialidade do palco. A materialidade dos elementos naturais no palco — a naturalidade dos elementos artificiais. Pina era uma poetisa. O barro, os cravos, a água, a bambolina, as (cada uma única) pessoas humanas. Serei para sempre grato a ela.

Meu amigo Glauber Guimarães, roqueiro baiano cujo talento já transbordava quando ele era líder dos Dead Billies, não concorda comigo em quase nada relativo às discussões sobre a Lei Rouanet. Ele sente o peso do fenômeno comercial que é a música de carnaval de Salvador e, com nova banda de belo nome (Teclas Pretas), trabalha com o rock como um artista romântico burilando criações puras, desvinculado dos esquemas existentes, usando a internet como campo aberto para expor os processos por que passa sua música. Para um velho como eu, não deixa de ser emocionante ver aonde o rock chegou. A liberdade de jovens artistas como Glauber nasceu, em muitos casos, do seu amor pelo rock. Que, por sua vez, nasceu como um fenômeno comercial e de baixíssima reputação no meio dos anos 1950.

O rock acertou. Procuremos não errar demais agora. Peço perdão a quem de direito pelos meus erros. Mas não gosto de desrespeito aos fatos. Eu poderia explicar a Lobão que “Rock‘n’Raul” é uma canção de amor. Sem dubiedades. Pode não parecer menos confusa do que sua “Para o mano Caetano”, que me fez chorar (e que me levou a compor “Lobão tem razão”). Entendo que ele precisasse jurar que sua música para mim era uma canção de amor. Pode ser que alguns precisem que eu explique por que “Rock‘ n’Raul” também o é. Mas estou certo de que Raul sentiria o mesmo que sinto ao ouvir “Para o mano Caetano”: amor. E nem sei se ele teria coisas a corrigir, como eu tenho no caso da canção de Lobão: por exemplo, a menção a ACM, como se eu tivesse alguma vez apoiado esse político. Não desqualifico quem o fez, como Jorge e Zélia, Gal ou Brown. Mas ACM teve que conviver sempre com minha oposição. “Ninguém é meu dono”, era o que ele ouvia de mim. Dizer que ele era sexy era meu preâmbulo para entrar de sola no assunto da superação do caciquismo. Quando Collor estava caindo, achei nobre que ele e Brizola fossem os últimos a continuar defendendo-o. Mas quando ACM, numa festa, se dirigiu a mim e a Gil para queixar-se de ter que seguir apoiando “esse canalha idiota”, gritei-lhe na cara: “Como você pode falar assim comigo? Vocês da direita sustentaram esse cara que nós fizemos tudo para derrotar e agora vem você me tratar como se estivéssemos juntos?” Toninho Malvadeza ficou ralo. Olhou ao redor, pálido de raiva, e se afastou de fininho. Odeio ouvir, no avião, “pousaremos no Aeroporto Deputado Luís Eduardo Magalhães”. Não tenho nada contra o falecido deputado. ACM tinha a mania de homenagear seus parentes e amigos mortos usando o espaço público da cidade. O “monumento ao helicóptero desconhecido”, na Garibaldi, é uma vergonha. Já disse tudo isso de público. Então rio frio quando Lobão repete a sigla ACM na canção que tem meu nome no título. Não atribuí a Raul nada que não lhe fosse pertinente. A “vontade feladaputa de ser americano” deu em Lobão, Teclas Pretas e Racionais. E o “lobo bolo” é o “Lobo bobo” de Lyra e Bôscoli, em que se troca o “bobo” pelo anagrama de lobo, bolo, que é referência à confusão (quase nunca boba ou desinteressante) que Lobão causa. Doeu-me ler, no seu envolvente livro (que afinal ele mesmo parece ter escrito) texto meu sobre o caso da lei de numeração dos discos. Ali eu me vejo contrafeito. Duramente claro quanto à retirada de meu nome do abaixo-assinado, deixo entrever algo escuro. Não tenho rabo preso com interesses econômicos de gravadoras. Sou infantil quando se trata de vida prática e termos jurídicos. Devo ter sido persuadido da urgência de interromper a iminente aprovação da lei tal como estava. Parece que não atrapalhou a chegada ao resultado conseguido. Mas à primeira olhada não me achei bem na fita. Num final de semana de angústias (além de tudo, vivi perto de Realengo entre os 13 e os 14 anos), sombras amedrontam. Assim vamos aprendendo. Nem sempre estamos certos de que o sofrimento não serve para nada.

Caetano Veloso.

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