Anulação (24/10/2010)
Nunca engoli a intepretação do primeiro "Tropa de Elite" como sendo um filme fascista, com o Capitão Nascimento representando a canonização do reacionário truculento. Nem a revista "Veja" me convenceu disso. Tampouco tomei como mensagem panfletária do filme as falas magoadas do personagem Matias contra os universitários da PUC que fazem paradas pela paz e compram maconha e cocaína. Portanto, não consigo entrar na onda dos que agora dizem que, no "Tropa de Elite 2", o Capitão Nascimento aparece com artificiosas dores de consciência para livrar o Padilha da pecha de conservador. Ambos os filmes, com todos os momentos de primarismo, nasceram claramente de uma visão da complexidade ética e moral. O êxito do primeiro esteve ligado ao mundo que retrata - o das favelas cariocas - como não aconteceu com nenhum outro filme dedicado ao assunto.
Desde a origem informal da sua primeira distribuição - a pirataria - a identidade entre o filme e o mundo infantilizado de brincar de polícia e bandido (que gasta a maior parte de toda a testosterona produzida na região fluminense) se mostrou óbvia. E o Capitão Nascimento, um herói nacional que cresceu como nenhum outro saído das telas grandes e dos vídeos borrados, é, desde o nascedouro, um típico personagem de drama de consciência: a pergunta que seu filho lhe faz no novo filme - e que ele se repete na voice over nem sempre bem gravada - é a que está estampada nos atos do implacável treinador de torturadores de bandidos do Tropa1: por que bato nas pessoas? A angústia dessa pergunta está sobretudo patente na profundidade da expressão de Wagner Moura, um ator tão bom que pode induzir muita gente a pensar que ele sozinho leva a espessura da história a graus insuspeitados pelo diretor e pelo roteirista. Mas a verdade é que ele apenas realiza melhor do que estes o que eles têm em mente. Nenhum dos dois filmes é sobre ONGs satânicas contra traficantes vitimizados, grupos políticos cruéis contra uma população honesta ou policiais brutais contra favelados santos. Embora haja tudo isso - e muito mais -, o que anima a existência dos filmes é a paixão pela dificuldade de desfazer o nó cego entre esses fatores.
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Um amigo me manda uma série de capas da "Veja" com escândalos envolvendo as privatizações do governo FHC, compra de votos para a reeleição e outras mazelas da passagem do "Príncipe da Sociologia Brasileira" pelo poder. Para apagar os mensalões, os dossiês e as Erenices do período Lula, nada melhor do que uma lista assim - e pela voz insuspeita de uma revista de direita. Mas, peraí, "Veja" não é exatamente o órgão mais atuante do "Partido da Imprensa Golpista"? A transformação da oposição - em essência artificial - entre PT e PSDB em duas torcidas de hooligans é um dos episódios mais sinistros do processo de emburrecimento da população brasileira. Entre artefatos e bolinhas de papel, deixamos de ser apenas iletrados e incapazes de fazer contas: nos tornamos também faltos de intuição e bossa.
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Um desconhecido me mandou um vídeo de Hugo Chávez, com aquela camisa vermelha, diante diante de uma plateia toda uniformizada de vermelho, cantando loas a uma Dilma "linha dura" que "sequestrou um embaixador ianque", e gritando "Patria, socialismo o muerte!". Tudo mete medo. Lembrei de um jovem baterista de rock com quem ensaiei outro dia que, ao ver Dilma com aquela blusa de gola elevada e estreita (no debate da "Rede TV!"/"Folha") disse "Puxa, a Dilma está parecendo Kim Jong II". E completou, rindo: "Dilma Jong II". Era uma piada totalmente desprovida de raiva pessoal ou política: uma dessas tiradas irreverentes que fazemos diante de políticos na TV, independentemente da nossa (ou deles) posição ideológica. A gente sente quando quem fala uma coisa dessas tem conteúdo emocional intenso. E não era o caso. Mas, ao ver o vídeo de Chávez, a broma do garoto ganhou peso em minha imaginação. Depois do eterno presidente da Venezuela, surge o eterníssimo comandante Fidel, velho e magro, gritando "Patria o muerte!" No entanto, o que se segue a isso provoca ainda maior angústia. Uma introdução conhecida, feita por um coral em tom religioso, dá lugar à voz de Chico Buarque cantando "Cálice", dele e de Gilberto Gil, enquanto cartelas se sucedem com textos que parecem uma versão verbal da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Era uma outra forma de das coisas, muito mais complexa do que a série de capas da "Veja" contra FH. Sobre umas deselegantes frases de histeria e de manifestação da direita religiosa, ouvia-se a voz de Chico (e, logo, Milton) cantando as palavras contra a opressão militar. Não apenas parecia um golpe baixo: era um artefato muito doentiamente concebido para anular a possibilidade da inteligência. Senti revolta. Querem nos impedir de pensar. Esse cabo de guerra entre os apoiadores de Serra e os de Dilma (que, muitas vezes, se creem representantes da esquerda ou da direita; mais vezes ainda veem uns aos outros como representantes dessas antigas denominações; fazendo o máximo esforço para que não reflitamos sobre que relações reais tem cada um dos grupos com tais conceitos) nos torna obtusos.
Meu pai dizia que pior do que os comunistas só os anticomunistas. Meu voto em Marina continua tendo validade. Influirá no próximo governo. O embate entre os outros dois anula meu voto possível nesse segundo turno. Simplesmente sinto que já votei o suficiente. Dilma ganha. Começo logo a torcer por ela.
Caetano Veloso.
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