Avatares da revolução (16/05/2010)
Marina Silva e Gilberto Gil se comoveram com a política de "Avatar". Slavoj Zizek escreveu um artigo para desacreditar essa suposta política, Mas, tanto quanto Gil ou Marina, ele reconhece que o filme é um libelo anti-imperialista feito do ponto de vista de uma esquerda ecológica. Sempre que digo a amigos brasileiros que "Avatar" é um filme de esquerda tenho risos de mofa como resposta. Imagino que Zizek ficaria confuso com essa reação. O artigo dele quer alertar os espectadores ingênuos para o conservadorismo escondido atrás do esquerdismo de fachada do filme de James Cameron: a fábula do paraplégico que enfrenta executivos e militares malévolos para salvar um povo que vive em harmonia com a natureza.
Fica a impressão de que o espectador comum brasileiro, feito um adorniamo instintivo, é antes sagaz o suficiente para entender que num filme cuja renda se conta aos bilhões não se pode sequer querer ver esquerdismo, mesmo de fachada. É como se, ao contrário do que o parentesco de Zizek com a Escola de Frankfurt sugere, a teoria crítica cegasse mais as pessoas do que as obras da indústria cultural. De modo que a singeleza da visão de Marina e Gil aparece como um sinal de que eles têm olhos mais livres. "Avatar" é julgado pelas pessoas que conheço (seja no Rio, em Sampa ou em Santo Amaro) a partir da negação automática de qualquer veleidade de progressismo em filmes comerciais americanos. Não posso deixar de sentir que as argumentações prolixas de Zikek chovem no molhado, enquanto o encantamento de Marina e Gil questiona o olhar convencional.
No entanto, a tradição liberal de Hollywood ("liberal" nos EUA significa "de esquerda") é até piada de apresentadores da entrega do Oscar. "Spartacus", "Tempos modernos", "Dr. Strangelove", "Missing", "Norma Rae" são apenas alguns títulos de filmes que se apresentam como críticas políticas feitas de um ponto de vista esquerdista. Mas, também nos filmes bíblicos, a resistência judaica a filisteus, babilônios, egípcios ou romanos ganha tons de panfletos anti-imperiais. Quase todos os filmes sobre conflitos raciais parecem penitências pelo pecado original do "Nascimento de uma nação", filme que pode ser considerado como O Nascimento do Cinema e que é uma ode à Ku-Klux-Klan. Os atos do macarthismo em Hollywood foram uma reação contra a predominância liberal e o risco de tendências radicais - uma reação que, no médio prazo, foi derrotada. O esquerdismo de "Avatar" é bem hollywoodiano.
"Avatar" para mim é puro entretenimento. Fui adolescente nos anos 50: amo 3D como um meio de intensificar a magia do cinema. O uso dessa técnica no filme de James Cameron vai longe disso. Vi o filme duas vezes (porque sou um velho cheio de compromissos e não posso mais ver o mesmo filme dez vezes como fazia aos 19 anos). A retórica ecológica e anti-imperialista foi útil para que eu fruísse os efeitos sem preocupações (eu não ia ter de ouvir amigos atrapalhando meu entusiasmo infantil). Mas a menção casual a tal retórica causava tanta desconfiança nas pessoas com quem falei sobre o filme que o texto de Marina e a entrevista de Gil caíram como um bálsamo.
Zizek é um compulsivo escritor pop que, saído da resistência anti-stalinista da Europa do Leste, decidiu usar Lacan (sobre quem pesa a frase de Lévi-Strauss: "Não sei se entendo o que ele quer dizer") para chocar os liberais pós-queda do Muro de Berlim com insinuações de reabilitação do terror de Robespierre, da opressão de Stalin e da crueldade de Mao. Li dois dos seus livros: "Bem-vindo ao deserto do real" e "Defendendo causas perdidas".
Acabo de chegar do Chile (onde o privatismo dos economistas de Chicago implantado por Pinochet sustentou o sucesso da série de governos de centro-esquerda e agora elegeu um de centro-direita) e da Argentina (onde esquerda e direita se misturam no peronismo, mas a população é maciçamente estatista). É nesse país que Zizek faz mais sucesso (no mundo acadêmico americano também, mas na Argentina, além do estatismo, mantém-se o culto à psicanálise, sobretudo a Lacan). Vi Zizek falando na UFRJ e me senti tão parecido com um liberal inglês quanto Ferreira Gullar. Embora o achasse engraçado, com ciclo agravando o sotaque e o cabelo encharcado de suor. Mas o que é pertinente aqui é a conclusão do livro das "causas perdidas". Depois de fazer um retrato do mundo atual, em que as mudanças podem vir das favelas, da crise ambiental, da biotecnologia e da propriedade intelectual, ele fecha o livro com um programa revolucionário que só será possível se a esquerda eleger o risco de catástrofe ecológica como tema central - e com a pergunta: "A ameaça ecológica não oferece, então, uma chance única de reinventar a 'Ideia eterna' do terror igualitário?"
No livro, Zizek prefere Chávez a Lula, passa rápido por Mangabeira Unger e vê o pessimismo de Adorno/Horkheimer como equivalente ao de Soljenitzin (que acreditava que o Ocidente ia perder a Guerra Fria): a desesperança de Frankfurt nos levaria a derrubar o capitalismo como o erro do russo ajudou a derrubar o Muro de Berlim. Mas é no tema ecológico que, como em Marina ou em Gil, se passa o essencial do drama a ser vivido. Gil é meu amor de juventude, incondicional e para sempre. Amo Marina inclusive porque seu avatar da revolução contrasta tanto com o de Zizek que fica claro quão pouco uso o Brasil pode fazer das teses deste.
Caetano Veloso.
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