Azeitona (01/08/2010)

Ouço sempre dizer que Atenas não é bonita. Mas quando estive lá pela primeira vez, escrevi a amigos: "Atenas está na minha cabeça o tempo todo. É uma cidade muito especial. Esse ar de cidade nova, que a aproxima das cidades brasileiras e latino-americanas, combinado com as relíquias da Grécia antiga e com a geografia mágica em que tudo aquilo se deu, produz uma sensação de contato direto com a aventura grega, como se a informação visual e táctil que restou estivesse nua. Diferentemente de Roma, que tem várias camadas de passado ostensivamente nobre do ponto de vista histórico, Atenas é uma cidade relaxada culturalmente, quase comum. A Acrópole e o arco de Adriano estão despidos das elegâncias medievais, renascentistas, setecentistas ou oitocentistas das cidades europeias. Atenas não é europeia. É a razão de ser de toda a Europa mas é um campo livre, perto do Oriente e aparentado com o Novo Mundo. Quando a vemos da Cidade Alta, parece uma favela purificada: torna-se branca e errática morros acima, frente ao mar. Torna-se algo atemporal e parece que estamos diante do mundo que entrevemos nas primeiras páginas da 'República' de Platão, quando ele descreve um encontro casual de Sócrates com um grupo de jovens conhecidos, depois de uma procissão."

Atenas não se mostra branca ao pedestre que lhe percorre as ruas. Mas vista do alto ela surge alva e homogênea como não se poderia suspeitar - e ainda deixa o desenho dos montes e do mar como que intactos: a descrição do encontro casual de Sócrates com aqueles rapazes (de si algo tão surpreendentemente vivo e próximo de nós) parece estar se dando no momento em que você chega ao topo da Cidade Alta.

As ruas nada indicam da crise por que passa o país (e que põe em xeque a União Europeia): carros bons, lojas bonitas, pessoas relaxadas. Mas uma amiga grega me diz que fechou a galeria que tinha e que toda essa aparência de ordem e progresso se desfaz a cada passeata de protesto contra as ameaças de cortes nos programas sociais. É voz corrente e toda a Europa precisa repensar seus arremedos malfeitos de social-democracia e fazer as contas para prometer o que pode, não o que acha bonito ou o que dá votos aos candidatos. Os países escandinavos fizeram realmente algo que se pode chamar de social-democracia - e, alguma mudança de curso, seguem muito bem. Mas nossos parentes do Mediterrâneo tentam seguir a França, que tem esquemas antiquados, sendo que gregos, espanhóis e portugueses não têm a economia forte diversificada da França. La Merkel puxa para um lado (exigir dever de casa bem feito dos países inadimplentes ou "Rua!") e Sarkozy para o outro (criar um "governo econômico" da zona do euro). Uma outra oposição atravessa essa: decidir se se põe a culpa da crise nos especuladores ou nas políticas de bem-estar social. Enquanto eles não chegam a um consenso (difícil), nossos moreninhos (na Grécia os há cor de azeitona e com penugem dourada na nuca), nossos não propriamente brancos portugueses, espanhóis e italianos (sim, aqueles que tinham tratamento de segunda por parte dos planejadores norte-americanos na política de imigração) vão sofrendo a expectativa de debacle e estressam-se no esforço de pensar soluções salvadoras.

O garçom do hotel Hilton de Atenas propõe um óleo de oliva do Peloponeso para comer com pão. Animo-me - olho a palavra ATHINA, escrita em caracteres gregos com flores no canteiro gigante em frente ao hotel. À noite vou ver a final da Copa na piscina com o elenco da companhia de Pina Bausch: é a primeira vez que nos vemos desde que ela morreu. A imagem dela esvanescendo-se lentamente é assustadoramente coerente com sua arte, sua arte que foi uma perene descoberta da vida. Vejo aquelas caras, aqueles corpos, aquelas pessoas que encarnam no palco as inspirações dessa artista grandíssima e sinto simplesmente saudade dela, do inesquecível abraço dela, que Pedro Almodóvar também ressaltou, e penso em como eu desejava, como Fellini,  estar sempre ali, onde a dança dela se dá, permanecer naquele mundo, não sair. Eles apresentaram "Água", a peça inspirada no Brasil e que eu nunca cheguei a ver. Estávamos, eles e eu, na obrigatória noite de folga por causa da final do Mundial. Todos (ou quase) torcemos pela Espanha. A companhia é formada por venezuelanos, australianos, argentinos, espanhóis, alemães, franceses, brasileiros, gente de todo o mundo. Os holandeses da Laranja Mecânica batiam feio e só dois dançarinos (um venezuelano e uma brasileira) não torciam pela Espanha. Os estrangeiros falam inglês ou espanhol comigo, mas todos em geral foram alemão entre si (e nem parecem se dar conta).

Os jornais incluem a Irlanda entre os países europeus encalacrados. A Irlanda é tradicionalmente o primo pobre do mundo anglófono branco. Mas lá as reformas tidas como necessárias começaram em dezembro. Continuo na minha fase liberal-inglês, nível Ferreira Gullar. O capitalismo acabou? Qual o Ocidente que escolhemos crer que a Grécia criou? Qual o que sentimos que ela sugere? Percebendo-o assim tão perto e novo, tão apenas dando-se, como ao ver o mar de Atenas, as colinas, as meninas de nariz reto e nobreza crua como a de estrutura de uma tragédia, vivendo uma espécie de transe com o ser ali, sem entender nem identificar-se com Heidegger, o que pode pensar um mulato brasileiro que nem mulato querem deixar mais que se chame?

Caetano Veloso.

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