Declaração de voto (05/09/2010)
Meu voto para deputado estadual vai para Marcelo Freixo. Declarei na televisão que estou sempre com Gabeira porque ele é sempre fiel aos princípios que adotou ao longo do tempo. Essa fidelidade é coisa muito mais profunda do que o que se chama de coerência ideológica. Conheço Marcelo Freixo há muito menos tempo do que conheço Gabeira (Freixo é muito mais jovem), mas vejo nele algo dessa natureza. Gosto de votar (sempre me lembro de meu pai nessa hora) e gosto de ter claro e de dizer em alto e bom som em quem voto. Ao contrário, não sei se do tolo Fagner, do inteligente Lobão, do genial Tom Zé ou do absurdete Macalé - um deles disse que seu voto é tão secreto que ele não o declara nem a si mesmo -, adoro poder ter certeza da escolha do candidato para gozar da alegria de alardeá-la.
Nunca um anúncio de voto causou tanta estranheza quanto o que pretendo dar a César Maia. Um amigo paulista me escreveu que era como se eu dissesse que ia votar em Maluf. A "Folha de S. Paulo" me pediu explicação e quis saber minha avaliação das gestões municipais de Maia. Bem, faço o que posso.
Marina, Gabeira e Freixo são leais a princípios válidos. Mangabeira tem isso e ainda um temperamento visionário que me fascina (além de uma inteligência espantosa, exibida em textos vários, sobre política ou filosofia, que um dia ainda pretendo comentar - modestamente - aqui). A Cesar não lhe faltam muitas dessas virtudes, mas meu desejo de dizer de público que voto nele tem origem estritamente política: um quadro tão preparado da oposição não pode ser descartado num momento em que esta se encontra tão debilitada.
Qaunto à coerência ideológica, bem, tendo a pensar a palavra "ideologia" nos termos negativos com que Marx se referia ao conceito do que na acepção festiva que reina entre os pretensos seguidores de Marx. Seja como for, passa-se por muita complexidade para chegar-se a uma tomada de posição simples o bastante para funcionar como um princípio. Li dois livros recentemente que me levaram a ver bem claro como isso se dá. Um é o "Gomorra", de Roberto Saviano; o outro, "Passado imperfeito", de Tony Judt.
Eu tinha visto o filme baseado em "Gomorra". É o mais sério e elegante filhote de "Cidade de Deus". Faz pensar. Mas, ao contrário do que aconteceu com "Cidade de Deus", o livro tem mais cinema do que o filme - e faz pensar muito mais. A vivacidade da prosa de Saviano permite reflexões feitas "a quente" que realmente nos levam a encarar as críticas ao capitalismo moderno com mais gravidade do que os pensadores explicitamente comunistas nos encorajam a fazer. Hoje, os restos de pensamento de esquerda revolucionária aparecem como delírios religiosos aos olhos de quem, como Judt, não quer esconder de si mesmo os horrores da experiência comunista e os constrangimentos dos intelectuais que se contorceram para denegá-los. Tendo lido a confissão de Fidel de que em Cuba de fato houve perseguição aos homossexuais (seguida muitas vezes de "campos de trabalho"), um amigo pôde me dizer, sem pestanejar. "Tarde demais". Mas, embora tenda a concluir que o crime é o núcleo duro do capitalismo (como que expandindo a afirmação de que "a propriedade é um roubo") - o que pode esconder a oposição entre o arcaísmo pré-capitalista das máfias do Sul da Itália e o moderno capitalismo nascido da confiança no respeito aos contratos (sua ligação com o calvinismo) -, Roberto Saviano nos leva a sentir na carne aonde pode levar a ética do lucro. Dos operários que trabalham em regime de semiescravidão para grifes bilionárias às montanhas de lixo tóxico que crescem em solo da Campânia, surgem as perguntas de Saviano sobre como se move a economia e as acusações de conluio entre o grande capital e o submundo.
Escolher em quem votar tem a ver com o modo como lidamos com a espessura dessas dificuldades. Os princípios que levam Judt a uma versão exigente de social-democracia se veem abalados pelo drama concreto narrado por Saviano.
Nápoles mostra ao visitante brasileiro tocantes similitudes com o nosso jeito: um modo alegre de furar sinais vermelhos, uma ilusão de informalidade sábia, um amor fundo pela canção popular. Mas votar em Marcelo Freixo é votar contra o espírito da máfia. E o que me leva a votar em Marina, Gabeira e Cesar é um mesmo sentimento de luta contra os aspectos sinistros do que há de atraso no Brasil. A vida brasileira precisa estar à altura do destino que se desenha para o país. Gosto de Lula e fui admirador do PT desde sua formação. Mas não tenho medo de dizer que, como Regina Duarte naquele anúncio que nada tinha de escandaloso, tenho medo de país-do-povo e de um partido que tende a ser único. O "pri" do Elio Gaspari dispara em mim quando ouço Lula dizer que Dilma terá mais pontos nas pesquisas porque a oposição chia por causa da quebra de sigilo fiscal da filha de Serra. Para mim, a decisão de impugnar a candidatura de Dilma foi um erro grosseiro. Mas o governo tem responsabilidade pelos malfeitos que se dão na Receita Federal. Se isso tem evidentes consequências eleitorais, é óbvio que a candidatura do governo deve à sociedade uma explicação. Não se trata de concluir pela culpa até prova em contrário. Mas não há ausência total de indícios para suspeitas.
É a complexidade do pensamento que nasce da aproximação de Judt e Saviano que me leva a votar em Freixo, Cesar, Gabeira e Marina. Domingo que vem, deputado federal.
Caetano Veloso.
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