Dois lados? (30/01/2011)

Deixei para escrever depois de ler o artigo de Hermano Vianna hoje (sexta-feira). Ele tinha me mandado e-mail sumário, dizendo apenas que ia agradecer na coluna pelo que escrevi no domingo passado sobre direitos e internet. Pode parecer que falo sempre com ele, mas a verdade é que não trocamos palavras - nem pessoalmente nem por e-mail - faz muito tempo. Nos vimos na gravação do "Esquenta", de Regina Casé (de que ele é redator), mas, em meio à confusão, mal pudemos nos dizer que sentíamos saudades um do outro. A bem dizer, desde antes de Ana de Hollanda assumir Hermano já tinha parado de enviar mensagens. Ele não tem celular. Nem eu. Um dia ele me mandou um forward de texto francês (que lhe tinha sido enviado por Eduardo Viveiros de Castro) sobre a questão dos direitos na internet. Um texto cheio de perguntas. Depois me reenviou texto de Ronaldo Lemos (que só vejo no "Folhateen"- quando leio o "Folhateen"). Como só olho jornal impresso no papel e acordo tarde, escrevo neste momento ao cair da noite (tenho que comer e tomar banho, que diabo), com medo de deixar minha editora em suspense, como já fiz involuntariamente umas duas vezes. Mas vale a pena: o artigo de Hermano é de grande clareza e não pode ser simplesmente ignorado.

Como é adequado à minha declarada posição tendente aos que desconfiam das modernagens e temem por seus direitos, tenho conversado mais com o outro lado. Desde os frequentes encontros com Jorge Mautner (que repete que ninguém toca em um centavo dos seus direitos autorais) até a troca de e-mails com Fernando Brant e Ronaldo Bastos, a pressão de grupo que mais me atinge é a que se opõe a relativizações dos direitos de autor por causa da internet. Ontem mesmo, curiosamente, vinha ouvindo no rádio do carro Joyce cantando "Clariana" (com aquelas aberturas de vozes feitas com perfeita musicalidade) - e pensava no lugar especial que ela ocupa em meu coração. Conheci Joyce em 66, quando eu morava no Solar da Fossa: ela me visitava com seu namorado de então e conversávamos; quando saí da prisão ela foi até à Bahia me ver - e essa visita, pelo tom sincero e discreto, me deu uma ideia do que seja a solidariedade verdadeira. Ela era uma menina bonita e doce. A capacidade musical que possui me surpreendeu quando, anos depois, ela ressurgiu tocando violão como os melhores (na terra de João Gilberto, Dori, Gil e João Bosco, isso não é brincadeira), cantando com afinação preciosa, compondo com imaginação harmônico-melódica original. Toda vez que ouço a canção que ela compôs em homenagem a Elis, considero que a homenagem tem merecimento recíproco: Elis é a cantora mais músico que chegou ao estrelato no Brasil e Joyce é o maior músico entre as cantoras que vieram depois. Sendo que ela tem uma emissão mais suave e, por isso, mais imediatamente bonita do que a de Elis (não se trata de julgar as interpretações que ambas apresentaram ao longo dos anos - nisso pode ser que Elis, no fim das contas, permaneça acima, o que possivelmente é o que Joyce crê ser a verdade - mas de sentir que reação o modo de cada uma emitir causa no ouvinte). Pois bem: mal saí do carro e subi o elevador com esses pensamentos, encontrei em minha caixa de e-mails uma mensagem de Joyce aplaudindo a decisão da ministra de retirar as licenças CC do site do MinC.

O e-mail de Joyce era tão claro quanto o artigo de Hermano. Transcrevo-o na íntegra porque quero difundi-lo e porque quero que os defensores do CC respondam:

"Olá todos,

"Todo o meu apoio à ministra Ana de Hollanda! Gostaria que alguém me explicasse por que cargas d'água o Creative Commons (licença norte-americana privada, patrocinada, entre outros, pelo Google - que contribuiu com a módica quantia de US$ 30 milhões!) foi parar num site governamental de um distante país da América do Sul - que, por acaso, também faz a mais valorizada música do mundo no momento. Porque saiu de lá, isso eu entendo...

"O direito autoral é uma conquista moderna, que data do início do século XX. Até então, como dizia o grande Donga (para ficarmos só na música), samba era que nem passarinho, de quem pegasse primeiro. Hoje a constituição brasileira diz que a 'obra do espírito' é direito inalienável do autor. 

"Moderno é o autor ter autonomia para decidir quanto vale o seu trabalho, O resto é vanguarda do atraso.

JOYCE MORENO"

Desde o começo, tenho mostrado meu desejo de ficar no centro (com todo respeito e modéstia à parte) dessa discussão. Talvez, pela minha ignorância, eu deva abandoná-la aos entendidos, mas o fato é que sinto vontade de induzir o diálogo a áreas mais claras. É que, se não me anima o antiamericanismo perceptível na mensagem de Joyce, preciso de respostas nítidas por parte de pessoas até onde eu sei honestas, como Hermano. A simpatia pelo CC serve a interesses suspeitos? Por outro lado, até que ponto essa simpatia encobre uma ameaça ao direito de autor? O artigo de Hermano já parece responder parte dessas questões. Ele também exibe exemplos a serem seguidos, como o da Inglaterra. À luz do seu texto, o e-mail de Joyce parece confirmar que o anúncio de saída do CC do site do MinC tem o caráter de oposição cega ao ministério anterior. Todo o meu apoio à ministra Ana de Hollanda: a discussão sobre direitos, segundo ela, ainda não começou. Que o artigo de Hermano, o e-mail de Joyce e esses meus comentários vão contribuindo, devagar, para que ela comece bem. 

Caetano Veloso.

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