Dragão (12/09/2010)

O artigo do ministro Juca sobre a nova Lei de Direito Autoral me fez vestir a carapuça. Quando ele fala de queixas marotas contra aspectos do projeto de lei, acho que se refere a mim. Mas gostaria de explicar ao amigo ministro que não foi por má vontade e sim por falta de espaço que me concentrei em detalhes que pediam crítica. Minha intenção (que se provou algo frutífera) era contribuir para a melhoria da lei. Sou desconfiado da tendência a querer legislar como se o atual governo fosse o melhor imaginável e, por essa razão, fosse permanecer no poder indefinidamente. Mas reconheço os intentos de fortalecer os detentores de direitos (embora, por exemplo, presumir ingenuidade de autores que venham depois a se arrepender de contratos só induziria a processos geradores de confusão). E reitero minha simpatia pelo desejo de acompanhar as mudanças que advêm da reprodutibilidade digital e da difusão virtual. Mas ressalto que tal desejo não se traduz sequer em esboços de regras.

Assombra-me ler na tradução de um livro como "Passado imperfeito" aberrações como "faria-se" ou "concentrariam-se". O que leva um tradutor brasileiro a escrever assim? Será o pavor da mesóclise? O sujeito tem vergonha, nojo ou medo de escrever "far-se-ia" ou "concentrar-se-iam"? Mas se eu pus mesóclise até em letra de samba - e soando com absoluta naturalidade - por que, num livro cujo subtítulo é "Um olhar crítico sobre a intelectualidade francesa no pós-guerra", não se pode fazê-lo? Será que é porque não a usamos na fala diária? Mas se o motivo é submeter o texto ao coloquialismo, por que então o tradutor não escreve "se faria" ou "se construiria", como falamos? É uma tristeza ver a confusão de critérios na composição de um texto teórico em nossa língua. Será consequência do papo mal explicado dos linguistas? Será uma má leitura dos "manuais de redação"? Será que há novas regras que não vi consagrarem-se? Se não podemos usar a mesóclise nem num livro culto - e ainda assim lançamos uma ênclise nunca ouvida nas ruas - o que queremos fazer da língua portuguesa?

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"Absurdete", aplicado a Macalé no domingo passado, era antes carinhoso. Fagner tolo, Lobão inteligente, Tom Zé genial, Macalé absurdete: todos falaram mal de mim. Mas os amo mesmo assim. O tom de desprezo geral é piada que encerra um samba-canção. A parte de Macalé é só sentimental. 

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Roberto Saviano, que, além de tudo, é quase charmoso demais nas imagens disponíveis no YouTube, escreve sempre a palavra inglesa boss sem flexão para o plural. Na tradução brasileira se lê sempre "os boss", "vários boss" etc. Fica gozado. O plural de boss é bosses. Em português manteríamos a variação. Mas os italianos - dos poucos ocidentais a não fazerem o plural com esse "s" que, suponho, nos veio do acusativo romano - espantar-se-iam com o fato de uma palavra que já tem dois esses (tenho saudade do tempo em que havia o acento diferencial entre "esse" e "êsse": aqui não pude usar "esse" no singular, indicando o nome da letra, pois sem a marca de diferenciação este texto não seria apenas chato como é, mas ininteligível) - os italianos, dizia, achariam absurdo fazer um plural com "s" numa palavra já com esses demais. Mas Roberto, pelo menos segundo a tradução brasileira, faz o mesmo com a palavra bag: "alguns bag", "muitos bag". Claro: ele expõe a fala dos napolitanos. 

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Bonito em "Gomorra" é o relato sobre AK-47 e seu inventor (um russo que recebe a visita de um jovem camorrista). Tudo sobre o fuzil mais famoso do mundo - e observações lancinantes sobre o significado dessa fama. Tânia Fusco me deu o livro de presente. Ela não sabe quão importante ele se revelou: me fez dar uns três passos para a esquerda. Nem o horror que sinto pelos esforços risíveis de Zizeks e Badious de ressuscitar a esquerda revolucionária ficou sem ser abalado. A violência de certas aberrações descritas no livro faz a fé no reformismo sensato dos que, como eu, não se deixaram iludir pelas maluquices dos intelectuais franceses (eu era fã de Sartre e Simone de Beauvoir: seu brilhantismo me impressionava e suas experiências de vida me fascinavam, mas nunca, nem em 1962, eu pude aceitar - nem mesmo perceber com clareza - a aprovação deles à União Soviética: mesmo em "Questão de método", cravava-se com mais força em mim a anedota de que um governante tcheco, ao ser informado de que o subsolo de Praga não se prestava à construção do metrô, decretou que "o subsolo de Praga é antirrevolucionário" do que os esforços para provar que "o marxismo é a filosofia intransponível do nosso tempo") balançar. (E aqui não retomei os termos a que esse "balançar" se refere, como diz com "os italianos" no parágrafo anterior, o que deixa um sabor extravagante no final de tão longo e tortuoso período: gosto disso. Mas preferiria escrever simples e claro como João Moreira Salles). Certas monstruosidades amparadas pelo progresso global conquistado através da paixão do lucro fazem a violência revolucionária parecer justificável. 

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Nada disso me leva a desculpar as falas de Lula sobre o Receitagate. Ele é presidente da República, não um locutor de Dilma no horário gratuito. Elio Gaspari disse tudo a respeito. Mas finalmente chego ao PSOL: meu voto para deputado federal vai para Jean Wyllys. E meu outro senador é Lindberg Farias. Duplo efeito Saviano: bonito e de esquerda. E tem um dragão tatuado no braço. Ver novela a respeito em Jorge Bastos Moreno.

Caetano Veloso. 

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