Evo e Adana? (31/10/2010)
O presidente da gravadora com que tenho contrato desde que o mundo é mundo, a Universal, traz a público uma reclamação que Gil Lopes repetia de forma obsessiva no blog Obra em Progresso: por que a Apple não abre uma loja do iTunes no Brasil? Há quem diga que Steve Jobs alega serem os impostos aqui demasiados altos. O presidente da Universal assegura que o mercado brasileiro é grande e o desprezo de Jobs é desarrazoado. Perguntei a Hermano Vianna, conhecedor e amante da web, e ele me encaminhou para Ronaldo Lemos, amigo comum e titular da coluna "Internets" na "Folhateen". Ronaldo diz que "certamente os impostos têm um impacto na venda de música digital. Mas a questão principal não é essa, são duas. Uma é a questão do licenciamento. Licenciar todos os direitos de cada uma das músicas e catálogos para venda no iTunes não é nada fácil e seria muito caro. A segunda coisa é uma questão de mercado mesmo. Todas as lojas de venda de música digital falharam no Brasil, o retorno é baixíssimo. A razão para isso é econômica: as faixas estão sendo vendidas a uma média de R$ 1,70, o que é mais caro do que uma faixa vendida pelo iTunes nos EUA".
Apesar da clareza da resposta, fica a dúvida. E eu insto Éboli, o presidente da Universal, a polemizar com Lemos. Sinto que a obsessão de Gil Lopes levantou uma lebre gorda. Por que há iTunes em outros países, como o México? E por que o diagnóstico pessimista da potencialidade do nosso mercado nesse campo deve continuar parecendo uma fatalidade?
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Acho que ficou claro que, pela primeira vez na vida, anulo meu voto nesse segundo turno. Detesto as fanfarronadas de Lula, apesar de reconhecê-lo como o mais moderno da turma a que ele ostenta pertencer: Chávez, Cristina, Evo (sempre me ocorre perguntar se o nome da mulher desse não seria Adana), Correa. Com a morte de Kirchner - que a "Folha" tratou de modo excelente: os artigos de Jânio Freitas, Clóvis Rossi e Eliane Cantanhede (cujo sobrenome sempre me traz a sensação de estar olhando placas verdes em estradas portuguesas) foram um show de equilíbrio, respeito e objetividade - meus amigos argentinos, na interminável sobrevida do peronismo, estão de luto. Desapareceu o homem que, representando a esquerda dessa ressaca do fundador mussoliniano da Argentina moderna (como Getúlio foi o mussoliniano fundador do Brasil moderno - sim, do fascismo nos vêm, entre outras coisas, as leis trabalhistas e a "Justiça do Trabalho"), conseguiu articular, caso a caso, a solução da dívida tida como impagável - e retirou a Argentina do buraco negro, trazendo de volta toda uma geração (hipnotizada pelos anos yuppies do ultrabrega Menem) para o interesse público. Infelizmente, esses conseguimentos de figuras ligadas à esquerda frequentemente desmunhecam para o populismo e os líderes terminam alimentando sonhos de controle da opinião e favorecendo um grupo de capitalistas amigos, em detrimento do estímulo à competição saudável. O DNA fascista?
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Anulo meu voto porque considero isso um reforço ao voto dado a Marina - e que continua valendo como gesto consequente. Sou favorável à legalização do aborto, à união civil de pessoas do mesmo sexo, e não sou lá muito verde. Não sou o maior entusiasta da Raposa Serra do Sol nem o maior inimigo das hidrelétricas na bacia amazônica. Penso mais como Mangabeira Unger do que como Marina quando penso na Amazônia. Dizem que Dilma limou Marina do ministério, encorajada por Mangabeira. Não sei. A entrevista de Mangabeira ao "Estadão" sobre a Amazônia é de onde penso que devemos partir para pensar e agir sobre aquela região estratégica. Seria meu voto em Marina um voto contraditório? Talvez pareça. Mas vejo que Marina, com seu estilo honesto e seu histórico que, ao contrário da maioria dos ex-militantes da esquerda, não faz desta uma denominação repugnante, eleva o nível do diálogo político no Brasil. E, por isso mesmo, seria capaz de, no poder, ouvir melhor as propostas de Unger de tomar a Amazônia como campo experimental de vanguarda tecnológica e institucional. As regressões ridículas e inconvincentes de Dilma e Serra a um realismo irrealista de campanha desesperada me dão certeza de que, para minha paz íntima, não dar meu voto a nenhum dos dois é o melhor. Todos sabemos que Dilma vai ganhar (espero que mais apertado do que dizem as pesquisas, pois quanto mais baixa a bola do lulismo maior a esperança). Serra exibe a clara incapacidade de comandar com a opinião dos malucos inflamada contra ele. Dificuldades haverá para quem quer que se eleja. Serra talvez viesse a ser mais forte cabo eleitoral de um Lula em (absurdo) terceiro mandato do que Dilma. Um Dutra pela culatra? How tru you tru, Truman? Dilma pode trazer um Aécio desses como efeito. Aécio, que não foi militante de esquerda (embora sua irmã, que o foi, tenha fama de ser a capacidade gerencial do mineiro encarnada).
Ou, o que seria melhor, ima configuração surpreendente e mais afeita ao que sonho para o Brasil. Ou será que a sobrevida de Lula se revelará mais longa do que a de Perón? Não creio. Antônio Risério disse em entrevista que estou mais para Lula do que deixo transparecer. Embora eu tenha minha versão mui heterodoxa do culto a Lula, talvez Risério quisesse se referir não aos aspectos sebastianistas que alardeio mas à constatação da modernidade de Lula, justo a característica que o afastaria de ser o demagogo que ele tem se mostrado no palanque de Dilma.
Caetano Veloso.
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