Fevereiro outra vez (16/11/2011)

Vi Mart'nália na noite do réveillon em Fortaleza e a revi em Salvador na Concha Acústica. É uma força do Espírito essa pessoa. Lá, com um pé quebrado, ela criou situações de danças improváveis, samba heterodoxo, o brilho de uma muleta metálica compondo com a boca que sorri para além da largura do rosto desenhos bizarros - e funcionando como banqueta eventual sobre pratos e couros. Tudo isso em relação de necessidade com a música da voz. Aqui, em ambiente a princípio mais calmo (e ela já sem muleta), a nobreza timbrística criada pela(s) voz(es) e pelo grupo de músicos ressaltava. Uma versão do "Zumbi" de Jorge Ben abre a noite com percussão solene. Tudo é bonito. Mas o samba do crioulo doido (o único que mereceria esse nome, mas com todos os termos tomados em sentido positivo, sem a graça sem-graça da piada proto-racista de Sérgio Porto) logo faz a sua aparição desestabilizante e inspiradora. O carnaval começa. Mart'nália é uma anciã da ala das baianas, um velho sambista, uma garota atraente, um morador de rua. Tudo ao mesmo tempo e sempre verdade. Suas irmãs cantam bem, sua sobrinha é a síntese de todas as passistas bonitas que já desfilaram pela Rio Branco, pela Presidente Vargas, pela Sapucaí.

Me dizem que chamei Sérgio Buarque de avô (em vez de  pai) da ministra Ana de Hollanda. Deve ser que tou gagá. Velho não deve escrever com pressa. Ou terei deixado escapar que tinha, por esses dias, Luísa, Lelê e Silvinha (as filhas de Chico) no pensamento? São pessoas em quem penso muito sempre. Mas agora especialmente, por alguma razão. 

Saiu o segundo número da revista "Fevereiro" (www.revistafevereiro.com), com reflexões sobre a eleição de Dilma que me lavaram a alma: Ruy Fausto me mostra que não devo aceitar ser reduzido ao maluco politicamente ilegível que meus amigos esquerdinhas me dizem - com risos condescendentes ou com o mero silêncio - que sou. Nem o falsário que figuras da extrema direita descrevem. Minha decisão de votar em Marina no primeiro turno e meu júbilo por o PT ter tido que ir ao segundo turno ganham sentido. Meu horror aos textos (e múltiplas entrevistas à "Caros Amigos") de Marilena Chauí tentando defender os mensaleiros e amordaçar a mídia, idem. Meu nojo de certas declarações de Marco Aurélio Garcia, ibidem. Há também um texto muito ilustrativo sobre a revolução (ou golpe de estado?) de outubro de 1917 na Rússia. E uma entrevista com Claude Lefort em que a resposta sobre o 11 de setembro em Nova York se dirige à minha inteligência (em geral os comentários sobre esse assunto me parecem simples maluquices - venham eles dos que acham que o ataque às Torres Gêmeas foi um engodo produzido pelos próprios americanos, venham dos que o aplaudem, venham dos que apoiaram a entrada de Bush no Iraque).

Já é carnaval, cidade. Não vi ainda ensaios do Cortejo Afro, do Olodum ou do Brown. Nem fui ouvir Gerônimo na escadaria do Passo. Mas meu filho Tom me animou a ver Psirico (ele é fã do grupo de neopagode quase tanto quanto eu). A percussão, as danças, os riffs de chula e as interrupções de Marcio Vítor criam um ambiente de soltura incomparável. Valeu a pena ir até a Paralela no meio da noite. Fiquei irado foi por não poder ver o Cascadura. Sempre sonhei em ouvir Fábio cantando ao vivo (nos discos ele é um cantor de rock genial). Vi uma nota do jornal que dizia que a banda se apresentaria, mas justo no dia me foi impossível ir.

Conversei com Clarindo, o elegante dono da Cantina da Lua. Foi ele quem me levou a escrever o artigo sobre o Pelourinho sob Jaques Wagner e Marcio Meireles. "O Pelourinho é o coração da cidade, e as artérias de acesso estão entupidas." Petista, feliz com a eleição de Dilma, figura popular da cidade há décadas, falante de português corretíssimo, Clarindo continua achando que há má vontade com a recuperação do Pelô por implicância com ACM. Fui ao Recife e fiquei com inveja. Sente-se quando há bom governo. Salvador tem aspectos desesperantes. Wagner é homem direito, e Fátima é uma grande mulher. Todos torcemos para que seu segundo mandato mostre mais saúde pública. 

O Museu de Arte Moderna da Bahia é um bom exemplo do que deve acontecer. Não sei nem quero saber se há atrito ou ciúme entre Heitor Reis (ex-diretor do museu) e Solange Farkas (atual diretora). Esta está mostrando que trabalhar sério e aproveitar o que de vital Heitor deixou é o que importa. A exposição sobre Beuys é linda, e o tratamento do local dá o sentido de autorrespeito de que a cidade precisa. A energia da Bahia moderna (que tem os convidados Lina Bardi e Eros Martim Gonçalves - além dos locais João Gilberto, Glauber e Raul - na semente e a axé music na galharia) não pode restringir-se às moradas em condomínios fechados ao longo do litoral norte (entrando por muitos municípios sem nem se dar conta). O Rio é de maio, a Bahia é de janeiro, mas é em fevereiro que a gente sente o que significa quando se une. É Curitiba e Palmas, Belém e Florianópolis, Natal e Cuiabá - tudo sob a unidade que nos deixou Pedro II. Com Sampa, Rio, Bahia, Recife e Porto Alegre mantendo o hábito de dar o tom. Os tons. Carnaval é coisa séria para nós. Mesmo que seja para os que querem afastar-se dele. Ou para os que o têm como sintoma suspeito. 

Vi "Além da vida" no Glauber Rocha. Matt Damon parece o Nelson Motta. Clint Eastwood se esbalda em sentimentalismo e sadismo - com curtos flashes desfocados de "Nosso Lar".

Caetano Veloso. 

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