Gerações (23/05/2010)
Os dois primeiros artigos que Felipe Hirsch escreveu aqui neste novo espaço (axé, Xexéo) me tocaram. Um sobre Malcolm McLaren, o outro sobre Morrissey. Claro que foi porque tratavam de música popular. Nos meus próprios textos, não me animava a tocar nesse assunto. Preferi mostrar um aspecto de como vejo a política, contando como algo aparentemente sem peso como a reforma do Largo da Ordem me sugeriu tarefas imensas; e ilustrar (com uma observação sobre a recepção do filme "Avatar') como reajo a investidas teóricas. Não tenho credenciais para falar, seja de política, seja de teoria. Mas quem tem coluna em jornal tem direito a falar de tudo. Tanto é assim que, tendo O GLOBO me convidado - e tendo a "Folha de S. Paulo" feito a mesma coisa apenas alguns dias depois -, respondi a ambos que só se fosse por muito dinheiro (isso quer dizer "não"). Um argumento de Paula Lavigne me decidiu: "Você vive falando demais; se tiver uma coluna, pode falar de tudo, gasta ali." As companhias - realmente ilustres - já eram uma motivação. Aceitei o convite que veio primeiro.
Pensei que não escreveria sobre música tão cedo. Talvez nunca: há sempre o risco de você usar uma coluna para se defender criticamente. Tou fora. Mas os artigos de Felipe me chamam no meio da noite, me dão bom-dia quando tento levantar com dor no sacro. É que, neles, o gosto pessoal revela aspectos históricos e geográficos relevantes - e, sobretudo, marcas distintivas de uma geração. Senti necessidade de que um artigo meu soasse como se fosse a minha geração dialogando com a dele.
Ao ouvir João Gilberto, tive uma iluminação um trilhão de vezes mais intensa do que a que vim a ter diante do Largo da Ordem. Mas ela não me levaria para a música necessariamente: me traria para a página de um jornal, para trás de uma câmera, de uma cátedra. O que me deu a ilusão de que eu poderia fazer algo relevante no mundo musical foi a reavaliação do rock que veio com os Beatles. Não virei um beatlemaníaco. Vi antes nos ecos audíveis em Roberto e Erasmo a força histórica a que minha sensibilidade não tinha aderido em primeira instância. Quando ouvi The Smiths pela primeira vez, quando se dizia que eles se negavam a gravar clipes, senti que o som de guitarras sem distorção nascia de uma espécie de liberdade - e fiquei fascinado pelas melodias obsessivas, em que o vaivém entre a terça maior e a quinta reaparecia sempre. Isso era hipnotizante na voz de Morrissey, com eventuais desafinações "para cima" e uma tristeza que ficava mais intensa por fingir que era fingida. Pouco depois, vi um clipe deles na TV. Morrissey, contorcendo-se como um São Sebastião feio e de topete, me causou curiosidade, um certo desgosto (pelo maneirismo antialegria, que dizia: eu sou o oposto de Mick Jagger) e, finalmente, confiança: eu vira tudo o que descrevi, mas tudo era real no cara - e realmente novo.
Vi-o ao vivo, anos depois, naquele lugar da Barra que hoje se chama Citibank Hall. Um tanto gordo, seu torso em contorções imaginadas para enfeitiçar Mishima me parecia quase asqueroso. Um público não muito grande fazia questão de demonstrar adoração. Mas as melodias hipnóticas estavam lá - e em mim, espontaneamente, a mesma confiança.
Sou um cara a quem o ar de jazz-fusion que espantou os rockmaníacos para longe de Sting nunca assustou. Portanto, não estava pronto para idolatrar os Smiths a ponto de ter prazer profundo diante de um Morrissey mal requentado. Mas o texto de Felipe me fez lembrar que, mesmo então, de dentro de minha confiança íntima, eu entendia que a geração que o adora tem razões para isso. E pensei na ligação direta dos brasileiros do Sul com o rock anglo-saxão (Rock'n'Raul: a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul): vejo Felipe adolescente aos pés de Morrissey naquele cubículo em Curitiba.
Quanto a McLaren, sou um fã do punk desde os anos 70. E sempre gostei mais dos Sex Pistols do que do Clash: os Pistols eram mais João Gilberto. Numa excursão europeia, vi um documentário em que John Lydon, com aquele sotaque cockney, dizia que McLaren não inventara nada. Admitir que a banda inaugural do movimento punk foi desenhada numa butique ainda é assunto controverso. Hirsch, íntimo dos detalhes da troca entre McLaren e os malucos, aponta para a inutilidade da discussão. Até hoje, se ouço os Pistols, sinto que aquilo é o que é e o que deve ser. Mas não lembro de querer emular nada do que eles fizeram. Já dos Smiths, incontrolavelmente, copiei o jogo melódico entre terças e quintas em pelo menos "José" e "Eu sou neguinha?".
Vi, em Londres, o surgimento dos skinheads. Nós os temíamos. Morrissey louvando-os enrolado na bandeira inglesa me assusta como uma ameaça real. O racismo mais daninho é o que grassa entre os trabalhadores. Estamos habituados, aqui, a denunciar o fato de que pretos e brancos convivem nas classes baixas, mas as elites discriminam. Não conhecemos o horror que é o racismo popular. Gente disputando emprego a partir de um crivo racial é o começo do inferno. O obreirismo de Morrissey faz a gente temer o sotaque de Lydon (sem falar no nome do Joy Division): são lembretes do fascínio que a ultradireita tem exercido sobre o rock. Não tenho idade para ter tido a vida salva pelas canções de Morrissey. A voz dentro da minha cabeça que me faz sorrir é a de João Gilberto. Mas me comove que Felipe evoque a luz daquele inglês esquisito com exemplos de versos tão fortes.