Kassin, Gil, Lessig (27/02/2011)

As primeiras palavras que Kassin me disse quando começamos a falar (por e-mail) em direitos autorais foram: “A ideia de a sociedade arrecadadora ser vilã é errada.” Depois ele apresentou uma proposta: “Se os grandes provedores de internet fossem responsáveis pelo pagamento de direitos autorais, e todos os fonogramas fossem gratuitos para os usuários, não haveria necessidade de download ilegal. Por exemplo, quando vamos ao cinema ou assistimos à TV a cabo, existe uma parte do que pagamos pelo ingresso (no primeiro caso) ou por mês (no segundo) que é reservada ao direito autoral. Se na sua assinatura, digamos, do Terra, em vez de pagar R$ 35 por mês o usuário pagasse R$ 40 — e R$ 5 fossem para direito autoral —, qualquer música poderia ser disponibilizada livremente. Com o código de ISRC, que todas as gravações legais exigem, haveria como mapear o que foi baixado, por amostragem. Claro, algumas pessoas baixam mais música que outras. Algumas não baixam. Poderia haver uma arrecadação digital. Isso urge. A lei não prevê nada. Isso é mais urgente do que a discussão sobre o CC (Creative Commons). O cerne da questão é que o CC é a brecha na lei, ele é necessário, pois não há lei para isso.”

É só o começo de uma conversa. Mas pode dar ao leigo que apenas acompanha a discussão um gostinho de liberdade de pensamento. A mim, me dá logo o ensejo de comentar que, lendo pedaços do debate sobre o assunto na França e na Espanha (onde novas leis relativas a restrições na internet chegaram ao Legislativo), fiquei impressionado com a ausência de menção ao Creative Commons. Aqui no Brasil, por alguma razão (talvez seja uma ótima razão), esse modelo de licença ficou no centro das atenções. Por outro lado, de todas as coisas que li numa entrevista de Gil, a que mais me deixa embatucado é a assertiva de que o autor deveria preferir decidir sozinho sobre como quer, em cada caso, licenciar suas obras. Ora, se é assim, ele terá que, por conta própria, rastrear os caminhos dos proventos advindos dos direitos. Sem sociedades nem Ecads que intermedeiem. Será isso confortável? E mesmo viável? Kassin acha que as sociedades são uma conquista dos autores (“Corrupção há em toda parte, mas isso não anula a democracia”). Não vejo como não concordar com Kassin a esse respeito. “O errado”, ele diz, “é a não previsão da inclusão digital como a grande forma de distribuição de música hoje”.

O ministério Gil trouxe o assunto para dentro da esfera oficial. Não preciso repetir aqui que há quem chie só de ouvir que essa atenção dada ao assunto é mérito e não demérito do Gil ministro. Podem chiar, mas é. O que não quer dizer que todas as consequências daí surgidas sejam necessariamente desejáveis. Não precisamos pleitear o fim do Ecad nem denegrir a ideia de sociedade arrecadadora para admirar o tom do MinC sob Gil (e Juca, que ele deixou em seu lugar). Mas tentar conversar assim como tento aqui não parece resultar em algo muito palatável ou digerível: neguinho quer que você fique com um lado definido ou contra ele. Meu teimoso e gozado centrismo causa irritação alérgica em várias áreas. Mas teimoso é.

A “Folha de S. Paulo” — instigada pelos artigos que publico no GLOBO — fez uma matéria caricata em que Gil e eu aparecemos em fotografias escolhidas para que eu pareça iracundo e ele, debochado. Dá-nos por compadres em duelo. Acho que era parte das celebrações dos 90 anos do jornal (que Jânio de Freitas diz que são 35). Um amigo, dilmista de primeira hora, me mandou parte de um debate na web em que a maioria, esquerdista como ele próprio, reprovava a presidente por ela ter ido à festa da “Folha” (e ainda falado na importância da liberdade de imprensa!). Meu amigo, no entanto, não concordava com seus debatedores: como eu, ele acha ótimo que Dilma tenha ido à Sala São Paulo naquela noite. Houve, entre os do contra, quem lembrasse que Lula se recusou a ir à comemoração dos 40 anos da “Veja”. De minha parcial parte (com orgulho estilístico pelo pleonasmo), gosto de Lula não ter ido àquele festejo quase tanto quanto de Dilma ter ido a esse. É que a “Veja” às vezes merece os xingamentos que lhe lançam (na campanha pela liberação do uso de arma de fogo, para citar um único exemplo, não restava nada de jornalismo: a publicação era um panfleto — mas eu sou suspeito pois odeio muitas coisas que “Veja” fez comigo e com colegas meus). A “Folha”, mesmo com a macaquice, está mais para o veículo pluralista e aberto ao contraditório que Jânio louva.

“A ‘Folha’ e eu” seria o título de uma canção mais gozada (talvez menos bela, embora nem tão menos misteriosa) do que a da “Lua” de Cassiano (“Quando olho no espelho / Estou ficando velho e acabado”…), mas “A ‘Veja’ e eu” não dá samba. Não sei que diabo tem ali naquela revista. A “Folha”, cumprindo um ditame que exige pouco dos que tratam de canção popular (só idiotas ignorantes leem sobre o assunto), cultivou por tempo demais um tom de iconoclastia presunçosa tipo tabloide de rock inglês. Lá, oscilo entre ser incensado por ajudá-los a livrar-nos do Brasil e rechaçado por pertencer a um Brasil que se recusa a ser medido pela régua gringa idealizada. Na alta rotatividade que o processo exige, jovens são moídos às pressas. O que assina a matéria referida é boa gente e leal amigo. Não seria ele a contribuir para que Gil e eu parecêssemos brigar por causa de Lawrence Lessig. Sem duelo. Vou correndo comprar o livro do Leoni.

Caetano Veloso.

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