Marcos zero (13/03/2011)

Conheci o carnaval do Rio antes do de Salvador. Passei todos os carnavais em Santo Amaro até o de 1956, quando vim para o Rio e fiquei um ano. Só vi o carnaval de Salvador em 1960. Foi uma iluminação. Conhecíamos os carnavais carioca e recifense das páginas de “O Cruzeiro”. Do de Salvador, ali tão pertinho, não sabíamos nada. Ver a Praça Castro Alves com trios elétricos, batucadas, afoxés, blocos de índio e escolas de samba — mas o som eletrificado dos trios dominando — me exaltou. Comecei naquele mesmo ano a dizer que o carnaval de Salvador era o melhor do Brasil. Não sei se algum dia parei de dizer isso, embora já não esteja nem de longe interessado em fazer comparações (nem precise mais compensar o ostracismo em que viveu por tantos anos um carnaval tão potente e original: desde os anos 70 o carnaval da Bahia entrou no mapa com uma força que pode ser medida pela reação medrosa que causou, como se sua energia ameaçasse esmagar a variedade de estilos com que se faz a festa nas diferentes cidades do país). Tudo o que se passou desde Dodô até o show de Ivete no Madison Square Garden é, para mim, tesouro cultural inestimável, digam o que disserem Aldir ou Risério. Quase todos os anos surge na rua de Salvador alguma coisa que, milagrosamente, nos pega a mim e a Gil juntos e nos faz chorar.

Passei alguns carnavais fora da Bahia. Faz poucos anos vim ao Rio para fugir do carnaval e, sem ir ao sambódromo, descobri, indo ver uma exposição no CCBB, que a Rio Branco estava de novo viva — e, de noite, saindo de um apart-hotel no Arpoador, que Ipanema e Leblon estavam como a Castro Alves. Chorei.

Passei um carnaval no Recife há ainda menos anos. Foi espetacular. As bandas de frevo e os blocos de maracatu, em Olinda ou na Rua do Bom Jesus, são de muito alto nível; os maracatus rurais, com aquelas roupas que parecem inspiradas em sci-fi japonesa, fascinam; o festival de MPB grátis em que se transforma a cidade dá coesão às multidões; a Noite dos Tambores Silenciosos bate fundo. Mas o Galo da Madrugada é que é carnaval de rua pós-trio elétrico. A multidão é infinita e é uma só. Arto Lindsay, americano-pernambucano que passara carnavais sempre em Salvador, ao ir finalmente ver o do Recife, sintetizou: “O carnaval baiano é Wall Street, o pernambucano é o Kremlin.” Mas o Galo da Madrugada subverte.

Domingo passado, fui à Sapucaí, sem ter planejado. Amei a Portela mais do que nunca. Sei que estava desfalcada, prejudicada, lacunar. Mas eu nunca a vi tão verdadeira. O rio (Rio) da cor do mar me convenceu e comoveu. E as baterias são sempre uma coisa tão elevada artisticamente que mesmo que a homenagem de Paulo Barros a Zé Mojica não tivesse sido tão deslumbrante, teria sempre valido a pena.

Na terça desfilei na Paraíso do Tuiuti. A Sapucaí fica vazia para o desfile do grupo B. Um número até grande de pessoas faz com que as imensas arquibancadas pareçam desertas. A foto de um setor com apenas um homem, sentado bem no meio, tirada por meu filho, mostra quão desolado parece o estranho logradouro. Mas a passagem das escolas não confirma esse clima. Um passista evolui de forma magistral, talvez melhor do que todos que já vi; a Tradição vem com uma ala de Nossas-Senhoras em estampas roxo e prata que é obra-prima; os músicos da Unidos de Padre Miguel são excelentes: um cavaquinho sofisticado e um sete cordas virtuoso. Quando a Tuiuti entrou, o dia já tinha nascido. As arquibancadas estavam ainda mais vazias. Mas a escola desfilou com alegria e garra. Eu brinquei tudo o que não tinha brincado neste carnaval. Foi como estar na Mangueira diante de um público entusiasmado. Entendi, de dentro, como os participantes da escola se sentem estimulados, mesmo com um plateia rarefeita: a multidão dos que desfilam enche os olhos e o coração. Não é tanto para serem vistos que os membros de uma escola de samba desfilam. Fazem-no para si mesmos, pela alegria de pertencer. Encantar a plateia é efeito colateral da demonstração sincera dessa alegria.

Depois do desfile o motorista da van que me trouxera não está no lugar. Há dificuldades que não chego a entender. Ivo Meireles, que foi quem fez a ponte entre mim e a Tuiuti, tenta resolver. O dia está claro mas a situação não. Depois de ter ficado acordado toda a noite e dançado no alto de um carro, perco a paciência e tomo um táxi para o Leblon. Apesar de ter razão, sinto um pouco de culpa por ter ficado um tanto nervoso. Durmo pouco. Acordo e leio artigos de Marisa Gandelman defendendo a lei de direito autoral existente. Penso que seus argumentos não foram suficientemente contestados. Releio o manifesto da “Terceira via” que Leoni me mandou e penso em subscrever. Afinal, o Mautner de Hermano e o meu são a mesmíssima pessoa. Eu, como o personagem que fala em “Eu sou neguinha?”, sou “totalmente terceiro sexo, totalmente terceiro mundo, terceiro milênio”. De noite fico cantando a “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” e me dou conta de quanto tempo faz que eu não penso nessa canção. Amei o carnaval do Rio (vi blocos e blocos no Leblon, além das idas à cidade). Senti saudades da Bahia (o que teria nos flagrado, a Gil e a mim, nos emocionando com aquela sempre surpreendente intensidade?). Sonhei com o Recife de Naná e Suassuna no Marco Zero.

Caetano Veloso.

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