Músicas (20/03/2011)

Ouvi na Rádio Roquette Pinto uma gravação de “Ladeira da preguiça” que me arrebatou. Era Rosa Passos. Nunca eu tinha achado essa canção tão bonita. E tenho sempre admirado Rosa grandemente mas talvez nunca a tenha amado tanto. São essas coisas que acontecem no meio da tarde, a gente no carro, os postos da Delfim Moreira e da Vieira Souto interrompendo de vez em quando a visão das areias, das águas e das pessoas com pouca roupa. A música pode fazer o mundo de repente te surpreender. Neguinho nem está ligado e, sem mais nem menos, vem uma Rosa Passos e dá um outro sentido às coisas.

Tenho me esforçado para não falar de música aqui. Mas é o centenário de Assis Valente e Santo Amaro programa eventos para o ano todo, a começar pelo dia 19, na Praça da Purificação, com um novo coreto que leva o nome do compositor. Será que Assis Valente pode ser chamado de santamarense? Bem, embora ele sempre dissesse que era “um baiano do Campo da Pólvora”, está provado que ele não nasceu em Salvador (onde fica a praça que tem esse nome), mas no então distrito de Terra Nova, no município de Santo Amaro da Purificação. O Campo da Pólvora era uma metáfora que ele se comprazia em usar. Na biografia que li faz anos, publicada pela Funarte (de cujo casal de autores não lembro o nome, mas não esqueço que eles, sem falar da homossexualidade de Assis, apresentam uma teoria espírita para a ocorrência desse “desvio” em quem quer que seja), diz-se que ele quando menino fugiu com um circo. Conta-me meu amigo Jorge Portugal, santamarense, que um irmão de Assis vive ainda em Terra Nova — e vai, aos 80, participar do início das celebrações na Praça da Purificação. Um outro amigo, Roberto Santana, este iraraense, repete muitas vezes que Assis nasceu em Irará: a área onde ele nasceu seria distrito desta cidade e não de Santo Amaro. Mas eu sou santamarense e acredito mais nos pesquisadores da Funarte — e, naturalmente, sinto que o cara que escreveu “Fez bobagem” e “Uva de caminhão” só pode ser de Santo Amaro. Na verdade, encontro alegria, honra e vaidade em ter nascido no mesmo município desse José.

João Gilberto disse, na sua talvez mais longa e generosa entrevista, dada ao jornalista soteropolitano Sílvio Lamenha, que “Assis Valente foi extraordinariamente musical em ‘Anoiteceu/ O sino gemeu…’”. Nessa entrevista, João louvava Caymmi e Ari, destacava a ainda novíssima “Se é tarde, me perdoa”, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli (autores geniais que ele nunca mais revisitou, seja em discos, seja em shows), escolhia “tudo de Orlando Silva” para exemplificar o que era bom na música brasileira, falava de uma cantora americana, casada com um grande maestro, cujo nome não lembro (alguém há de ter essa página do “Diário de Notícias” do início dos anos 1960), e aludia ao talento de Ciro Monteiro (a “angústia da influência” não pareceu ser a tônica dos garotos da bossa nova — como não o foi dos garotos da minha geração). Ouvi João Gilberto pela primeira vez em Santo Amaro, num banco da praça que fica atrás da prefeitura, em frente ao bar do preto Bubu, e me pareceu que Santo Amaro fosse o lugar adequado para Assis Valente ter nascido.

Rosa Passos também é baiana (como João, Assis Caymmi), mas Pedro Luís é carioca e bem carioca: uma faixa de disco seu, também na Roquette Pinto, me entusiasmou. Não aprendi o título nem trechos da letra, mas o impacto foi grande (não é a primeira vez que A Parede me causa impacto). Incrível também foi Diogo Nogueira cantando “Pra que discutir com madame?”. É gostoso ouvir alguém cantar bem esse samba sem explicitar nenhuma consciência da gravação de João Gilberto. A música fica nova de um jeito intrigante. A versão de João é um dos momentos mais altos da canção brasileira. Ali tudo acontece: um processo artístico complexo se dá como se fosse um evento natural, o nascimento de uma pedra, a formação de um redemoinho com folhas meio secas (não secas de todo), a condensação de uma gota de orvalho com base prateada — e critica-se a História do Brasil, a história da música, destrói-se a fantasia de Odete Roitman que Paulo Francis usou nos seus últimos anos. Mas ouvir essa canção cantada como simplesmente mais um samba bom interpretado por um ótimo cantor é uma espécie de milagre. O velho e o novo ficam novos e velhos de novo.

Leo Cavalcanti é paulista (com avós baianos e paraenses). Sua exuberante e minuciosa musicalidade mereceu elogios superlativos quando, no fim do ano passado, saiu seu primeiro CD. Mas vê-lo ao vivo é que foi experimentar a evidência de um talento genuíno. A Roquette tocou uma faixa do seu disco e, por eu ter visto aqueles movimentos de corpo no palco, me aninhei mais nas camadas de filamentos sonoros que eu apenas tinha observado quando ouvi o CD. Os gestos de Leo são musicais e verdadeiros do ponto de vista dramático. Ele não merece apenas que seus avós paternos tenham nascido no mesmo estado em que Assis Valente nasceu.

São coisas que casualmente ouvi hoje. Deve haver Rosa e A Parede e Leo no YouTube. Mas eu ouvi, como um velho de minha geração, no rádio do carro. Acho que assino o manifesto da terceira via do Leoni. A internet parece mais uma lixeira: pode-se encontrar coisa boa, procurando bem, mas o lixo predomina. Pior que a internet é colunista social de fofoca lançar veneno em jornalão e isso pegar na rede e no mar de lama. Já Maria Bethânia é uma deusa.

Caetano Veloso. 

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