Narciso acha feio (02/01/2011)
Doce ilusão crer que eu leria tudo o que escrevi nesta coluna desde que, por receber o convite via Antonia Pellegrino e ser aconselhado por Paula Lavigne (além do gosto teimoso de aparecer em publicação carioca), aceitei fazer o que evitava havia anos: escrever regularmente em jornal. (Se engana quem pensa que sou um completo neófito: escrevi para o "Pasquim" por mais tempo do que estou no GLOBO, e fui crítico de cinema no "Archote" e do "Diário de Notícias".) Não li nada. Prometi sinceramente fazê-lo, mas a vida é enrolada. Vim para Salvador e logo queria, em vez de criticar tudo o que escrevi aqui, rever só o que disse sobre o Pelourinho e o governo petista. Quero bem a todos os envolvidos e sou um típico brasileiro cordial de Sérgio Buarque, parecido com os argentinos que Borges contrasta com os americanos do Norte num artigo dos anos 30.
Planejei conversar outra vez com Clarindo, dono da Cantina da Lua, que foi quem, involuntariamente, me induziu a escrever meu artigo de estreia. Mas uma gripe terrível me prendeu em casa. Janeiro vai entrar e nem tomei sol. Tenho show para fazer em Fortaleza e não sei quão mal poderei cantar. Não tive febre. No voo do Rio para aqui minha cabeça fechou-se num cofre onde os sons e as percepções do espaço não acham por onde entrar. Fui a Cabuçu ver minha mãe na noite de Natal, com meus filhos e meus netos, sem saber se aguentaria. Passei o resto dos dias lutando (com água, repouso e, finalmente, antibiótico) contra essa gripe. Ontem à noite me dei conta de que teria de escrever hoje: amanhã voo para Fortaleza, e o prazo nas festas é mais apertado. Se eu fosse cronista, esta seria minha primeira crônica sobre a falta de assunto, um clássico obrigatório no gênero.
Mas não sinto este texto muito diferente dos que tenho escrito. Nunca releio meus artigos. Lembro que todos parecem compostos sem uma decisão temática prévia. São erráticos. A única coisa que posso prometer a quem me leia é que tentarei ser mais "focado" no ano que vem. E ele já vem. Tenho de aprender rápido. A vida não deixa. Na sala de espera da emergência um senhor idoso explicava muito triste e firme ao atendente por que não tinha documentos da filha que fora assaltada: os ladrões os tinha levado, mas ele tinha algo (uma certidão) que provava que ela era ela. Eu tenho lido sobre o aumento da criminalidade em Salvador (os jornais vêm dizendo há anos que o crime, com homicídios como centro de pesquisas, vem caindo consistentemente no Rio e, sobretudo, em São Paulo - e há avanços da segurança pública em Belo Horizonte e no Recife: Salvador vem assistindo a uma escalada da violência). O médico me pediu exames do tórax e da face. Tudo bem. Antibiótico. Corticoide. Eu, fraco, pensando naquele senhor amargurado e digno cuja filha sofrera uma agressão - e nas estatísticas.
Ontem à noite, quis mostrar a cidade ao amigo de meu filho de 13 anos. Farol da Barra (com um carro da polícia com as luzes piscando e os faróis acesos parado à entrada, uma mulher policial militar muito amável nos dizendo que podíamos sim arrodear o forte, contanto que não pisássemos na grama: ela parecia em dúvida quanto a tudo isso). Pelourinho numa terça (eu tinha me esquecido de que era terça) é carnaval. Terminamos indo tentar um suco no largo da Mariquita, no Rio Vermelho. Uma menina que parecia ter 8 anos (ela tinha 12) vendia balas numa caixinha. Com o dinheiro que ganhara, sentou-se sozinha na mesa ao lado e pediu um açaí. Puxamos conversa. Mora na Suburbana, extremo oposto da cidade. Vem todos os dias às 4 da tarde. Volta de ônibus às duas da manhã, para na Estação da Lapa, espera o das 3 e meia. Contou vários assassinatos de bandidos por policiais que presenciou, com muita objetividade e sem drama. Vive com a mãe e mais oito irmãs. A mais nova tem 4 meses. A mais velha, de 15, tem um filho de 9 meses. Uma freguesa passa para o banheiro e diz à menina que eu sou cantor famoso. Não nego. Na volta, a freguesa responde com "Sozinho" e "Lisbela e o prisioneiro" à pergunta sobre o que é que eu canto. A menina diz que em casa tem o CD de "Lisbela". Só põe para tocar quando a mãe está triste. A mãe tem 32 anos ("Ela é muito mais bonita do que eu"). Português excelente. "Atrás da minha casa tem uma boca de fumo. Uma vez eles mataram um dentro da minha casa. Tem que melhorar. O rapaz que lhe pediu dinheiro estava mentindo: ele vai comprar é droga. A culpa não é tanto de quem toma droga: é mais de quem vende droga".
Eu tinha batido na frente de um carro ao manobrar para estacionar. O dono veio ver e, pouca coisa, não queria que eu me obrigasse a nada. Mas insisti em que me desse seu número para eu ligar hoje. Pus a tira mínima de papel com o número que ele me deu no bolso. Acordei pensando nisso. Ele se chama Isac Toucinho. Meu filho e eu ficamos sem saber se Toucinho seria sobrenome ou um apelido. O rapaz poderia ser meu colega. Ornavam suas orelhas brincos cujas gemas eram o vazio rodeado por aros perfeitamente circulares. Não achei o papel hoje. Fiquei irado. Meu filho também. Não havia como perder. Não entendemos. De modo que não dá para dizer quão boa achei a entrevista de Lula, a carta psicografada de Roosevelt por Gaspari e a crítica da capilarização da publicidade do governo Lula (que é marota e vira chantagem) por Fernando Rodrigues, na "Folha de S. Paulo". Muito menos para tentar me redimir com autorreleituras.
Caetano Veloso.
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