Nerds refinados (20/02/2011)
Quando eu escrevia posts para o blog Obra em Progresso (essa tradução-piada para “trabalho em andamento” ou simplesmente “homens trabalhando”), sentia a intensidade da reação dos internautas que o visitavam e as repercussões de ira ou interesse em outros blogs e sites, mas pouca ou nenhuma reação das pessoas nas ruas. Muitos dos que enviavam comments para o blog se tornaram meus amigos aqui fora. Troco e-mails com eles e eventualmente os encontro em carne e osso. Muito bom. Mas é diferente escrever no GLOBO. Vou estacionar no Leblon para ir ao analista e uma senhora comenta que não imaginava que eu fosse capaz de escrever prosa com tanta desenvoltura. A avaliação me parece otimista demais e, se por um lado me faz pensar em quão alheia essa senhora esteve à existência do blog, por outro me impõe a evidência de que ela nem sabe que escrevi o livro “Verdade tropical”.
Parece que a leitura de jornais é hábito de uma tribo que conversa nas ruas — e não necessariamente lê livros que alguém como eu porventura escreva. Já a tribo que acompanha blogs não parece estar nas ruas dando sopa para conversar. O exemplo da senhora no Leblon é um entre mil. Nos aeroportos, nas salas de espera de consultórios médicos, na fila do cinema, sempre há alguém para comentar comigo, seja o artigo do último domingo, seja a série de artigos que venho publicando aqui. Como tenho tentado mediar a discussão sobre a questão dos direitos na era da internet, abordam-me para falar do assunto. O gozado é que quando eu escrevia na internet ninguém aparecia para dizer que tinha lido, ou ao menos para demonstrar que sabia que eu mantinha um blog. Os que me leem no jornal falam até de suas relações com a web. Os que me liam na web nunca estavam nesses estacionamentos, salas ou filas. Isso me leva a considerar o fato de que Julian Assange passou a ser assunto de discussão em ônibus, esquinas e mesas de bar só depois que a imprensa divulgou os vazamentos que seu WikiLeaks vinha derramando na rede.
Sou um velho que tem dificuldade de reter o que lê na tela do computador. E uma muito menor propensão a crer no que lê ali do que no que lê impresso em papel. Talvez essas pessoas que comentam meus textos do GLOBO sejam, como eu, membros de uma espécie em extinção. Mas também é possível que os fatos que se passam na internet tenham uma vida restrita ao mundo de nossa relação com essa ferramenta. As interações entre os cidadãos que, na rua, trocam comentários sobre notícias de jornal e aqueles que vivem no mundo virtual a maior parte do tempo (ou os mais intensos dos seus momentos) talvez estejam mais bem traduzidas na Praça Tahrir. Mas o hábito de promover encontros socialmente relevantes através dos twitters e facebooks não se restringe aos últimos acontecimentos no mundo muçulmano. Da eleição de Barack Obama às promoções do grupo Queremos, que trouxe o Vampire Weekend para o Circo Voador, o papel da internet na organização de movimentações off-line tem se mostrado notável. Ainda assim, as relações do mundo aqui de fora com o de lá de dentro da rede estão por ser entendidas de modo satisfatório. Na verdade, parecem longe de sê-lo.
Já tivemos várias mortes do livro, do disco, do cinema. Este ia matar o teatro e ser assassinado pela TV. A internet criou a “nova economia” que se provou, depois do primeiro surto de euforia, uma bolha dessas que, quando explodem, levam alguns para perto do suicídio. Mas essa malha aparentemente incontrolável de comunicação entre computadores individuais que nasceu no Pentágono (não deveríamos manter tão tenazmente no esquecimento o fato de que a internet nasceu no Pentágono) não poderia simplesmente ter sua importância abalada por um primeiro erro de cálculo. Na sua segunda onda, a internet (que em inglês sempre se escreve com a inicial maiúscula) diz como veio para ficar e sugere admiráveis mundos novos. São mundos que fascinam e assombram.
Em meio a essas desorganizadas reflexões é que procuro pensar a questão dos direitos autorais no mundo virtual, com a ilusão (também no sentido espanhol de desejo, anelo) de mediar a discussão que envolve tantos colegas e amigos. Quando escrevi que a internet e seu exército de internautas e blogueiros que se virem para introjetar as nossas leis, as leis que vigem off-line, me alegrei por fazer tão simplista exortação: os amantes da web, os jovens que querem divulgar suas criações sem pensar em organizações intermediárias, os neo-rousseauístas cibernéticos que veem essas hordas como bons selvagens, os que se fascinam com a criação coletiva e a “morte do autor” devem se esforçar para acolher os direitos humanos (sim, os direitos dos indivíduos humanos e dos grupos humanos) nos seus planos. Haverá quem me diga que iniciativas como o Creative Commons são justamente isso. Vamos ver. Até aqui, elas têm se esforçado mais para insinuar aos membros das espécies em extinção, aqueles que leem jornal de papel e falam sobre isso nas ruas, que seus direitos são suspeitos. Bem, talvez sejam (e quem comenta artigos de jornal nas ruas muitas vezes os lê na tela do laptop: para muitos já não faz falta o papel, o importante é o status do jornal e a assinatura do articulista). Cada um de nós deve encarar as dificuldades dessa transição com realismo. Espero que pessoas qualificadas — e não apenas ignorantes como eu — se disponham a enfrentar o desafio. Nerds refinados contribuirão.
Caetano Veloso.
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