Nova idade. (15/05/2011)

Glauber Guimarães (que é roqueiro e ganhou esse prenome por seu pai, também baiano, ser admirador do outro Glauber, aquele que apareceu aqui no domingo passado) me conta por e-mail que o professor de cinema André Setaro escreveu na net: “Casamos um príncipe, beatificamos um papa, fizemos uma cruzada, matamos um mouro: eis a Idade Média.” Natalia Mendez Arguinteguy, bailarina e atriz argentina, comentou que essa história de “nova Idade Média” só é boa porque pode significar promessa de um novo Renascimento. Corri para ler algo do livro de Parag Khanna (eu só tinha olhado parte da entrevista dele que tinha saído no jornal) e logo me dei conta de que, desde o subtítulo, essa é a ideia. Lendo o primeiro capítulo, reconheci o mundo em que vivemos. A Terra em transe. Algo que está mais contido no título de “Idade da Terra” do que no próprio filme. No livro do americano de origem indiana, a lembrança da frase de Hegel sobre “o Estado ser uma obra de arte: não há dois Estados iguais”. O Brasil aparecendo, junto aos Estados Unidos, como Estado com nacionalidade forte. Estou estimulado a ler os outros capítulos — e a voltar ao assunto aqui. E grato a Glauber, a André Setaro, a Natalia Mendez.

Filmes de Glauber Rocha, conversas com Jorge Mautner, lembranças de Rogério Duarte, som dos Mutantes e de Duprat, coisas assim soam mais lúcidas do que nossos arrazoados. Ouço falar em Nova Idade Média desde pelo menos os anos 1980. Há a expressão numa canção de Cazuza (cujas composições, aliás, também parecem mais perspicazes do que centenas de sérias construções). Ou seja: é uma velha novidade. No entanto, no modo como Khanna a retoma, a expressão ganha significado e atualidade. Vamos ver. É continuar lendo, olhar o mundo e observar os novos acontecimentos. Domingo tem mais.

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Há uma bolha ideológica que cresce ao redor da internet. Deve estourar como a econômica que a rodeou em sua primeira arrancada. Mas nada disso impedirá as mudanças reais que esse brinquedinho do Pentágono causou, causa e causará em nossas vidas.

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Ainda não vi “Vento leste”, o filme de Godard do início dos anos 1970. Tenho uma cópia em VHS, mas meu DVD player não está ligado de modo a eu poder ver coisas em VHS. Vi apenas uma cena, não numa telinha de TV mas numa imensa tela ao ar livre, no Circo Massimo, em Roma, creio que em 1980. Era parte de uma série de shows organizados por Gianni Amico, aquele grande amante italiano da cultura brasileira, sob o nome “Bahia de todos os sambas”, em que nos apresentamos, Caymmi, João Gilberto, Gilberto Gil, Gal Costa, Nana Caymmi, Moraes Moreira, Naná Vasconcellos, Tom Zé, Paulinho Boca de Cantor, Walter Queiroz, o trio elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar, Batatinha e eu. No filme de Godard (ou melhor, do Grupo Dziga Vertov, onde ele divide a direção com Jean-Pierre Gorin e tem a colaboração de Daniel Cohn-Bendit no roteiro) via-se Glauber Rocha ao lado de uma moça que carregava uma câmera na costas, como uma mochila (ou será que ela estaria grávida e minha memória me prega uma peça?), em frente a uma estrada que se bifurca. Uma voz lhe pergunta: “Para onde vai o cinema do Terceiro Mundo?” — e ele, em vez de responder com alguma frase explicativa, começa a cantar o refrão de “Divino maravilhoso”, canção que Gil e eu fizemos para Gal cantar, inspirada no bordão de Guilherme Araújo. “Atenção: tudo é perigoso. Tudo é divino-maravilhoso . ” Meu amigo Eduardo (de Ribeirão Preto) me arranjou a cópia. Sou tão lento que ainda não armei as coisas no meu player para vê-la. Mas, em compensação, finalmente vi o “King Lear” de Godard. É impressionante como a gente vê o que o próprio conta num documentário que vi sobre a exposição com que o Centre Pompidou quis brindá-lo: que o cineasta deve antes de tudo tomar dinheiro do produtor. Há muitos filmes que ele fez nas últimas décadas que parecem mesmo o trabalho de montagem (hoje dita “edição”) feito a partir de muitos planos fechados (exceto imagens abertas do mar) tomados em poucos dias. O tema pode ser grandioso: o rei Lear, a Virgem Maria, Carmen. Mas a peça final é quase sempre uma espécie de colagem, por vezes intensamente poética, em que as referências ao tema que chega ao título são contingentes. Tem-se uma sensação de desperdício. Depois de plenitude. Depois de desperdício outra vez. As imagens em preto e branco de “Éloge de l’amour” são magníficas: vê-se ali o amor ao cinema dando tempo a si mesmo (e a chegada das imagens em cores ultrassaturadas não desmente isso, ao contrário). Mas muitas vezes o amor profundo pelo cinema parece rarefeito — e não sabemos se deixamos nosso coração ser arrebatado pelos momentos de inspiração na mixagem de imagens, palavras e sons. De repente isso se torna irresistível, incontornável, inevitável — e perdoamos tudo. O fato é que seguimos lhe devendo.

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Gosto de “The brown bunny” tanto quanto Godard. A um jornalista americano que, surpreso com o entusiasmo do suíço-francês pelo filme de Vincent Gallo, lhe pergunta “Mas você não o acha demasiado narcisista?”, Godard respondeu: “E daí?

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De fato há na série “Família Soprano” melhor cinema do que na maioria dos filmes americanos que vão para a telona. Mas há algo em Gallo e Sofia Coppola que vai além disso. E nos filmes mais esteticistas de Gus Van Sant. Com isso nos afastamos demais de Glauber Rocha aqui. Mas não por muito tempo. Ele voltará com Kahnna e rock no domingo que vem.

Caetano Veloso.

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