Onda nova (13/06/2010)

Lendo o livro de Patti Smith sobre seu caso amoroso com Robert Mapplethorpe, encontrei-a perguntando-se por que não tinha gostado muito de "Trash", famoso filme de Andy Warhol: "Talvez", diz ela, "porque o filme não fosse suficientemente francês". Ela, como eu, gostava de Nouvelle Vague. Às vezes vestia-se como Ana Karina em "Bande à part". Eu pensei a mesma coisa quando, em Londres, entre 1969 e 1972, vi "Trash" e "Flesh": sou demasiado amante de "Vivre sa vie" para entusiasmar-me com o cinema underground e Wahrol. Nessa perspectiva é que me apaixonei pelo underground brasileiro de Sganzerla e Bressane: "O bandido da luz vermelha" é godardiano até o tutano - e "Matou a família e foi ao cinema" (um dos filmes mais belos que há) tem o lirismo e o amor pela história do cinema que se vê nos franceses mas não em Wahrol.

Patti conta que Mapplethorpe lhe disse na noite de ano-novo da passagem de 1969 para 1970: "Esta será a nossa década". Todos sabemos que assim foi. Mas eu, totalmente dos 60 (tinha feito o essencial do meu trabalho entre 67 e 69), achei os anos 70 muito sem vida. Ruy Castro que me perdoe, mas sua ideia de que os verdadeiros 60 se deram nos 70 não faz sentido para mim. Essa falta de vida eu a via inclusive em Patti e nas fotos em preto e branco da capa do seu primeiro disco. Achei que pareciam imagens da Nouvelle Vague provincianamente cultuadas com certo atraso. São as imagens que lançaram o que veio a se chamar new wave. Já não as julgo assim: isso foi no começo dos 70.

Glauber me dizia que Godard tem uma personalidade semelhante à de João Gilberto. A julgar pelas entrevistas que aparecem no documentário sobre Godard e Tuffaut que está em exibição no Rio, ele ainda não tinha esse ar de verdadeiro gênio que João já apresentava pelo menos desde os 27, quando Tom Jobim o caracterizou como "um baiano bossa-nova", naquele texto incrível da contracapa do "Chega de Saudade". O jovem Godard demonstra compromisso com ideias vigentes e tenta soar sensato. Seus filmes, no entanto, sempre foram geniais. Sou godardiano desde o primeiro momento. Ainda em Salvador, eu era fã de "Hiroxima, meu amor" e, instigado por Duda Machado, fui ver "Acossado", e abriu-se um novo capítulo em minha vida. No Rio, continuei vendo os então novos filmes franceses no lendário Paissandu. "Os incompreendidos" e "Jules e Jim" me pareceram muito delicados e belos. Mas nunca  mais gostei tanto de nenhum outro filme de Truffaut. Esse pendor godardiano me fez, por exemplo, adorar o cinema de Almodóvar de cara - e tornar-me seu amigo - e, embora tenha me tornado também amigo de Fernando Trueba (e adorado seu "Belle epoque"), isso me afastou criticamente deste último: seu "Dicionário de cine" é um livro delicioso, reluzente de humor espanhol, mas eu o amo a despeito da opinião negativa sobre Godard.

O rompimento entre Godard e Truffaut é o centro e o motivo do documentário ora em cartaz. Depois de estarem juntos numa demonstração contra o ministro da Cultura francês André Malraux, que tinha tirado Henri Langlois da direção da Cinemateca de Paris, os dois jovens amigos ainda seguram concordes através do maio de 68. Mas Godard saiu do clima das barricadas com uma motivação política radical que o levou a simpatizar com os maoístas e, mais tarde, a dirigir filmes assinados pelo Grupo Dziga Vertov, abdicando da ideia de autoria individual. Para Truffaut, maio de 68 passou como uma tormenta, embora os relâmpagos estivessem carregados de esperança - e ele voltou aos filmes de narrativa convencional (procedimento com o qual, a rigor, nunca tinha rompido). Depois de assistir a "A noite americana", Godard escreveu um bilhete violento a Truffaut, onde dizia que ele mentira com suas imagens. Truffaut respondeu com uma carta de 20 páginas. Os trechos dessa carta lidos no documentário revelam uma atitude decente. Ele diz que Godard grita "Todos os homens são iguais" para sentir-se superior a quem não pensa assim. Ou seja, aponta o narcisismo de Godard e põe sob suspeita esses arroubos de retórica pela justiça social. A carta dele parece longa demais como resposta a um bilhete de menos de meia página. Mas Godard tinha destruído, em poucas palavras, as ilusões de autorrespeito de um amigo de tantos anos, reduzindo-o a alguém que usa o cinema para veicular a "mentira burguesa". A mágoa e as razões de Truffaut me pareceram justas. Godard surge como um cara exaltado e por demais deslumbrado com a grandeza da própria atitude política. Entendi melhor a antipatia de Trueba por ele - e seu respeito inabalável por Truffaut. 

Mas as imagens de "A noite americana" me fizeram dar um passo adiante. O fato é que acho esse filme  particularmente ruim. Um filme sobre a feitura de um filme, feito por um cineasta que combinou teoria e realização, onde a gente não encontra nem os fatos nem o clima que se dão num set de filmagem. Assim, a crítica de Godard se revela como a de quem vê as consequências dos erros estéticos. Sua desqualificação de Truffaut, injusta politicamente num primeiro momento, ganha sentido quando se vê que toda a sua política se produz e se esgota na linguagem do cinema. Isso está em seus filmes de então e de hoje. Nada desfaz a arrogância do bilhete a Truffaut. Mas a revolta de Godard era contra ver-se preso a um modo fraco de encarar o cinema. O maoísmo se foi, a revolução permanente do cinema continua.

Caetano Veloso.

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