'Oropa', França e Brasília (11/07/2010)
Sempre achei o aeroporto Charles de Gaulle com pinta de "Barbarella": ficção científica com parede de chapisco não dá. La Défense faz a gente voltar a pensar em sci-fi não americana, portanto não convincente. Hollywood desenvolveu um poder de convencimento que chegou a se configurar numa autêntica opressão cultural. Dos sons dos socos (e os desmaios passageiros que eles provocam) aos personagens estrangeiros falando inglês com sotaque (mesmo os cubanos de Julian Schnabel) em diálogos que supostamente se estariam dando na língua de origem (o que faz Lezama Lima soar como um idiota), esse bairro de Los Angeles impôs as convenções que tornam os filmes críveis. Não é só imperialismo: eles testaram à exaustão a composição de quadros e a capacidade de atenção do espectador médio (como alguém diz no meu todo errado quanto a isso tudo "O cinema falado"). La Défense é bem francês em querer parecer state-of-the-art e resultar provinciano.
Pelo menos foi a impressão que eu tive ao chegar, sem ver nada que se parecesse com Paris. A Paris que sempre me dá vontade de chorar por causa da reação que Moreno, aos 10 anos, teve diante da beleza da cidade. Ele estava entediado na estrada de acesso. Diante dos primeiros sobrados bege com sacadas pretas, gerânios nas janelas e plátonos na calçada da frente, meu filhinho começou a gritar de alegria estética, a me perguntar se eu não via, se eu não achava, como eu não tinha avisado a ele? Eu nunca amara Paris como ela merece: comecei ali. Agora, La Défense parece um pedaço de Downtown L.A. encravado num labirinto de miniviadutos curvos que dão saudades das chatas freeways californianas.
Silvie, uma amiga francesa, nos convidou para jantar e pediu ao marido que nos viesse buscar. Ele é israelense. Ao me ouvir dizer que adoro Israel, reagiu com a mais amarga visão da política do seu país, onde não pretende voltar a morar. Queixou-se da quase impossibilidade de você não se tornar um reacionário permanecendo lá. Mas queixou-se mais de La Défense. Passamos por Neully e entramos numa Paris mais linda do que a que eu tinha na lembrança. Não sei o que seria de Moreno se ele a tivesse visto assim aos 10 anos. Pela beira do Sena, onde muita gente se espalhava e se reunia em casais, grupos, pensadores solitários, víamos a Torre Eiffel sem as luzes tipo show do Daft Punk que ultimamente deram para pôr na pobre. Estava iluminada somente com a luz do exato amarelo da lua cheia que subia ao seu lado, de modo que se via bem a malha de ferro em sua tensão e sua renda.
A casa de Silvie era onde os personagens de "Bande à part" aparecem batendo porta de carro. Fábricas abandonadas viraram lofts. Muito bonito tudo. Silvie também se queixa se sua terra: os franceses não são gentis. Um taxista que a expulsava ao ouvir que ela tem uma moto; vendedoras que não querem vender. Comento que toda a gente que vi no caminho parecia calma e feliz, deitada à beira-rio. Silvie considera isso um agravante: como podem ter uma cidade assim e ser mal-humorados? Ela o atribui a serem os franceses "mimados" pela seguridade social. Seu marido faz cara de "estou à esquerda dessa opinião" e pergunta: "Será?" Dias antes tinha havido uma passeata de jovens contra o aumento da idade mínima para aposentadoria.
No dia seguinte vejo La Défense com outros olhos. A enorme esplanada onde seria o show está cheia de vida - namorados pós-punk, famílias com crianças sorridentes, mulheres elegantes andando com prazer -, a arquitetura yuppie e a grande escultura vermelha contribuindo claramente para esse outro tipo de bem-estar. Há muita gente stylish, cool, hip. (Nada a ver com meu show: eram pessoas que nem pareciam saber que haveria música num retângulo a escanteio). E o Arco de La Défense preside essa modernagem, com seus ângulos retos e seu alinhamento com o do Triunfo, ao longe. Achei alegre. Não deu para perdoar as contorções do asfalto até chegar ali, mas o chapadão é mesmo da hora. É uma anti-Brasília: vulgaridade que vira real e chique, enquanto o Eixo Monumental é elegância que vira irrealismo vulgar. Quem irá para o Alvorada? Dilma-Dutra. Serra agora me parece melhor: gostei da entrevista à "Veja" (Armínio Fraga!) e adoro o guru dele, Albert Hirshman, cujo livro que destrói a retórica da direita é genial. Mas sou Marina. Dilma é um pouco menos feia do que Dutra. E Serra é o anti-Brigadeiro, cujo slogan era "É bonito e é solteiro". Marina é a única que é bonita, sincera e fala em reforma da Previdência.
Entre Paris e Londres teve Florença. Londres, do avião (e depois disso), pareceu uma série de trens parados para conserto. No carro me perguntei como é que justo na Inglaterra, a pátria do liberalismo individualista, todas as ruas parecem feitas pelo governo e entregues às faixas da população de acordo com a classe a que (essencialmente?) pertencem. Então foi sempre um BNH? Já saindo para Copenhague (onde estou), entendi: eram como prédios, feitos de acordo com o poder aquisitivo dos potenciais compradores e com a moda arquitetônica da época. Apenas não verticais edifícios com apartamentos mas horizontais renques de casas idênticas. Notting Hill está lindo hypado. Coll mas não popular. Vi a entrada para Portobello, pensei em Péricles Cavalcanti: ele e eu somos brasileiros que descobriram o reggae. Nem África nem América: a Copa é europeia.
Caetano Veloso.
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